domingo, 19 de dezembro de 2010

(...) A percepção emocional conhecemos por exemplo da música. O primeiro andamento daquela sonata para violoncelo - e em dois segundos surge aquele sentimento! (Sonata nº2 em Fá maior) E não sei porquê. Em relação à arquitectura também é um pouco assim. Não tão forte como na maior das artes, mas está lá. Vou ler-vos a título de exemplo o que escrevi a este respeito no meu livro de apontamentos. "É Quinta-feira Santa de 2003. Sou eu. Estou ali sentado. Uma praça ao sol, uma arcada grande, longa, alta e bonita ao sol. A praça - frente de casas, igreja, monumentos - como panorama à minha frente. A parede do café nas minhas costas. A densidade certa de pessoas. Um mercado de flores. Sol. Onze horas. A parede do outro lado da praça na sombra, em tons agradavelmente azuis. Sons maravilhosos, conversas próximas, passos na praça, pedra, pássaros, um leve murmúrio da multidão, sem carros, sem barulho de motores, de cada vez em quando ruídos de obra ao longe. Os feriados a começar já tornaram os passos das pessoas mais lentos, imagino. Duas freiras - isto é realidade e não imaginação - duas freiras cruzam a praça, gesticulando, de passos leves e toucas a agitarem-se levemente ao vento, cada uma traz um saco de plástico. A temperatura: agradavelmente fresco, com calor. Estou sentado na arcada, num sofá estofado em verde mate, a figura de bronze à minha frente no alto pedestal está de costas para mim e olha, como eu, para a igreja de duas torres. As duas torres da igreja têm cúpulas diferentes, que em baixo começam de forma igual e que ao subir se individualizam. Uma é mais alta e tem uma coroa dourada à volta do topo. Em breve, B virá ter comigo, cruzando a praça na diagonal." Agora, o que é que me tocou? Tudo. Tudo, as coisas, as pessoas, o ar, ruídos, sons, côres, presenças materiais, texturas e também formas. Formas que consigo compreender. Formas que posso tentar ler. Formas que acho belas. E o que é que me tocou para além disso? A minha disposição, os meus sentimentos, a minha expectativa na altura em que ali estive sentado. E vem-me à cabeça esta famosa frase inglesa que remete a Platão: "Beauty is in the eye of the beholder". Isto é: tudo existe apenas dentro de mim. Mas depois faço a experiência e elimino a praça. E já não tenho os mesmos sentimentos. Uma experiência simples, desculpem a simplicidade do meu pensamento. Mas ao eliminar a praça - os meus sentimentos desaparecem. Naquela altura nunca os teria tido da mesma forma sem a atmosfera da praça. Lógico. Existe um efeito recíproco entre as pessoas e as coisas. E é com isto que me identifico como arquitecto. E é isto a minha paixão. Existe uma magia do real. No entanto, conheço bem a magia dos pensamentos. E a paixão dos pensamentos belos. Mas aqui estou a falar daquilo que muitas vezes acho ainda mais incrível: a magia do verdadeiro e do real.(...)
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Peter Zumthor, Atmosferas, Gustavo Gili, 2006

sábado, 18 de dezembro de 2010


(...)o que é no fundo a qualidade arquitectónica? É relativamente fácil de responder. A qualidade arquitectónica - para mim - não significa aparecer nos guias arquitectónicos ou na história da arquitectura ou ser publicado etc...Qualidade arquitectónica só pode significar que sou tocado por uma obra. Mas porque diabo me tocam estas obras? E como posso projectar tal coisa? Como posso projectar algo como o espaço desta fotografia - é um ícone pessoal, nunca vi este edifício, acho que já não existe, e, no entanto, adoro vê-lo. Como se podem projectar coisas assim, que têm uma presença tão bela e natural que me toca sempre de novo.
Uma demonstração para isto é a atmosfera. Todos nós a conhecemos: vemos uma pessoa e temos uma primeira impressão. E eu aprendi: não confies nisto, tens de dar uma oportunidade a esta pessoa. Agora estou um pouco mais velho e tenho de dizer que voltei para a primeira impressão. Em relação à arquitectura também é um pouco assim. Entro num edifício, vejo um espaço e transmite-se uma atmosfera e numa fracção de segundo sinto o que é.
A atmosfera comunica com a nossa percepção emocional, isto é, a percepção que funciona de forma institiva e que o ser humano possui para sobreviver. Há situações em que não podemos perder tempo a pensar se gostamos ou não de alguma coisa, se devemos ou não saltar e fugir. Existe algo em nós que comunica imediatamente connosco. Compreensão imediata, ligação emocional imediata, recusa imediata. É diferente daquele pensamento linear que também possuimos e que também amo, chegar de A a B racionalmente, obrigando-nos a pensar sobre tudo. (...)
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Peter Zumthor, Atmosferas, Gustavo Gili, 2006

quinta-feira, 16 de dezembro de 2010

A profissão de arquitecto é extremamente exigente. Pressupõe que tenhamos um conhecimento pormenorizado do modo de construir, um perfeito domínio do espaço e das proporções, uma inteligência e percepção clara do que é necessário para que um projecto se adeque ao local e à função para que é destinado. E esse destino, essa sina do arquitecto, deveria ser, o de conceber algo intemporal, mas também, que vá de encontro às pessoas que usufruem do espaço criado, que lhes acrescente algo, como a beleza, ou um certo olhar particular sobre o mundo que as rodeia, que lhes traga um sentido de organização do espaço, que elas próprias adoptam para as suas vidas. Como um filho que em vez de estar dentro de uma barriga, somos nós que estamos no seu interior; respiramos e somos nutridos por esse ser, essa forma, que nos envolve.
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Existe algo que me faz confusão, mas é perfeitamente natural que aconteça, se na sua formação, o arquitecto não fôr sensibilizado para tal. Porque é que nem todos os arquitectos têm a percepção isenta, da qualidade do seu trabalho, e não sabem fazer o diagnóstico correcto das premissas que devem orientar e estruturar o seu projecto? Que fazer arquitectura é antes de mais criar um ser vivo, criar uma planta, criar um animal, que precisa de ser alimentado, acariciado, respirado, no fundo, sentido como algo que vai fazer parte de todos os nossos sentidos, que vai ser modificado e habitado por nós, ao longo do tempo, como um ser vivo, igual a nós. A forma-função deverá pois, ser orgânica...terá de dialogar com o espaço envolvente...deverá gerar encantamento.
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Como saber se somos bons arquitectos, ou melhor, se estamos a fazer boa arquitectura? Saber responder a essa pergunta faz parte da percepção e formação inerente a um bom arquitecto. Ver, reflectir, ensaiar soluções...e chegar a um objecto arquitectónico de qualidade, obedece a uma ideia que germinou no local de intervenção, percorreu a história da arquitectura e a sensibilidade cultural, espacial e poética de cada arquitecto envolvido. Um edifício concebido através unicamente da sua funcionalidade e que depois decoramos para que fique apresentável e credível, em geral, é um objecto morto, sem vida...como peça de arquitectura, desinteressante...
A PARTIDA DE XADREZ
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Um inglês e uma mulher da Rússia conheceram-se em Capri e viveram um breve e pungente encontro de amor. Depois o inglês regressou a Londres e a mulher à sua grande planície. Decidiram continuar o seu amor jogando uma longa partida de xadrez à distância. De tempos a tempos, chegava à Rússia uma carta com a jogada a fazer e, logo depois, chegava à Rússia a carta com os números de Londres. Entretanto o inglês casou e teve três filhos. A amante viveu também um matrimónio feliz. A partida de xadrez prolongou-se ainda por vinte anos, com uma carta de seis em seis meses. Um dia chegou ao inglês uma jogada de cavalo tão astuta que lhe ganhou a rainha. E ele percebeu que a jogada fora realizada por outra pessoa para lhe indicar que a mulher falecera.
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Tonino Guerra, Histórias para uma noite de calmaria, Assírio e Alvim, 2002
JUNTO AO FOGO
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Decidiu abandonar as mulheres e, por longo tempo, de facto, viveu só. Passeava, olhava as árvores e frequentava o café sem voltar o rosto para qualquer mulher bela.
Mas um dia, uma jovem colocou-se a seu lado e disse-lhe que o amava. Durante muitos dias o homem recusou-a, até que a mulher deixou de vir ao café, desaparecendo sabe-se lá para onde.
Só agora, aquele tal, foi sacudido por tão grande amor que percorreu, a pé, toda a cidade até que parou a conversar com uma daquelas mulheres que vive junto às fogueiras, na periferia. E nem reparou que era a mesma rapariga que o amava.
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Tonino Guerra, Histórias para uma noite de calmaria, Assírio e Alvim, 2002

quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

Miradouro de Santa Lúzia, Lisboa, 30 de Novembro 2010

domingo, 12 de dezembro de 2010

Enquanto a música corre,
e o tempo se confina ao extremo do possível,
...
a duração de uma nota
é algo de inultrapassável.
I. Pela perseguição implacável de todos os exércitos às portas de todos os que pensam na ironia de viver sempre seguros, enquanto seres vivos.
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II. A vida persegue aqueles que vendem a sua alma durante o sono. É preciso recuperar os sentidos nos sonhos. Sentir o precipício da vida.
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III. Não sei se toda a actividade humana será aniquilada pelo uso indevido da razão. Seremos arrastados na avalanche de acções inócuas e sem espírito.
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A alma vagueia,
o coração nunca será transparente.

sexta-feira, 10 de dezembro de 2010


Santos, Lisboa, 29 de Novembro 2010

segunda-feira, 22 de novembro de 2010

The human body is a vehicle of the spirit, a completed vehicle which experiences all the different aspects of creation. This does not mean that all other forms and names which exist in this world, some as objects, others as creatures, are not responsive to the expression of the spirit. In reality every object is responsive to the spirit and to the work of the spirit, which is active in all aspects, names and forms of the universe. One reads in the Masnavi of Rumi, that the earth, the water, the fire and the air, before man are objects, but before God they are living beings. They work at His command, as man understands living beings working under the command of a master. If creation can be explained, it is the phases of sound or of vibration, which manifest in different grades in all the various forms in life.
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Even what we call matter or substance, and all that does not seem to speak or sound, is in reality all vibration. And the beauty of the whole of creation is this, that creation has worked in two ways. In one way it has expressed and in the other way it has made itself a responsive mold. For instance, there is substance, matter to touch, and there is a sense to feel, to touch. There is a sound, and at the same time there are ears which can hear sound. There is light, there is form, there are colors; and at the same time there are eyes to see them. And what man calls beauty is the harmony of all one experiences. What after all is music? What we call music is the harmony of the audible notes; but in reality there is music in color, there is music in lines, there is music in the forest where there is a variety of trees and plants; and there is harmony in how they correspond with each other. The more widely one observes nature, the more it appeals to one's soul. Why? Because there is a music there; and the wider one's outlook on life becomes, the deeper one's understanding of life, the more music one can listen to, the music which answers the whole universe. But the one whose heart is open need not go as far as the forest; in the midst of the crowd he can find music. At this time human ideas are so changed, owing to materialism, that there is hardly any distinction of personality. But if one studies human nature, one sees that even a piano of a thousand octaves could not reproduce the variety of human nature. How people agree with one another, how they disagree; some become friends after a contact of a moment, some in many years cannot become friends. If one could only see to what pitch the different souls are tuned, in what octaves different people speak, what standards different people have! Sometimes there are two people who disagree, and there comes a third person and all unite together. Is that not the nature of music? The more one studies the harmony of music, and then studies human nature, how people agree and how they disagree, how there is attraction and repulsion, the more one will see that it is all music.
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But now there is another question to be understood. That what man knows is generally the world he sees around him. Very few trouble to think that there is something beyond what they see around them. To many it is only a fable when they hear that there are two worlds. But if one looked deep within oneself one would see that it is not only two worlds; it is so many worlds that it is beyond expression. That part of one's being which is receptive is mostly closed in the average man. What he knows is expressing outwardly, and receiving from the same sphere whence he can receive from himself. For instance, the difference between a simple man and a thinking person with deeper understanding, is that when a simple person has received a word he has heard it only in his ears; whereas the thinking person has received the same word as far as his mind. The same word has reached the ears of the one and the heart of the other. If this simple example is true, it shows that one person lives only in this external world, another person lives in two worlds, and a third person lives in many worlds at the same time. When a person says, 'Where are those worlds? Are they above the sky, or down below the earth?' the answer is that all these worlds are in the same place as that person is himself.
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As a poet has said, 'The heart of man, if once expanded, becomes larger than all the heavens.' The deep thinkers of all ages have therefore held that the only principle of awakening to life is the principle of emptying the self. In other words, making oneself a clearer and more complete accommodation in order to accommodate all experiences more clearly and more fully. The tragedy of life, all its sorrows and pains, belong mostly to the surface of the life of the world. If one were fully awake to life, if one could respond to life, if one could perceive life, one would not need to look for wonders, one would not need to communicate with spirits; for every atom in this world is a wonder when one sees with open eyes.
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In answer to the question as to what is the experience of those who dive deep into life, and who touch the depth within, Hafiz has said, 'It is not known how far is the destination, but so much I know, that music from afar is coming to my ears'. The music of the spheres, according to the point of view of the mystic, is like the lighthouse in the port that a man sees from the sea, which tells him that he is coming nearer to his destination. What music may this be? If there were no harmony in the essence of life, life would not have created harmony in this world of variety. And man would not have longed for something which was not in his spirit. Everything in this world which seems to lack harmony is in reality the limitation of man's own vision. The wider the horizon of his observation becomes, the more harmony of life he enjoys. In the very depth of man's being the harmony of the working of the whole universe is summed up in a perfect music. Therefore the music of the spheres is the music which is the source of creation, the music which is heard while traveling towards the goal of all creation. And it is heard and enjoyed by those who touch the very depth of their own lives.
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in Hazrat Inayat Khan, Music, Chapter III -THE MUSIC OF THE SPHERES

sexta-feira, 19 de novembro de 2010

Montserrat Figueras "Alma, buscarte has en Mí"



Isto é tão bonito, meu Deus...

segunda-feira, 15 de novembro de 2010



Poiso, 14 de Novembro 2010
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Ainda não tinha ido lá acima desde o grande incêndio...


domingo, 14 de novembro de 2010

Perguntar por que razão existe música parece supérfluo à maioria, e muitos responderão que ela existe para relaxar, para o prazer estético, para superar o tédio, para elevar o espírito, para matar o tempo, para a auto-edificação. Apesar disso, o poder espiritual das grandes obras da literatura musical erudita é indiscutivelmente perceptível. Há nelas sons fantásticos, e isso em todos os estilos e tendências. Se antes forem obtidas algumas condições básicas para isso, tais como a boa receptividade, a atmosfera apropriada para um aprofundamento relaxado e, sobretudo, a compreensão do significado espiritual da música, ela pode levar o indivíduo a possibilidades de experiência jamais tentadas. Em todas as culturas antigas do mundo, a música existiu em função do ritual, do serviço, do serviço de Deus, da expansão da consciência e das mais profundas experiências humanas. A compreensão intuitiva desse significado seria a condição prévia para se conseguir uma nova consciência auditiva efectiva em todos os tipos de música actualmente praticados (erudita, pop, jazz, de vanguarda, ou música não-europeia).
As culturas do Extremo Oriente, todos os rituais mágicos da África, da Ásia e da América do Sul, e todos os ritos e cultos xamanísticos possuem um conhecimento em geral inconsciente de uma força primordial desencadeada através de meios musicais. Isso poderia ser estimulante para nós; de qualquer maneira, caberia a nós não só deixar essa energia agir de forma mágica, mas também experimentando-a conscientemente, para que ela se torne presente para nós , para que fique à nossa disposição e nos ajude a nos tornarmos seres humanos perfeitos, no sentido de uma totalidade integral. Quando conhecermos os processos musicais de uma forma mais intensa, mais sensível e mais atenta, processos esses que em parte há milénios, em parte há alguns anos são utilizados para o autoconhecimento do ouvinte, teremos condições de nos tornarmos “parte do todo universal”, como expôs o filósofo da cultura Jean Gebser em seu ensaio Uber die Erfahrung (Sobre a experiência): “É possível que a tarefa da existência humana seja alcançar essa participação consciente. Ela também engloba o invisível, aquilo que, portanto, não nos é revelado, o inexprimível, ou seja, o segredo que não pode ser compartilhado.”
Que semelhante experiência possa ser alcançada também através da audição ou da execução musical parece, em princípio, improvável. Ela só se torna perceptível com uma consciência auditiva “integral”, que “experimenta a vitalidade mágica, que presencia a forma mítica da alma e que compreende a estrutura mental”. Esta forma integral de ouvir poderia, finalmente, levar a um “estado transparente” da percepção, que não é atemporal, como na experiência mágica, mas que (segundo Gebser) paira onde há “liberdade de espaço e de tempo”. Com certeza não existe hoje uma música que corresponda totalmente a essa consciência integral. Mas, em princípio, ela pode ser descoberta em várias culturas musicais exóticas e nos trabalhos musicais ocidentais do século XX, com os quais se indentifica.
Então, depois da concepção de Jean Gebser que, ao lado de Sri Aurobindo e de teilhard de Chardin, formulou esta visão do mundo integral, o homem mental-racional do Ocidente deve novamente redescobrir e experimentar as fontes mágico.míticas da consciência para poder consumar o salto para essa integração. Desde a descoberta do inconsciente e desde os avanços nos campos molecular e interatómico, podemos ter certeza, segundo Ronald Steckel que desenvolveu um projecto para uma integração espiritual com a ordem mundial vigente, “de que os acontecimentos decisivos causados por toda a vivência humana, todo o comércio e todo o movimento material acontecem num âmbito que quase não conhecemos e que não podemos ver com nossos olhos físicos. Por trás da face visível do mundo esconde-se uma fase Invisível.
As ligações com o Invisível que temos à nossa disposição são, segundo Steckel, os órgãos do sentimento e da sensibilidade, que dão às experiências o tom e a nitidez, que avançam por sob a superfície do vivido e libertam o oculto. Com isso, Steckel fala exactamente da tarefa do músico hoje. Pois o conhecimento vivo da unidade entre o visível e o invisível, entre o corpo e a alma, está hoje destroçado. “O que caracteriza nosso tempo, mais do que qualquer coisa, é o ímpeto de controlar o mundo exterior, e isso através de uma desconsideração quase total para com o mundo interior… Por “interior” quero dizer a nossa maneira de ver o mundo exterior e quaisquer realidades que não tenham nenhuma presença “externa”, “objectiva” – imaginação, sonhos, fantasias, estados de transe, realidades dos estados de meditação e de contemplação, que o homem moderno em geral desconhece por completo.
Esse conhecimento, “que em quase todas as culturas acessíveis da história estava ligado à pessoa do xamã, do curandeiro ou dos sacerdotes do culto” (Steckel), poderia, através de uma profunda experiência musical da pessoa consigo mesma, integrá-la na consciência do todo. É exactamente através da energia das obras musicais que nos é possível encontrar em nós o acesso aos âmbitos da alma e do espírito(…)
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Peter Michael Hamel, O autoconhecimento através da música, 1976,Cultrix, 1991

segunda-feira, 8 de novembro de 2010

(…)O homem da época “pré-musical” possuía um órgão interno para vivenciar a música. Ele não ouvia a música, os sons, através do ouvido: percebia-os de modo inaudível. Essa música espiritual do Universo harmonizava o corpo físico terrestre, criando nele também o órgão que então poderia ouvir o som em seu reflexo terrestre: o ouvido. Percebendo, por intermédio do ouvido, o reflexo terrestre da música, realizamos o processo na ordem inversa, isto é, o da renovada ligação com o Cosmo permeado de música. A música possibilita captar as forças criadoras supra-sensíveis da alma, que se encontram na iminência de serem despertas, e introduzi-las no mundo.
Tal como entre o pensar e o querer, situa-se o sentir, entre melodia e ritmo situa-se a harmonia. Também no sistema rítmico do corpo físico, no inspirar e exalar da respiração e no batimento cardíaco, actua o ritmo. Esse ritmo que se manifesta no organismo físico é portador do sentimento. No fluir para o interior e para o exterior, no encontro entre estes dois âmbitos surge o sentimento. Captada por percepção externa, física, a música, fluindo para dentro do ser humano, encontra-se com o ser anímico-espiritual do homem e suscita a vivência. Não são os tons que constituem o elemento musical, e sim o que, por seu intermédio, é motivado na alma. De acordo com isso, os ritmos dinâmicos do sistema rítmico corporal são apenas uma contraposição para a vivência musical. O corpo astral tem sua expressão física no homem aéreo, isto é, no ritmo da respiração, sendo vivenciado como algo musical pela cognição supra-sensível da inspiração. O processo respiratório torna-se interiormente audível na inspiração. Nele reina o corpo astral afinado musicalmente.
Assim como o cérebro não gera os pensamentos, mas constitui a base material para o pensar, Também o sentimento, no sistema rítmico, necessita do apoio físico.
Na vivência musical genuína tocamos o mundo espiritual, sem, contudo, vê-lo ainda. E mediante essa vivência, o mundo humano dos sentimentos, principalmente no que concerne ao lado moral, é aprofundado. “O sentir é, ele próprio, o resultado de uma harmonização constantemente renovada na parte mediana do homem. Se pudéssemos alçar ao reino da inspiração o homem como ser anímico pensante, emotivo e volitivo, tudo o que é material ficaria para trás; mas o homem principiaria a soar como obra de arte melódico-harmônico-rítmica da música cósmica que perpassou nosso eu. Esta é a música cósmica que ficou perdida para nossa consciência e que o homem desde aquele momento, procura reencontrar no plano terrestre.”
(…)De certo modo, o ritmo se transmite por si; no caso da melodia, entretanto, é preciso ligar-se interiormente quando se deseja captá-la em seu conteúdo. E o conteúdo do elemento melódico que introduz sensatamente o ritmo no todo musical. Assim como o pensar é o princípio ordenador dentro do âmbito anímico, o elemento melódico é o princípio plasmador e ordenador dentro da música.
Em cada melodia reside um impulso dinâmico interno que podemos vivenciar em nossa alma. “Em cada elemento da música revelam-se movimentos interiores da alma humana plenos de conteúdo. Em todo aspecto melódico movem-se forças que também tecem fios no acto do pensar, mas que, antes do pensamento, permanecem estacionárias no movimento.”(E.Scwebsch, Bach und die Kunst der Fuge) Nesta vivência captamos a realidade supra-sensível espiritual no ponto em que esta ainda interfere em nós directamente. Tal vivência é despertada pela audição. Se continuássemos perseguindo na vivência esse movimento interno do movimento melódico, isto é, se acompanhássemos o inaudível, precisaríamos mergulhar no mundo espiritual.
Esses movimentos tonais, que em épocas passadas conduziam o eu em direcção ao ser humano e plasmavam os envoltórios físicos seguindo leis tonais, têm hoje a missão de novamente ligar o eu ao mundo espiritual e preparar o futuro. “Como músicos, aprendemos a captar o embrião supra-sensível de vida futura em tudo o que nos toca no íntimo. Assim a música se torna um órgão de vida futura”.
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Em Carl Albert Friedenreich, A educação musical na escola Waldorf, 1977, Editora Antroposófica.

sexta-feira, 5 de novembro de 2010

The Passion of Joan of Arc (1928) 3/8

Revi no outro dia este filme absolutamente único. Sentimentos à flôr da pele, Devoção cinematográfica, Graça...Amor...Divino...

(desliguem o som, o filme original é mudo)

quinta-feira, 4 de novembro de 2010

(…) Há no amor alguma coisa (não direi que seja um defeito do amor porque o defeito está em nós próprios), mas qualquer coisa que não compreendemos na sua natureza. Por exemplo, o amor que sente por Justine não é um amor diferente por um objecto diferente, mas o mesmo amor que sente por Melissa tentando realizar-se através de Justine. O amor é terrivelmente permanente e cada um de nós só tem direito à sua pequena porção. Pode aparecer sob uma infinidade de formas e prender-se a uma infinidade de pessoas. Mas é limitado em quantidade, e não pode esgotar-se e desaparecer antes de alcançar o seu verdadeiro objecto. O seu destino oculta-se algures, nas mais profundas regiões da alma, onde acabará por se reconhecer como o amor de si, o terreno sobre o qual construímos uma espécie de saúde da alma. E isto não é nem egoísmo nem narcisismo.

Em Justine, de Lawrence Durrel, tradução de Daniel Gonçalves, Ulisseia

quarta-feira, 3 de novembro de 2010

No frontispício desse livro:
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...os gestos estranhos
que para matar o Amor,
fazem os amantes.
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Paul Valery
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Amor é dar o que não se tem a quem não é.
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Jacques Lacan

terça-feira, 2 de novembro de 2010

Veio-me esta frase à cabeça: O amor é uma droga dura. Fui à busca na internet e apareceu-me um livro com esse título, editado em Portugal pela Teorema, por esta escritora do Uruguai, Cristina Peri Rossi, de que tirei extractos de entrevistas, bem a propósito de algumas questões sempre à baila aqui.
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Bueno, la última pregunta: algunas veces hablas de la catástrofe del amor. ¿Se puede aprender a amar a la medida justa?

Mira, yo pienso que a amar no se aprende. Amar es una cosa que una tiene en el corazón. Porque, en último término, si uno no tiene capacidad de amar es difícil que encuentre un objeto para amar, qué sé yo: el perrito, el gatito, el vecino de la esquina. Además, el amar te coloca en una situación de fragilidad y de vulnerabilidad (siempre me acuerdo del poema de William Blake que dice que la sonrisa de la mujer que ama le lleva al paraíso, pero si no lo mira se hunde en el infierno). Sí, nos coloca en una situación de dependencia emocional muy grande, en una situación muy frágil. Pero ¡bendita sea esa fragilidad, porque lo contrario sería ser robot!

Tiene que ver con la libertad también, la libertad interior...

Sí, sí, lo que ocurre es que algo tenemos que obtener. Todos los seres humanos somos narcisos. ¿Cómo es que nos colocamos en esa situación de dependencia? Algo importante tenemos que obtener. Yo creo que es, por una parte, la intensidad emocional y, por otra, la ilusión. Asumimos esa fragilidad y esa vulnerabilidad en la medida en que va unida a una cuota de intensidad que no tienen otras cosas... Lo comparo con la creación. Lo que ocurre, lo que noto, es que la gente cada vez está menos dispuesta a colocarse en esta situación de fragilidad. Por todos lados, los libros de autoayuda te dicen que hay que evitar la dependencia. A ver, ¿qué están diciendo? Evitar el contacto, el amor… Al contrario, lo que tenemos que hacer es reforzar esos lazos de dependencia. Lo tremendo es depender de una sola persona, pero no los lazos de dependencia. Yo dependo de que me vendan el pan, de que el médico esté cuando le llamo... Sí, vivimos en situaciones de dependencia. Y la interdependencia, por otra parte, es cuando la dependencia es mutua.A mí me gusta mucho que me interrumpa mi novia a cada rato para decirme “Te quiero”, me parece maravilloso. ¿Para qué quiero yo que no me interrumpa? Estoy rodeada de gente que no quiere que nadie le interrumpa con un mensaje así. Y me parece que el amor hace aflorar con esa fragilidad nuestra parte más sensible. Normalmente, los libros de autoayuda te dicen: primero hay que amarse a sí mismo y después a los demás. Si te lo tomas en serio, muy en serio, nunca amas a nadie. Porque en el amor hay una entrega, y así te vuelves menos egoísta. Justamente, para mí amar implica renunciar a una cantidad de objetivos. Uno no ama para hacer lo que le da la gana, sino para renunciar en parte a lo que nos da la gana y hacer a veces lo que el otro quiere. Uno tiene que tener en cuenta la satisfacción del otro, porque no somos distintas personas. Pero, en todo caso, creo que el amor no es solamente el amor interpersonal, sino también el amor a la gente, a ciertas ideas, a ciertos objetos y, sobre todo, un amor a la vida, que implica renunciar a ciertos placeres...
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Entrevista a Cristina Peri Rossi, diciembre de 2008, Barcelona. Publicada por la revista Matices, junio 2010, Alemania.

segunda-feira, 1 de novembro de 2010

(…) Mesmo de um ponto de vista exterior nota-se imediatamente no destino destas três figuras heróicas, Hoderlin, Kleist e Nietzsche, uma evidente coincidência: encontram-se os três, por assim dizer, sob o mesmo signo. São expulsos do seu próprio ser por um poder superior, de certa maneira sobrenatural, e atirados para dentro de um ciclone de paixão que os destruirá, terminando precocemente os seus dias numa terrível perturbação do espírito, numa fatal embriagues dos sentidos, na loucura ou no suicídio. Separados do seu tempo, incompreendidos pela sua geração, cada um deles passa meteoricamente como um lampejo breve através das trevas da missão que lhe coube. Desconhecem o seu caminho, desconhecem o sentido da sua existência, porque o seu trajecto os conduz do infinito ao infinito; na sua ascensão e queda, mal chegam a tocar no mundo real. Algo de inumano age neles, uma violência acima da sua própria violência, uma força à qual se sentem integralmente submetidos; não obedecem à própria vontade (são eles os primeiros a reconhecê-lo, aterrados, nos escassos instantes de vigília do seu eu), antes escravos, possuídos (no duplo sentido da palavra) por um poder superior, o poder do demoníaco.
O demoníaco. O termo, desde os tempos primitivos da intuição mítico-religiosa até aos nossos dias, passou por tantas variações, por tantas interpretações, que me sinto obrigado a especificar o sentido em que o uso. Chamo demoníaco àquela inquietação originária e essencial com que cada indivíduo nasce e que o arranca para fora de si mesmo, para lá de si mesmo em direcção ao infinito, aos elementos primordiais, como se a natureza por assim dizer tivesse deixado em cada alma individual uma parte inalienável e inquieta do seu caos de outrora, uma parte que com impaciência e paixão quisesse regressar a esta elementaridade sobre-humana, supra-sensível. O demónio, o daimon, corporiza em nós a substância levedante, o fermento inquieto, torturante, em permanente tensão, que impele o ser para fora da sua quietude habitual em direcção à desmesura, ao êxtase, à renúncia e aniquilamento de si mesmo; na maior parte dos homens, nos indivíduos medianos, essa parte da alma, a um tempo preciosa e perigosa, depressa é sugada e dissipada; só durante raros segundos, nas crises de puberdade, nos instantes em que por amor ou por ímpeto criativo o cosmos interior entra em efervescência, este ímpeto de libertação do corpo, esta exaltação que ao mesmo tempo é auto-expressão, exerce o seu domínio sobre a banalidade da existência burguesa. Mas, fora isso, as pessoas equilibradas abafam o impulso fáustico que haja dentro de si, cloroformizam-no com a moral, anestesiam-no com o trabalho, contêm-no com o dique da ordem; o burguês é sempre arqui-inimigo do caótico, não apenas no mundo, na sociedade, mas também dentro de si próprio. Porém, no homem superior, sobretudo no homem produtivo, a inquietude, a insatisfação com a repetição das tarefas quotidianas, continua a exercer um poder criativo, dando-lhe aquele “coração superior que a si mesmo se tortura”(Dostoievski), aquele espírito interrogativo que muito para lá de si próprio estende a sua nostalgia em direcção ao cosmos. É sempre à parte demoníaca de cada um de nós que se fica a dever tudo o que nos projecta para lá do ente individual que somos, para lá dos nossos interesses pessoais, tudo o que nos confere a sagacidade e o desejo de aventura com que nos lançamos na interrogação e nos perigos que ela comporta. Mas este demónio só é uma força amiga, favorável, enquanto a conseguimos dominar, enquanto estiver ao serviço da tensão que nos anima, ao serviço de um desejo de intensificação, de elevação; o verdadeiro perigo começa quando essa tensão salutar se transforma num excesso de tensão, quando a alma sucumbe ao impulso subversivo, ao vulcanismo do demoníaco. Porque o demónio só pode alcançar a sua pátria, o elemento que lhe é próprio, a infinitude, na medida em destruir sem compaixão a coisa finita, terrena, em que momentaneamente fixou a sua morada, ou seja, o corpo.
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Em Stefan Zweig, O combate com o demónio, Hoderlin, Kleist, Nietzsche, Antígona, 2004

terça-feira, 26 de outubro de 2010

O que me atrai na música: o silêncio ou um eco, talvez seja uma vibração, que soa dentro nós, imperceptível conscientemente. A energia vital e animal da natureza. A energia cósmica que nos alimenta a alma. A capacidade de despertar o desconhecido em nós e está para além da compreensão inteligente.
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...Tocar o íntimo do Cosmos.

segunda-feira, 25 de outubro de 2010

Messa in Si min BWV 232 J. S. Bach - Sanctus

Quem diria que esta missa seja um hino à sensualidade e ao erotismo! Sanctus-Amour!

quinta-feira, 21 de outubro de 2010

segunda-feira, 18 de outubro de 2010

Solamente
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ya comprendo la verdad
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estalla en mis deseos
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y mis desdichas
en mis desencuentros
en mis desequilibrios
en mis delirios
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ya comprendo la verdad
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ahora
a buscar la vida
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Alejandra Pizarnik

quinta-feira, 14 de outubro de 2010

Esta bela versão da música dos Joy Division aparece no fim do filme de Andrea Arnold, Red Road(2006), assim como a imagem acima do começo. Existe um desalento permanente em relação a tudo, mas também são as pequenas coisas comuns, engraçadas ou perigosas, onde procuramos alguma felicidade, sempre fugaz e sem alma. Os sentimentos são turvos e difusos. Um filme triste, e que nos toca como um focinho húmido de um cão a quem damos uma festa.
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Love will tears us apart (Ian Curtis)
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When routine bites hard,
And ambitions are low,
And resentment rides high,
But emotions won't grow,
And we're changing our ways,
Taking different roads.
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Then love, love will tear us apart again.
Love, love will tear us apart again.
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Why is the bedroom so cold?
You've turned away on your side.
Is my timing that flawed?
Our respect runs so dry.
Yet there's still this appeal
That we've kept through our lives.
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But love, love will tear us apart again.
Love, love will tear us apart again.
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You cry out in your sleep,
All my failings exposed.
And there's a taste in my mouth,
As desperation takes hold.
Just that something so good
Just can't function no more.
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But love, love will tear us apart again.
Love, love will tear us apart again.
Love, love will tear us apart again.
Love, love will tear us apart again.

quarta-feira, 13 de outubro de 2010

A escrita para piano de Brahms.

Somos levados nessa cadência,
semelhante ao colo materno;
um delicado toque das mãos:
de total aconchego tonal.

e os nossos olhos fixos,
nesse permanente flutuar,
nesse navegar musical.
Meu sorriso-farol.

Um respirar profundo,
que se prolonga
serenamente,
que perdura, infinito.

Algo permanece intocável:
Não o silêncio,
esse beija-nos docemente.
Talvez o mar, longínquo…
... uma melodia no olhar ...

De melancolia é feita a nossa felicidade:
de encontros dissonantes,
de sílabas e palavras,
que se acariciam, e esperam escutar:
o batimento, o pulsar.
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O ambiente poético do primeiro intermezzo op.119 é vago e melancólico. Numa carta de Maio de 1893, Brahms conta a Clara Schumann:

"Estou tentado a copiar uma pequena peça de piano para ti, para saber se estás de acordo com o que vou dizer. Está cheia de dissonancias! Poderiam ser corrigidas e melhor explicadas -mas talvez elas não sejam do teu gosto, por isso, desejava corrigi-las só um pouco, para se tornarem mais apetitozas e agradáveis ao teu gosto. A pequena peça é extremamente melancólica e deve ser tocada muito devagar, não que isso seja uma obrigação. Cada compasso e cada nota devem soar como "ritardando", como se quisessem exprimir intensamente melancolia em cada nota, e cada uma, em luxúria e grande prazer, para além dessas dissonancias todas! Meu Deus, esta descrição deverá certamente despertar o teu desejo!"

sexta-feira, 1 de outubro de 2010

Praia de Galapos, 1967
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Dia mundial da música. Dia pessoal da morte da musa. Musa mãe.
Estaria aqui ainda se a sua paixão descontrolada,
Não sei se pela vida, se pela sobrevivência dos sonhos,
Sonhos que permitissem o amor intenso sem dor, sem desilusão…

Se a sua solitária busca de serenidade,
não estivesse sempre colocada do outro lado do abismo.
Se a sua aparente extroversão não contivesse em si,
O charme cínico do abandono, da reclusão, da invisibilidade.

O coração comandava um querer desprovido de escuta, de luar,
De paisagens onde o corpo pudesse descansar de mais uma batalha,
Pela descoberta de si própria, no corpo, ou na alma de alguém.

Perdeu-se da vida,
Por querer demasiado,
algo desnecessário:

A vida com amor para si.
Como se estivéssemos sempre separados de tudo.
Como se pudéssemos viver protegidos do que nos dilacera por dentro:

O medo de não nos amarmos o suficiente.
De não aceitarmos a vida em toda a sua dimensão involuntária.
De não sermos completamente livres. De espelhos...
Do que o mundo e os outros pensam de nós.

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Como diz Krishnamurti:
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Concentrarmo-nos só em nós mesmos, ou observarmo-nos separadamente do mundo, leva-nos ao isolamento e a todas as formas de indiossincrasia, de neurose, de medos, etc. Mas se observarmos o mundo e acompanharmos o seu movimento, e nos deixarmos levar por esse movimento quando se dirige para o “interior”, então não há divisão entre nós e o mundo; não somos então um “indivíduo” oposto ao colectivo.
E deve existir este sentido de observação que simultaneamente, explora e observa, escuta e compreende. É neste sentido que estou a usar a palavra observar. O próprio acto de observar é um acto de exploração. Mas não podemos explorar se não somos livres. Portanto, para explorar, para observar, tem de haver lucidez; para explorar profundamente em nós mesmos, temos de o fazer sempre como se fosse pela primeira vez. Isto é, nessa exploração nunca “alcançamos um resultado”, nunca “subimos degraus” e nunca dizemos, “Agora sei!”. Não há degraus para subir. E se “subimos”, temos de descer imediatamente, para que a mente permaneça extremamente sensível para observar, para ver, para escutar.
E desse observar, desse escutar, desse ver, desse vigiar, nasce aquela extraordinária beleza da integridade. Não há outra virtude senão a que vem da compreensão de nós mesmos. Essa integridade é então cheia de vitalidade, vigorosa, activa – e não uma coisa morta, que se cultiva.”


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A PAIXÃO QUE TRANSFORMA
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Um dos maiores problemas com que se confronta cada um de nós é, parece-me, uma total falta de intensidade no sentir. Temos uma certa agitação emocional constante, relativamente às nossas actividades – o que se deve fazer ou o que não se deve fazer. Entusiasmamo-nos com coisas que, na realidade, não têm qualquer importância. Mas, segundo me parece, há falta de paixão – não por um determinado fim a atingir, não por algum objectivo a alcançar; refiro-me à capacidade de sentir com intensidade e força.
Geralmente, temos mentes muito superficiais – mentes limitadas, estreitas, presas a uma rotina fútil – que vão funcionando sem problemas, a não ser que aconteça um acidente qualquer; há então perturbação, mas depois dela, as nossas mentes voltam ao estado anterior, submetendo-se a uma nova rotina. A mente superficial não é capaz de encarar problemas. Tem problemas inumeráveis, todo o problema da existência. Mas invariavelmente traduz esses problemas extraordinariamente significativos, que são os problemas da vida, de acordo com o seu entendimento superficial, estreito, limitado, e procura desviar esta cautelosa corrente da vida para os seus acanhados, estreitos canais. E é com isso que estamos confrontados agora – e talvez sempre tenhamos estado. Mas muito mais agora, dado que o desafio é muito mais forte, e exige uma resposta igualmente intensa, igualmente enérgica, igualmente viva.
Esta paixão a que nos referimos não é coisa que se possa cultivar facilmente, tomando determinada droga, ficando hipnotizado por certos ideais, etc. Ela vem naturalmente – tem de vir. Estou a usar propositadamente a palavra paixão. Em geral, só empregamos esta palavra em relação ao sexo, ou quando se sofre intensamente, “apaixonadamente”, tentando-se então terminar esse sofrimento. Mas estou a usar a palavra paixão no sentido de um estado da mente, um estado de ser, um estado da nossa íntima essência – se tal coisa existe – que sente intensamente, que é altamente sensível – igualmente sensível à sujidade, à sordidez, à pobreza, às enormes fortunas e à corrupção, à beleza de uma árvore, de um pássaro, ao correr da água, ao lago que reflecte o céu crepuscular. É necessário sentir tudo isso fortemente, intensamente. Porque sem paixão a vida torna-se vazia, superficial e sem muito sentido. Se somos incapazes de ver a beleza de uma árvore e de sentir intensa afeição e interesse por ela, não estamos vivos.
Se não somos sensíveis a essa extraordinária beleza da vida, à beleza de um rosto, às linhas de um edifício, à forma de uma árvore, ao voo de um pássaro, à canção da manhã – se não estamos atentos a tudo isso, se não sentimos intensamente tudo isso, então obviamente, a vida, que é cooperação e relação, não tem nenhum sentido, estamos então a funcionar mecanicamente.
Esta paixão não é devoção, não é sentimentalismo, e nada tem em comum com sensualidade. Se a paixão tem algum motivo, ou se é inspirada por algum motivo, ou se é paixão por alguma coisa, torna-se prazer e dor. Por favor compreendamos bem isto. Se a paixão é estimulada sexualmente, ou tem uma causa, se tem um fim em vista, então, nessa chamada paixão há frustração, há dor, há a exigência da continuação do prazer e, portanto, o medo de não ter esse prazer, a preocupação de evitar a dor. Assim, a paixão com um motivo, ou a paixão que é estimulada, acaba invariavelmente em desespero, dor, frustração, ansiedade.
Estamos a referirmo-nos a uma paixão sem motivo.
Essa paixão existe. Não tem nenhuma relação com qualquer ganho ou perda pessoal, nem com as mesquinhas exigências de um determinado prazer, ou a preocupação de evitar a dor. Sem essa paixão não há possibilidade de se cooperar verdadeiramente, e cooperação é vida, que é relação. Tal cooperação não é a favor de uma ideia; coopera-se, não porque se é levado a isso pelo Estado, nem porque se quer ter uma recompensa ou evitar uma punição, nem porque se trabalha por um certo ideal económico, por uma utopia; coopera-se, mas não no sentido de trabalhar em comum por algum ideal – tudo isso, para nós, não leva à verdadeira cooperação.
Estou a referir-me ao espírito de cooperação. Se não cooperamos, não pode haver autêntico relacionamento. A vida exige que vós e eu cooperemos, façamos coisas juntos, trabalhemos juntos, sintamos juntos, vivamos juntos, compreendamos coisas juntos. E este “sentido de união” tem de ser ao mesmo tempo, tem de ter a mesma intensidade e estar ao mesmo nível, de outro modo não existe união. Se observarmos bem este mundo tão triste e destrutivo, vemos que a mente se está a tornar mecânica, rotineira e, no aspecto tecnológico, está a ser mantida num estreito canal. E portanto, o sentido de intensidade, a capacidade de sentir intensamente em relação a alguma coisa desaparece gradualmente. E se não somos capazes de sentir intensamente, é óbvio que a mente está insensibilizada, está entorpecida, está com medo, etc.
Assim, a paixão de que estamos a falar é um estado de ser. É realmente um estado sem mancha de sofrimento, sem autocompaixão, sem medo. E para o compreender, temos de compreender o desejo. Especialmente os que foram criados com ideias e sanções religiosas de uma dada sociedade, pensam que para “realizar” o que chamam Deus, a mente tem de estar sem desejo, é uma das primeiras e mais importantes condições. Conseguimos matar toda a paixão, excepto num único aspecto – sexualmente. E conseguimos dominar o desejo. A sociedade, a religião, a vida em comum – de tudo isso fizemos uma coisa sem vitalidade, porque temos a ideia de que um homem, um ser humano que sente de modo muito forte, muito próximo de um desejo intenso, não tem possibilidade de compreender aquilo a que se chama Deus.
Que mal há no desejo? Todos o temos, o sentimos, muito intensamente ou de maneira vaga, todos sentem desejo, de uma ou de outra espécie. Que mal há nele? Por que aceitamos tão facilmente subjugar, destruir, perverter, reprimir o desejo? Porque, evidentemente, o desejo traz conflito – o desejo de riqueza, posição, fama, etc. É só isso que procuramos essencialmente, profundamente – não ser perturbados. E quando nos vemos perturbados tentamos encontrar uma saída dessa situação e voltar a instalar-nos num estado reconfortante, onde nada nos venha perturbar.
Assim, o desejo é olhado por nós como uma perturbação. Reparemos nisto, por favor. Estamos a apontar factos psicológicos – não se trata de uma questão de aceitar ou não aceitar, de concordar ou discordar. São factos, e não opiniões minhas. O desejo torna-se assim uma coisa que é preciso controlar, reprimir, e portanto esforçamo-nos nesse sentido – custe o que custar, não vamos deixar-nos perturbar, e tudo o que possa perturbar deve ser reprimido, “sublimado” ou posto de lado.
Como dissemos outro dia e de novo dizemos em cada palestra, o que é importante não é ouvir as palavras, mas escutar realmente. Há grande beleza no escutar. Esta tarde, vimos da janela um pássaro, um alcião. Tinha um bico comprido e penas brilhantes, de cor intensamente azul. Estava a chamar, com seu canto, e outra ave da mesma espécie, outro alcião, respondia ao longe. Ficar apenas a escutá-lo – sem dizer, “É um alcião. Como é belo!”, ou “Como é feio!”, “Quem me dera que aquela espécie de corvo, parasse de grasnar!” – não sei se já alguma vez escutaram com esse estado de espírito. Escutar, simplesmente – quando não há nada a lucrar, quando não há qualquer objectivo utilitário, escutar, quando não se está a tentar alcançar, ou evitar, alguma coisa. Ou olhar o sol poente, aquele pequeno retalho de lua crescente – olhar, apenas, e sentir intensamente tudo isso.
Se escutarmos, de facto, nessa feliz disposição, tranquilamente, sem qualquer tensão, então o próprio acto de escutar é um verdadeiro milagre. Milagre, porque nessa acção, nesse momento, compreendemos tudo o que está contido no acto de escutar, de perceber, de ver; foram eliminadas todas as barreiras, e há espaço, entre nós e o mundo, e aquilo que estamos a escutar.
Precisamos de ter esse espaço para observar, ver escutar, quanto mais amplo, quanto mais profundo ele for, mais beleza e profundidade haverá. E algo de qualidade diferente surge quando há esse espaço entre nós e aquilo que estamos a escutar.
Não estou a ser poético, sentimental ou romântico. Mas, na realidade, não sabemos escutar, escutar simplesmente – escutar a nossa mulher, ou o nosso marido, que está a implicar, a questionar, a zangar-se ou a arreliar-nos. Quando apenas escutamos, compreendemos muito; e os céus abrem-se-nos largamente. Façamos isso, de quando em quando; não o tentemos apenas – façamo-lo, e descobriremos por nós mesmos.
Espero que estejais a escutar-me dessa maneira. Porque aquilo de que estamos a falar é algo que está além da mera palavra. A palavra não é a coisa. A palavra “paixão” não é paixão. Sentir aquilo que transcende a palavra, e deixar-se “captar” por isso, sem qualquer volição, sem directiva ou objectivo, escutar aquilo a que se chama desejo, escutar os nossos próprios desejos – e temos tantos, vagos ou intensos – então, quando os escutarmos, veremos o enorme mal que fazemos quando reprimimos o desejo, quando o distorcemos, quando queremos satisfazê-lo, quando queremos fazer alguma coisa em relação a ele, quando temos uma opinião a seu respeito.
A maior parte das pessoas perdeu o sentir apaixonado. Talvez o tenha tido outrora, na juventude – talvez apenas num vago murmúrio – tornar-se rico, alcançar a fama, e viver uma vida burguesa, respeitável…A sociedade – que é o que nós somos – reprime o sentir. E, assim, cada um é levado a ajustar-se àqueles que estão “mortos”, que são “respeitáveis”, que não têm sequer uma centelha de paixão; e passa então a fazer parte deles, perdendo assim o sentir apaixonado.
Para compreender todo este problema do desejo, temos de compreender o esforço. Porque, desde o momento em que vamos para a escola até morrermos, vivemos num constante esforço; a nossa mente, a nossa psique, é um campo de batalha. Nunca há um momento de quietude, de descompressão, de liberdade; estamos sempre a batalhar, a lutar, a esforçar-nos, a adquirir, a evitar, a acumular – é isto a nossa vida! Não estou a descrever uma coisa que não existe. A nossa vida é esforço constante. Não sei se já notastes que quando não fazemos qualquer esforço – o que não quer dizer estagnar ou dormir – quando todo o nosso ser está tranquilo, sem esforço, então vemos as coisas com muita clareza e penetração, com vitalidade, energia, paixão.
Fazemos esforço, porque somos impelidos por dois ou mais desejos contrários. Estamos sempre a opor um desejo a outro desejo, o desejo de ter e o desejo de não ter – se temos realmente este problema…(…)Quando nasce em nós qualquer desejo, temos também consciência do desejo de o reprimir – desejo este inculcado pela tradição, e que está profundamente enraizado nas pessoas. Mas quando um desejo nasce, temos de dar-lhe atenção, de o compreender, de escutar todos os indícios e sinais. Temos de o escutar – em vez de o negar, de o reprimir, de o pôr de lado ou de fugir-lhe. Não é possível fugir dos desejos.
Os “santos” e “yoguis” são impelidos, dilacerados pelo desejo. Quando se vestem como ascetas e se cobrem de cinzas, pensam que levam uma vida simples. Nada disso. Interiormente estão em ebulição, tendo, ou não, consciência disso – e não sabem o que hão-de fazer. E assim tornam a sua vida e a sua congregação de “santos” uma coisa feia, desumana, envenenada, cheia de ressentimentos. Porque quando não se compreende o desejo, cria-se inimizade e antagonismo. E por mais que se pregue a fraternidade isso não terá qualquer significado se não se compreender essa coisa tão simples chamada desejo. Se negarmos o desejo, se dizemos, por exemplo, “Já passei por uma provação com esse desejo e não devo tê-lo mais”, então estamos meramente a comparar o desejo presente com uma experiência que já tivemos e se tornou uma lembrança que irá controlar o desejo. E assim ficamos de novo enredados na batalha.
Mas, ao nascer cada desejo – mesmo que da coisa mais simples – temos de observá-lo, de vê-lo nascer, viver, florescer, ganhar vitalidade. E se não o reprimirmos, se não o compararmos, se ele não for dominado pela lembrança daquela passada experiência, e se pudermos observá-lo com aquele espaço de que falámos, veremos então que esse desejo se vai transformando num sentir intenso e sem objecto, se vai transformando apenas num sentir. Mas para quase todos nós, a vontade é que é importante, necessária, ou pelo menos pensamos que o é. A vontade é uma corda tecida de muitos desejos. E no momento em que existe vontade, vontade de levar até ao fim, ou vontade de negar, está-se num estado de resistência. E portanto regressa-se outra vez a um estado de conflito.
Estamos a falar de uma mente amadurecida, que compreende o conflito. A mente que compreende o conflito, que compreende toda esta questão do desejo, com todos os seus problemas, está amadurecida – e só essa mente pode compreender o que é real, o que é verdadeiro. Só ela, e não a mente que reprime o desejo, pode compreender a realidade. Porque, para compreender o que é verdadeiro, precisamos de paixão. A paixão é uma energia extraordinária que nos impele e que não é estimulada, nem movida pelo desejo. É uma chama, e sem ela nenhuma transformação podemos criar ao mundo, porque o mundo está cheio de problemas.
(…)Como podemos então encontrar a Realidade se não temos essa sensibilidade, esse sentir profundo?
Temos, assim, de compreender o desejo. E para compreender cada incitamento do desejo, temos de ter espaço, e de não tentar preencher esse espaço com os nossos pensamentos ou lembranças, ou com a preocupação de como satisfazer ou destruir esse desejo. Dessa compreensão nasce, então o amor. Geralmente, não temos amor, não sabemos o que ele significa. Conhecemos o prazer, conhecemos a dor. Conhecemos a inconsistência do prazer e, provavelmente, a continuidade da dor. E conhecemos o prazer sexual e também o prazer de alcançar fama, posição, prestígio, e o prazer de exercer um enorme domínio sobre o próprio corpo, como os ascetas, de manter um “record”… - conhecemos todas estas coisas. Falamos interminavelmente acerca do amor, mas não sabemos o que ele significa, porque não compreendemos o desejo, que é o começo do amor.
Sem amor não há verdadeira moralidade; o que há é ajustamento a um padrão, social ou supostamente religioso. Sem amor não há virtude, integridade. O amor é espontâneo, real, vivo. E a bondade não é uma coisa que se possa criar pelo exercício constante; é espontânea, como o amor. A virtude não é uma lembrança de acordo com a qual funcionamos como ser humano “virtuoso”. Se não temos amor, não somos bondosos. Podemos frequentar templos, levar uma vida familiar extremamente respeitável, seguir as regras da moral social, mas não somos bondosos. O nosso coração é estéril, vazio, está embotado, entorpecido, por não compreendermos o desejo. A vida, portanto, torna-se um constante campo de batalha e o esforço só termina com a morte. Só termina com a morte, porque só sabemos viver com esforço.
Assim, para compreender o desejo precisamos de compreender, de escutar, cada movimento da mente e do coração, cada alteração, cada mudança do pensamento e do sentir, precisamos de observar o desejo, de nos tornarmos sensíveis, despertos a ele. Não podemos tornar-nos sensíveis ao desejo se o condenarmos ou se o compararmos. Temos de estar muito atentos ao desejo, porque ele nos dará uma compreensão imensa. E dessa compreensão nasce a sensibilidade. Somos então sensíveis – e não só fisicamente sensíveis – à beleza, à sujidade, às estrelas, ao sorriso ou às lágrimas, e sensíveis também a todos os murmúrios, a todos os sussurros que nos povoam a mente, aos secretos medos e esperanças.
E deste escutar, desse observar, vem a paixão, esta paixão igual ao amor. Só neste estado se é capaz de cooperar. E, porque se é capaz de cooperar, também só neste estado se pode saber quando não se deve cooperar. Assim, com esta profunda compreensão e vigilância, a mente torna-se eficiente, lúcida, cheia de vitalidade e de vigor; e só uma mente assim pode viajar para muito longe.
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22 de Janeiro de 1964
Em, O despertar da sensibilidade, Krishnamurti, editorial estampa,1992

quarta-feira, 29 de setembro de 2010

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O QUE É ANGÚSTIA?
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Um rapaz fez-me essa pergunta difícil de ser respondida. Pois depende do angustiado. Para alguns incautos, inclusivé, é palavra que se orgulham de pronunciar como se com ela subissem de categoria - o que também é uma forma de angústia.
Angústia pode ser não ter esperança na esperança. Ou conformar-se sem se resignar. Ou não se confessar nem a si próprio. Ou não ser o realmente se é, e nunca se é. Angústia pode ser o desamparo de estar vivo. Pode ser também não ter coragem de ter angústia - a fuga é outra angústia. Mas angústia faz parte: o que é vivo, por ser vivo, se contrai.
Esse mesmo rapaz perguntou-me: você não acha que há um vazio sinistro em tudo? Há sim. Enquanto se espera que o coração entenda.
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Clarice Lispector, A Descoberta do Mundo, 1984, Rocco

terça-feira, 28 de setembro de 2010

COMPREENDER: Vendo de repente o episódio de amor como um nó de razões inexplicáveis e de soluções bloqueadas; o sujeito exclama: “Quero compreender (o que me está a acontecer)!”
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1. Que penso do amor? – Em suma, nada penso. Gostaria de saber o que é, mas, estando nele embrenhado, vejo-o em existência, não em essência. Isto que quero conhecer (o amor) é a mesma matéria que utilizo para falar (o discurso de amor). É-me certamente permitida a reflexão, mas, como essa reflexão fica imediatamente presa na repetição das imagens, não se transforma em reflexibilidade: excluído da lógica (que admite linguagens exteriores umas às outras), não posso pretender pensar bem. Assim, por mais que discorra sobre o amor ao longo do ano, apenas poderia ter a esperança de agarrar o conceito “pela cauda”: por relâmpagos, fórmulas, surpresas de expressão, dispersos através da grande corrente do Imaginário; estou do lado mau do amor, do seu lado deslumbrante: “O lugar mais sombrio, diz um provérbio chinês, situa-se sempre sob a lâmpada.”

2. Ao sair do cinema, sozinho, matutando no meu problema de amor que o filme não fora capaz de fazer esquecer, exclamo bizarramente: não: que isto acabe! Mas: quero compreender (o que me está a acontecer)!

3. Repressão: quero analisar, saber, enunciar numa outra linguagem que não seja a minha; quero representar a mim próprio o meu delírio, quero “olhar de frente” o que me divide, me corta. Compreendei a vossa loucura: era a ordem de Zeus, ao dizer a Apolo que virasse o rosto dos Andróginos divididos (como um ovo, uma sorva) na direcção do golpe (o ventre) “para que a visão da sua separação os torne menos ousados”. Compreender não é cindir a imagem, desfazer o eu, órgão soberbo do desconhecimento?

4. Interpretação: não é aí que está o significado do vosso grito. Esse grito, na verdade, é ainda um grito de amor: “Quero compreender-me, fazer-me compreender, fazer-me conhecer, fazer-me beijar, quero que alguém me leve consigo.” Eis o que significa o vosso grito.

5. Quero mudar de sistema: nunca mais desmascarar, nunca mais interpretar, mas fazer da própria consciência uma droga e através dela aceder à visão sem fim do real, ao grande sonho claro, ao amor profético.

6. (E se a consciência – uma tal consciência – fosse o nosso futuro humano? Se, graças a uma volta suplementar da espiral, num dia, deslumbrante entre todas, desaparecida toda a energia reactiva, a consciência se tornasse enfim nisto: a abolição do patente e do latente, da aparência e do escondido? Se à análise fosse pedido não que destruísse a força (nem mesmo a corrigisse ou dirigisse) mas apenas que a decorasse, à maneira do artista? Imaginemos que a ciência do lapso descobre um dia o seu próprio lapso e que esse lapso é: uma forma nova, estranha, da consciência?)
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Roland barthes, Fragmentos de um discurso amoroso, 1977, Edições 70

domingo, 26 de setembro de 2010


Jardim da Estrela, 4 de Abril de 2009
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Partida
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Ao ver escoar-se a vida humanamente
Em suas águas certas, eu hesito,
E detenho-me às vezes na torrente
Das coisas geniais em que medito.

Afronta-me um desejo de fugir
Ao mistério que é meu e me seduz.
Mas logo me triunfo. A sua luz
Não há muitos que a saibam reflectir.

A minh'alma nostálgica de além,
Cheia de orgulho, ensombra-se entretanto,
Aos meus olhos ungidos sobe um pranto
Que tenho a fôrça de sumir também.

Porque eu reajo. A vida, a natureza,
Que são para o artista? Coisa alguma.
O que devemos é saltar na bruma,
Correr no azul á busca da beleza.

É subir, é subir àlem dos céus
Que as nossas almas só acumularam,
E prostrados resar, em sonho, ao Deus
Que as nossas mãos de auréola lá douraram.

É partir sem temor contra a montanha
Cingidos de quimera e d'irreal;
Brandir a espada fulva e medieval,
A cada hora acastelando em Espanha.

É suscitar côres endoidecidas,
Ser garra imperial enclavinhada,
E numa extrema-unção d'alma ampliada,
Viajar outros sentidos, outras vidas.

Ser coluna de fumo, astro perdido,
Forçar os turbilhões aladamente,
Ser ramo de palmeira, água nascente
E arco de ouro e chama distendido...

Asa longinqua a sacudir loucura,
Nuvem precoce de subtil vapor,
Ânsia revolta de mistério e olor,
Sombra, vertigem, ascensão - Altura!

E eu dou-me todo neste fim de tarde
À espira aérea que me eleva aos cumes.
Doido de esfinges o horizonte arde,
Mas fico ileso entre clarões e gumes!...

Miragem rôxa de nimbado encanto -
Sinto os meus olhos a volver-se em espaço!
Alastro, venço, chego e ultrapasso;
Sou labirinto, sou licorne e acanto.

Sei a distância, compreendo o Ar;
Sou chuva de ouro e sou espasmo de luz;
Sou taça de cristal lançada ao mar,
Diadema e timbre, elmo real e cruz...

. . . . . . . . . . . . . . .
. . . . . . . . . . . . . . .

O bando das quimeras longe assoma...
Que apoteose imensa pelos céus!
A côr já não é côr - é som e aroma!
Vem-me saudades de ter sido Deus...

* * *

Ao triunfo maior, avante pois!
O meu destino é outro - é alto e é raro.
Únicamente custa muito caro:
A tristeza de nunca sermos dois...
.
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Mário de Sá-Carneiro, in 'Dispersão'




sexta-feira, 24 de setembro de 2010

“A vida intensa é contrária ao Tao”, ensina Lao-Tse, o homem mais normal que alguma vez existiu. Mas o vírus cristão corrói-nos: herdeiros dos flagelantes, é refinando os nossos suplícios que tomamos consciência de nós próprios.
(…) A “vida intensa” faz-se à custa tanto do espírito como do corpo. Mestres na arte de pensar contra si próprio, Nietzsche, Baudelaire, Dostoievski ensinaram-nos a apostar nos nossos perigos, a alargar a esfera dos nossos males, a ganhar existência através da divisão interna do nosso ser. E aquilo que aos olhos do grande chinês era símbolo de decadência, exercício de imperfeição, constitui para nós a única modalidade por que nos possuímos, por que entramos em contacto connosco próprios.
“Que o homem nada ame, e será invulnerável” (Tchuang-tsé). Máxima tão profunda como inoperante. Como atingir o apogeu da indiferença quando até a nossa apatia é tensão, conflito, agressividade? Não há nenhum mestre de sabedoria entre os nossos antepassados, mas sim seres insatisfeitos, caprichosos, frenéticos, cujas decepções ou excessos temos, de uma maneira ou de outra, que continuar.
(…) A esfera da consciência reduz-se na acção, por isso ninguém que aja pode aspirar ao universal, porque agir é agarrar-se às propriedades de ser em detrimento do ser, a uma forma de realidade em prejuízo da realidade. O grau da nossa emancipação mede-se pela quantidade das iniciativas de que nos libertámos, bem como pela nossa capacidade de converter em não-objecto todo o objecto. Mas nada significa falar de emancipação a propósito de uma humanidade apressada que se esqueceu de que não é possível reconquistar a vida nem gozá-la sem primeiro a ter abolido.
Respiramos demasiado depressa para sermos capazes de captar as coisas em si próprias ou de denunciar a sua fragilidade. O nosso ofegar postula-as e deforma-as, cria-as e desfigura-as, e amarra-nos a elas.
(…) Empanturrados de sensações e do seu corolário, o devir, somos seres não libertos, por inclinação e por princípio, condenados de eleição, presas da febre do visível, pesquisadores desses enigmas de superfície que estão à altura do nosso desânimo e da nossa trepidação.
Se queremos recuperar a nossa liberdade, devemos pousar o fardo da sensação, deixar de reagir ao mundo através dos sentidos, romper os nossos laços. Ora, toda a sensação é um laço, tanto o prazer como a dor, tanto a alegria como a tristeza. Só se liberta o espírito que, puro de toda a convivência com seres ou com objectos, se aplica à sua vacuidade.
(…) Ao mesmo tempo que remexemos nos nossos males, os dos outros não deixam de nos interpelar. Na época das biografias, ninguém pode encobrir as suas chagas sem que tentemos descobri-las e pô-las à luz do dia; quando não conseguimos fazê-lo, afastamo-nos cheios de decepção. E mesmo aquele que acabou na cruz não é de maneira alguma por ter sofrido por nós que ainda conta aos nossos olhos, mas simplesmente por ter sofrido e soltado alguns gritos tão profundos quanto gratuitos. Porque aquilo que veneramos nos nossos deuses são as nossas derrotas embelezadas.
(…) Mais ainda do que o estilo, o próprio ritmo da nossa vida assenta na honorabilidade da revolta. Repugnando-nos admitir a identidade universal, afirmamos a individuação, a heterogeneidade, como fenómeno primordial. Ora, revoltarmo-nos é postular essa heterogeneidade, concebê-la de algum modo como anterior ao advento dos seres e dos objectos. Se oponho a Unidade, só ela verídica, à multiplicidade, necessariamente enganadora, se, noutros termos, assimilo o outro a um fantasma, a minha revolta torna-se vazia de sentido, essa revolta que, para existir, tem de partir da irredutibilidade dos indivíduos, da sua condição de nómadas, de essências circunscritas. Todo o acto institui e reabilita a pluralidade, e, conferindo à pessoa realidade e autonomia, reconhece implicitamente a degradação, a fragmentação do absoluto. E é dele, do acto, e do culto que lhe é dedicado, que procede a tensão do nosso espírito, bem como essa necessidade de explodirmos e nos destruirmos no cerne da duração. A filosofia moderna, ao instaurar a superstição do Eu, tornou-o a mola real dos nossos dramas e o eixo das nossas inquietações. Chorar o repouso no indistinto, o sonho neutro da existência sem qualidades, de nada serve; quisemo-nos sujeitos, e todo o sujeito é ruptura com a quietude da Unidade. Quem se disponha a atenuar a nossa solidão ou as nossas dilacerações age contra os nossos interesses e contra a nossa vocação. Medimos o valor do indivíduo pela soma dos seus desacordos com as coisas, pela sua incapacidade de ser indiferente, pela sua recusa de tender para o objecto. Daí a depreciação da ideia de Bem, daí a voga do Diabo.
(…) Procurar o sofrimento para evitar a redenção, seguir ao contrário o caminho da libertação, tal é o nosso contributo em matéria de religião: iluminados biliosos, budas e Cristos hostis à salvação, pregando aos miseráveis os encantos da sua desgraça. Raça superficial, se quiserem. Mas não deixa de ser verdade que o nosso primeiro antepassado só nos deixou por herança o horror ao Paraíso. Ao dar um nome às coisas preparava a sua e a nossa queda. Se quisermos remediá-la, teremos de começar por desbaptizar o universo, por retirar a etiqueta que, posta em cada aparência, a eleva e lhe empresta um simulacro de sentido. Entretanto, tudo em nós, até as células nervosas, sente repulsa pelo Paraíso. Sofrer: única modalidade de aquisição da sensação de existir; existir: único modo de salvaguardarmos a nossa perda. E assim será até que uma cura de eternidade nos desintoxique do devir, enquanto não nos aproximarmos desse estado no qual, segundo um budista chinês, “o instante vale dez mil anos”.
Se o absoluto corresponde a um sentido que não soubemos cultivar, entreguemo-nos a todas as rebeliões: elas acabarão por se voltar contra si próprias, contra nós próprios…Talvez recuperemos, então, a nossa supremacia sobre o tempo; a menos que, no extremo oposto, e querendo escapar à calamidade da consciência, nos juntemos aos animais, às plantas e aos objectos, e a essa estupidez primordial de que, por culpa da História, perdemos até mesmo a recordação.

em A tentação de existir, E.M.Cioran, Relógio d’água, 1988

segunda-feira, 20 de setembro de 2010

Os cínicos e os moralistas estão de acordo quanto a colocar as voluptuosidades do amor entre os prazeres ditos grosseiros, entre o prazer de beber e o de comer, declarando-os, contudo, visto que asseguram poder viver-se sem eles, menos indispensáveis que os outros. Do moralista espero tudo, mas espanta-me que o cínico se engane nesse ponto. Admitamos que uns e outros tenham medo dos seus demónios, quer lhes resistam, quer se lhes abandonem, e se esforcem por aviltar o seu prazer, a fim de lhe retirar o poder quase terrível, ao qual sucumbem, e o seu estranho mistério, em que se sentem perdidos. Acreditaria nesta assimilação do amor às alegrias puramente físicas (supondo que existem) no dia em que visse um apreciador de bons petiscos soluçar de delícia diante do seu prato favorito, como um amante encostado a um ombro juvenil. De todos os nossos jogos é o único que pode perturbar a alma, o único também em que o jogador se abandona necessariamente ao delírio do corpo. Não é preciso que o bebedor abdique da sua razão, mas o amante que conserva a sua, não obedece até ao fim ao seu Deus. Em toda a parte a abstinência ou o excesso não aliciam senão o homem só: salvo no caso de Diógenes, cujas limitações e carácter de racional pessimista se evidenciam por si próprios, todo o procedimento sensual nos coloca em presença do Outro, nos implica nas exigências e nas servidões da escolha. Não conheço outra em que o homem se resolva por razões mais simples e inelutáveis, em que o objecto escolhido seja avaliado mais exactamente pelo seu peso bruto de delícias, em que o amador de verdades tenha mais possibilidades de julgar a criatura nua. A partir de um despojamento que se iguala ao da morte, de uma humildade que ultrapassa a da derrota e da prece, fico maravilhado ao ver renovar-se sempre a complexidade das recusas, das responsabilidades, dos factores, das pobres confissões, das frágeis mentiras, dos compromissos apaixonados entre o meu prazer e o do Outro, tantos laços que é impossível quebrar e contudo tão depressa desfeitos. Este jogo misterioso que vai do amor de um corpo ao amor de uma pessoa pareceu-me suficientemente belo para lhe consagrar uma parte da minha vida. As palavras enganam, visto que esta – prazer – esconde realidades contraditórias, comporta ao mesmo tempo as noções de tepidez, doçura, intimidade de corpos, e as de violência, agonia e grito. A pequena frase obscena de Possidónio sobre o atrito de duas parcelas de carne, que te vi copiar nos teus cadernos escolares com uma aplicação de menino ajuizado, não define o fenómeno do amor, assim como a corda que o dedo faz vibrar se não apercebe do milagre dos sons. Essa frase insulta menos a voluptuosidade que a própria carne – instrumento de músculos, de sangue e de epiderme, essa nuvem vermelha cujo relâmpago é a alma.
E confesso que a razão fica confundida perante o prodígio do amor, da estranha obsessão que faz que esta mesma carne, que tão pouco nos preocupa quando compõe o nosso próprio corpo, limitando-nos a lavá-la, a alimentá-la e, se possível, a impedi-la de sofrer, possa inspirar-nos uma tal paixão de carícias simplesmente porque é animada por uma individualidade diferente da nossa e porque representa certos lineamentos de beleza sobre os quais, aliás, os melhores juízes não estão de acordo. Aqui a lógica humana fica aquém, como nas revelações dos Mistérios. A tradição popular não se enganou ao ver sempre no amor uma forma de iniciação, um dos pontos em que o secreto e o sagrado se encontram. A experiência sensual compara-se ainda aos Mistérios, na medida em que a primeira aproximação dá ao não iniciado a impressão de um rito mais ou menos assustador, escandalosamente afastado das funções familiares de dormir, de beber e de comer, motivo de brincadeiras, de vergonha ou de terror. Tanto como a dança das Ménades ou o delírio dos Coribantes, o nosso amor arrasta-nos para um universo diferente, onde, noutros tempos, nos era interdito entrar e onde deixamos de nos orientar desde que o ardor se extingue ou que o prazer se desenlaça. Pregado no corpo amado como um crucificado na sua cruz, aprendi acerca da vida alguns segredos que já se desvanecem na minha lembrança, por efeito da mesma lei que leva o convalescente, depois de curado, a deixar de se encontrar nas verdades misteriosas do seu mal, o prisioneiro posto em liberdade a esquecer a tortura ou o triunfador desembriagado a glória.
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Memórias de Adriano, Marguerite Yourcenar, Ulisseia, tradução Maria Lamas
Pensei várias em elaborar um sistema de conhecimento humano baseado no erótico, uma teoria do contacto, em que o mistério e a dignidade de outrem consistiria precisamente em oferecer ao Eu esse ponto de apoio de um outro mundo. A voluptuosidade seria, nessa filosofia, uma forma mais completa, mas também mais especializada, dessa aproximação do Outro, mais uma técnica posta ao serviço do conhecimento daquilo que não somos nós. Nos encontros, mesmo os menos sensuais, é ainda no contacto que a emoção se completa ou nasce: a mão um tanto repugnante desta velha que me apresenta uma petição, a fonte humedecida de meu pai na agonia, a chaga lavada de um ferido. As próprias relações intelectuais ou as mais neutras ocorrem através deste sistema de sinais do corpo: o olhar subitamente esclarecido de um tribuno a quem explicam uma manobra na manhã de uma batalha, a saudação impessoal de um subalterno que a nossa passagem paralisa numa atitude de obediência, o esgar amigável do escravo a quem eu agradeço ter-me trazido uma bandeja, ou a expressão apreciadora de um velho amigo perante o camafeu grego que lhe oferecem. Com a maior parte dos seres, os mais ligeiros, os mais superficiais desses contactos bastam ao nosso desejo, ou mesmo já o excedem. Que eles insistam, se multipliquem em volta de uma única criatura até a cativar completamente; que cada parcela de um corpo assuma para nós tantas significações perturbantes como os traços de uma fisionomia; que um único ser, em vez de nos inspirar quando muito irritação, prazer ou aborrecimento, nos obsidie como uma música ou nos atormente como um problema; que ele passe da periferia do nosso universo ao seu centro, se nos torne, enfim, mais indispensável que nós próprios, e o espantoso prodígio realiza-se, no que eu vejo mais uma invasão da carne pelo espírito que um simples jogo da carne.
Tais pontos de vista sobre o amor poderiam conduzir a uma carreira de sedutor. Se a não segui foi sem dúvida porque fiz outra coisa, aliás melhor. À falta de génio, semelhante carreira requer cuidados e mesmo estratagemas, para os quais me sentia pouco disposto. Essas armadilhas preparadas, sempre as mesmas, essa rotina restringida a perpétuos encontros, limitada pela própria conquista, fatigaram-me. A técnica do grande sedutor exige, na passagem de um objecto a outro, uma facilidade, uma indiferença que eu não tenho relativamente a eles: de qualquer maneira, deixaram-me mais que eu os deixei a eles; nunca compreendi que alguém se saciasse de um ser. O desejo de conhecer exactamente as riquezas que cada novo amor nos traz, de o ver mudar, talvez de o ver envelhecer, concilia-se mal com a multiplicidade das conquistas. Acreditei outrora que um certo gosto da beleza substituiria em mim, a virtude, saberia imunizar-me contra as solicitações demasiado grosseiras. Mas enganava-me. O amador de beleza acaba por encontrá-la em toda a parte, filão de ouro nos mais ignóbeis veios, por experimentar, ao tocar essas obras-primas fragmentárias, sujas ou quebradas, um prazer de único conhecedor a coleccionar barros considerados vulgares. Obstáculo mais sério, para um homem de gosto, é uma posição de eminência nos negócios humanos, com o que o poder quase absoluto comporta de riscos, de adulação ou de mentira. A ideia de que um ser se contrafaz na minha presença, por muito pouco que seja, é capaz de me fazer lamentá-lo, desprezá-lo ou odiá-lo. Sofri estes inconvenientes da minha fortuna como um homem pobre sofre os da sua miséria. Um passo mais e teria aceitado a ficção que consiste em pretender que seduzimos quando sabemos que nos impomos. Mas o nojo ou talvez a parvoíce arriscam-se a começar nesse ponto.
Acabar-se-ia por preferir aos estratagemas bafientos da sedução as simples verdades da libertinagem se a mentira não predominasse também aí. Em princípio estou disposto a aceitar que a prostituição seja uma arte como a massagem ou o penteado, mas já se me torna difícil distrair-me nos barbeiros ou nos massagistas. Nada mais grosseiro que os nossos cúmplices. A olhadela oblíqua do dono da taberna que reserva para mim o melhor vinho, e por consequência priva qualquer outra pessoa de o beber, era já o suficiente, aos olhos da minha juventude, para me desgostar dos divertimentos de Roma. Desagrada-me que uma criatura julgue poder gozar antecipadamente o meu prazer, prevê-lo, adaptar-se mecanicamente ao que ela supõe ser a minha escolha. Este reflexo imbecil e deformado de mim mesmo que um cérebro humano me oferece nesses momentos, far-me-ia preferir os tristes efeitos do ascetismo.
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Memórias de Adriano, Marguerite Yourcenar, Ulisseia, tradução de Maria Lamas.

sexta-feira, 17 de setembro de 2010



Jardim da Estrela, Abril de 2009


Jardim da Estrela, Abril de 2009

quinta-feira, 16 de setembro de 2010


Jardim da estrela, 10.4.2009

terça-feira, 14 de setembro de 2010



Praia de Faro, 29 de Agosto 2010 20.30 e 21h


segunda-feira, 13 de setembro de 2010


Duas cidades com aeroporto: Madrid e Faro. Com possibilidade de estarem ligadas ao resto do mundo.
Nas duas fotos, eu espero. Espero uma ligação. Espero conectar-me. Espero.
Vislumbro nas sombras a presença de algo. Algo que nos observa e nos quer falar.
Mas impossível. Por ser sombra e reflexo de uma qualquer forma cheia de realidade e vontade de o ser. As sombras não têm vontade.
Talvez tenham uma delicadeza, um contorno, uma luz, somente existentes na alma.
Algo permanece. Uma sensação inexprimível ,de infinitos momentos em infinita transformação.
Um amor mudo e intenso pelo objecto que nos faz existir.
Uma sombra é uma luz que vive intensamente o seu luto.