terça-feira, 28 de setembro de 2010

COMPREENDER: Vendo de repente o episódio de amor como um nó de razões inexplicáveis e de soluções bloqueadas; o sujeito exclama: “Quero compreender (o que me está a acontecer)!”
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1. Que penso do amor? – Em suma, nada penso. Gostaria de saber o que é, mas, estando nele embrenhado, vejo-o em existência, não em essência. Isto que quero conhecer (o amor) é a mesma matéria que utilizo para falar (o discurso de amor). É-me certamente permitida a reflexão, mas, como essa reflexão fica imediatamente presa na repetição das imagens, não se transforma em reflexibilidade: excluído da lógica (que admite linguagens exteriores umas às outras), não posso pretender pensar bem. Assim, por mais que discorra sobre o amor ao longo do ano, apenas poderia ter a esperança de agarrar o conceito “pela cauda”: por relâmpagos, fórmulas, surpresas de expressão, dispersos através da grande corrente do Imaginário; estou do lado mau do amor, do seu lado deslumbrante: “O lugar mais sombrio, diz um provérbio chinês, situa-se sempre sob a lâmpada.”

2. Ao sair do cinema, sozinho, matutando no meu problema de amor que o filme não fora capaz de fazer esquecer, exclamo bizarramente: não: que isto acabe! Mas: quero compreender (o que me está a acontecer)!

3. Repressão: quero analisar, saber, enunciar numa outra linguagem que não seja a minha; quero representar a mim próprio o meu delírio, quero “olhar de frente” o que me divide, me corta. Compreendei a vossa loucura: era a ordem de Zeus, ao dizer a Apolo que virasse o rosto dos Andróginos divididos (como um ovo, uma sorva) na direcção do golpe (o ventre) “para que a visão da sua separação os torne menos ousados”. Compreender não é cindir a imagem, desfazer o eu, órgão soberbo do desconhecimento?

4. Interpretação: não é aí que está o significado do vosso grito. Esse grito, na verdade, é ainda um grito de amor: “Quero compreender-me, fazer-me compreender, fazer-me conhecer, fazer-me beijar, quero que alguém me leve consigo.” Eis o que significa o vosso grito.

5. Quero mudar de sistema: nunca mais desmascarar, nunca mais interpretar, mas fazer da própria consciência uma droga e através dela aceder à visão sem fim do real, ao grande sonho claro, ao amor profético.

6. (E se a consciência – uma tal consciência – fosse o nosso futuro humano? Se, graças a uma volta suplementar da espiral, num dia, deslumbrante entre todas, desaparecida toda a energia reactiva, a consciência se tornasse enfim nisto: a abolição do patente e do latente, da aparência e do escondido? Se à análise fosse pedido não que destruísse a força (nem mesmo a corrigisse ou dirigisse) mas apenas que a decorasse, à maneira do artista? Imaginemos que a ciência do lapso descobre um dia o seu próprio lapso e que esse lapso é: uma forma nova, estranha, da consciência?)
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Roland barthes, Fragmentos de um discurso amoroso, 1977, Edições 70

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