domingo, 19 de dezembro de 2010

(...) A percepção emocional conhecemos por exemplo da música. O primeiro andamento daquela sonata para violoncelo - e em dois segundos surge aquele sentimento! (Sonata nº2 em Fá maior) E não sei porquê. Em relação à arquitectura também é um pouco assim. Não tão forte como na maior das artes, mas está lá. Vou ler-vos a título de exemplo o que escrevi a este respeito no meu livro de apontamentos. "É Quinta-feira Santa de 2003. Sou eu. Estou ali sentado. Uma praça ao sol, uma arcada grande, longa, alta e bonita ao sol. A praça - frente de casas, igreja, monumentos - como panorama à minha frente. A parede do café nas minhas costas. A densidade certa de pessoas. Um mercado de flores. Sol. Onze horas. A parede do outro lado da praça na sombra, em tons agradavelmente azuis. Sons maravilhosos, conversas próximas, passos na praça, pedra, pássaros, um leve murmúrio da multidão, sem carros, sem barulho de motores, de cada vez em quando ruídos de obra ao longe. Os feriados a começar já tornaram os passos das pessoas mais lentos, imagino. Duas freiras - isto é realidade e não imaginação - duas freiras cruzam a praça, gesticulando, de passos leves e toucas a agitarem-se levemente ao vento, cada uma traz um saco de plástico. A temperatura: agradavelmente fresco, com calor. Estou sentado na arcada, num sofá estofado em verde mate, a figura de bronze à minha frente no alto pedestal está de costas para mim e olha, como eu, para a igreja de duas torres. As duas torres da igreja têm cúpulas diferentes, que em baixo começam de forma igual e que ao subir se individualizam. Uma é mais alta e tem uma coroa dourada à volta do topo. Em breve, B virá ter comigo, cruzando a praça na diagonal." Agora, o que é que me tocou? Tudo. Tudo, as coisas, as pessoas, o ar, ruídos, sons, côres, presenças materiais, texturas e também formas. Formas que consigo compreender. Formas que posso tentar ler. Formas que acho belas. E o que é que me tocou para além disso? A minha disposição, os meus sentimentos, a minha expectativa na altura em que ali estive sentado. E vem-me à cabeça esta famosa frase inglesa que remete a Platão: "Beauty is in the eye of the beholder". Isto é: tudo existe apenas dentro de mim. Mas depois faço a experiência e elimino a praça. E já não tenho os mesmos sentimentos. Uma experiência simples, desculpem a simplicidade do meu pensamento. Mas ao eliminar a praça - os meus sentimentos desaparecem. Naquela altura nunca os teria tido da mesma forma sem a atmosfera da praça. Lógico. Existe um efeito recíproco entre as pessoas e as coisas. E é com isto que me identifico como arquitecto. E é isto a minha paixão. Existe uma magia do real. No entanto, conheço bem a magia dos pensamentos. E a paixão dos pensamentos belos. Mas aqui estou a falar daquilo que muitas vezes acho ainda mais incrível: a magia do verdadeiro e do real.(...)
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Peter Zumthor, Atmosferas, Gustavo Gili, 2006

sábado, 18 de dezembro de 2010


(...)o que é no fundo a qualidade arquitectónica? É relativamente fácil de responder. A qualidade arquitectónica - para mim - não significa aparecer nos guias arquitectónicos ou na história da arquitectura ou ser publicado etc...Qualidade arquitectónica só pode significar que sou tocado por uma obra. Mas porque diabo me tocam estas obras? E como posso projectar tal coisa? Como posso projectar algo como o espaço desta fotografia - é um ícone pessoal, nunca vi este edifício, acho que já não existe, e, no entanto, adoro vê-lo. Como se podem projectar coisas assim, que têm uma presença tão bela e natural que me toca sempre de novo.
Uma demonstração para isto é a atmosfera. Todos nós a conhecemos: vemos uma pessoa e temos uma primeira impressão. E eu aprendi: não confies nisto, tens de dar uma oportunidade a esta pessoa. Agora estou um pouco mais velho e tenho de dizer que voltei para a primeira impressão. Em relação à arquitectura também é um pouco assim. Entro num edifício, vejo um espaço e transmite-se uma atmosfera e numa fracção de segundo sinto o que é.
A atmosfera comunica com a nossa percepção emocional, isto é, a percepção que funciona de forma institiva e que o ser humano possui para sobreviver. Há situações em que não podemos perder tempo a pensar se gostamos ou não de alguma coisa, se devemos ou não saltar e fugir. Existe algo em nós que comunica imediatamente connosco. Compreensão imediata, ligação emocional imediata, recusa imediata. É diferente daquele pensamento linear que também possuimos e que também amo, chegar de A a B racionalmente, obrigando-nos a pensar sobre tudo. (...)
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Peter Zumthor, Atmosferas, Gustavo Gili, 2006

quinta-feira, 16 de dezembro de 2010

A profissão de arquitecto é extremamente exigente. Pressupõe que tenhamos um conhecimento pormenorizado do modo de construir, um perfeito domínio do espaço e das proporções, uma inteligência e percepção clara do que é necessário para que um projecto se adeque ao local e à função para que é destinado. E esse destino, essa sina do arquitecto, deveria ser, o de conceber algo intemporal, mas também, que vá de encontro às pessoas que usufruem do espaço criado, que lhes acrescente algo, como a beleza, ou um certo olhar particular sobre o mundo que as rodeia, que lhes traga um sentido de organização do espaço, que elas próprias adoptam para as suas vidas. Como um filho que em vez de estar dentro de uma barriga, somos nós que estamos no seu interior; respiramos e somos nutridos por esse ser, essa forma, que nos envolve.
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Existe algo que me faz confusão, mas é perfeitamente natural que aconteça, se na sua formação, o arquitecto não fôr sensibilizado para tal. Porque é que nem todos os arquitectos têm a percepção isenta, da qualidade do seu trabalho, e não sabem fazer o diagnóstico correcto das premissas que devem orientar e estruturar o seu projecto? Que fazer arquitectura é antes de mais criar um ser vivo, criar uma planta, criar um animal, que precisa de ser alimentado, acariciado, respirado, no fundo, sentido como algo que vai fazer parte de todos os nossos sentidos, que vai ser modificado e habitado por nós, ao longo do tempo, como um ser vivo, igual a nós. A forma-função deverá pois, ser orgânica...terá de dialogar com o espaço envolvente...deverá gerar encantamento.
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Como saber se somos bons arquitectos, ou melhor, se estamos a fazer boa arquitectura? Saber responder a essa pergunta faz parte da percepção e formação inerente a um bom arquitecto. Ver, reflectir, ensaiar soluções...e chegar a um objecto arquitectónico de qualidade, obedece a uma ideia que germinou no local de intervenção, percorreu a história da arquitectura e a sensibilidade cultural, espacial e poética de cada arquitecto envolvido. Um edifício concebido através unicamente da sua funcionalidade e que depois decoramos para que fique apresentável e credível, em geral, é um objecto morto, sem vida...como peça de arquitectura, desinteressante...
A PARTIDA DE XADREZ
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Um inglês e uma mulher da Rússia conheceram-se em Capri e viveram um breve e pungente encontro de amor. Depois o inglês regressou a Londres e a mulher à sua grande planície. Decidiram continuar o seu amor jogando uma longa partida de xadrez à distância. De tempos a tempos, chegava à Rússia uma carta com a jogada a fazer e, logo depois, chegava à Rússia a carta com os números de Londres. Entretanto o inglês casou e teve três filhos. A amante viveu também um matrimónio feliz. A partida de xadrez prolongou-se ainda por vinte anos, com uma carta de seis em seis meses. Um dia chegou ao inglês uma jogada de cavalo tão astuta que lhe ganhou a rainha. E ele percebeu que a jogada fora realizada por outra pessoa para lhe indicar que a mulher falecera.
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Tonino Guerra, Histórias para uma noite de calmaria, Assírio e Alvim, 2002
JUNTO AO FOGO
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Decidiu abandonar as mulheres e, por longo tempo, de facto, viveu só. Passeava, olhava as árvores e frequentava o café sem voltar o rosto para qualquer mulher bela.
Mas um dia, uma jovem colocou-se a seu lado e disse-lhe que o amava. Durante muitos dias o homem recusou-a, até que a mulher deixou de vir ao café, desaparecendo sabe-se lá para onde.
Só agora, aquele tal, foi sacudido por tão grande amor que percorreu, a pé, toda a cidade até que parou a conversar com uma daquelas mulheres que vive junto às fogueiras, na periferia. E nem reparou que era a mesma rapariga que o amava.
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Tonino Guerra, Histórias para uma noite de calmaria, Assírio e Alvim, 2002

quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

Miradouro de Santa Lúzia, Lisboa, 30 de Novembro 2010

domingo, 12 de dezembro de 2010

Enquanto a música corre,
e o tempo se confina ao extremo do possível,
...
a duração de uma nota
é algo de inultrapassável.
I. Pela perseguição implacável de todos os exércitos às portas de todos os que pensam na ironia de viver sempre seguros, enquanto seres vivos.
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II. A vida persegue aqueles que vendem a sua alma durante o sono. É preciso recuperar os sentidos nos sonhos. Sentir o precipício da vida.
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III. Não sei se toda a actividade humana será aniquilada pelo uso indevido da razão. Seremos arrastados na avalanche de acções inócuas e sem espírito.
...
A alma vagueia,
o coração nunca será transparente.

sexta-feira, 10 de dezembro de 2010


Santos, Lisboa, 29 de Novembro 2010