terça-feira, 31 de março de 2009


SOFIA PRESTES
STILL LIFE
pintura

4 ABRIL 3 MAIO 2009
www.sofiaprestes.com

Galeria Municipal de Sintra
Praça da República, 23
(Edifício do Turismo)
2710-616 Sintra

Horário
Terça a Sexta das 9h00 à 12h00 e das 14h00 às 18h00.
Sábado, Domingo e Feriados das 14h30m às 19h00.
Encerra à segunda feira.


A minha amiga Sofia é alguém que faz parte de mim. Existem amigos assim, que se entranham por nós dentro; une-nos um amor que está muito para além da posse, do fulgor, do encantamento. Algo nos acompanha como um espírito solidário, um abraçar de almas de grandes asas. Sofia traz-nos o espanto e aquela imensa inocência perante a vida e o ser vivo. As emoções estão no sangue e na terra, na água e nos céus, nas árvores e nas casas. Ela quer viver como um ser vivo por mais insignificante que seja. O importante é o que a vida gera e regenera. Na pintura ela está só, mas transparente, não precisa de outra realidade para se esconder, para viver uma vida melhor. A transcendência está no ser, nas suas mais simples manifestações: no respirar, no lavar, no cavar, no amar, no passear, no pintar…Naturalista dirão uns, da sua pintura, existencialista direi eu, sem qualquer eu dentro dela, que a impeça de ser o que é, na sua naturalidade. O espírito do Zen a acompanha, e traz-nos esta brisa, o marulhar do mar, o canto dos pássaros, o murmurar das árvores, o ladrar dos cães…tudo é vida. O silêncio da pintura obriga todos os sentidos a reconstruírem a realidade. Quando o olhar se fixa, algo em nós desperta os cheiros, os sons, o tacto, o paladar e o olhar, que faz parte das nossas vivências, dos nossos sentires. Por isso, Sofia não é só uma pintora, é alguém que dá vida à pintura.



Texto que acompanha a exposição
Já vai longe o século XIII, em que o povo florentino conduzia triunfalmente pela cidade a Virgem de Cimabue. As crenças da altura exigiam a necessidade de uma tal celebração. Essas crenças – e outras posteriores – tendo desaparecido, põe-se um problema premente: qual pode ser hoje, o significado de uma obra de arte? Na maior parte dos casos estamos na situação de Alice que em Through the Looking Glass, lendo um poema, diz que este ‘enche a cabeça de ideias mas ( ela ) não sabe bem quais’. Há, no entanto, excepções e o trabalho de Sofia Prestes é uma delas. Nas suas pinturas adivinhamos uma necessidade vital, como se perante o fracasso das ideias e dos grandes desígnios só nos restasse escapar à linguagem. A clareza e o sentido, aqui, provem não da racionalidade mas de um fulgor intuitivo. Atenta a pequenas cenas do quotidiano ela descobre, de modo acidental, coincidências ou sincronias que unem o seu mundo interior à realidade física exterior: as fronteiras desaparecem e o seu trabalho atinge o mistério da unidade primitiva. Estas epifanias – ou espasmos e espantos cognitivos – são os prazeres dionisíacos de que Nietzsche tanto falou: dão-nos a ver a embriaguez de quem toca as coisas-em-si. A pintora desaparece, só fica o rasto da sua vivência. Então já não há diferença entre arte e vida. E nós já não somos Alices com a cabeça cheia de ideias ‘sem sabermos bem quais’. Vendo, ouvindo Sofia Prestes falar-nos de deleites e sincronias podemos, como os antigos florentinos, celebrar uma certeza redentora: para além das aparências pós-modernas – as realidades virtuais e seus fogos de artifício –, o mundo existe.

Arbogast PUCCI
Lugano – Suíça Março 2009
(traduzido do italiano por J. P. De Roo)

segunda-feira, 30 de março de 2009

Depois do poema, aqui vai mais qualquer coisa do Pessoa esotérico, extraído do portal:http://multipessoa.net/labirinto/ocultismo

Afinal o conteúdo dos mistérios resume-se em ensinamentos, sobre três ordens de coisas, que sempre se julgou que não devem ser reveladas ao geral dos homens. Sempre se julgou que aqueles ensinamentos, que as religiões ministram, deveriam ser adaptados à mente dos que a os recebem, e, como muitos deles — tal é a opinião dos iniciados — são de ordem que o povo em geral os não compreenderia e que portanto, compreendendo os pervertidamente, se perturbaria com ele, segue que se pensou que esses ensinamentos se deveriam dividir em duas ordens: exotéricos ou profanos os que são expostos de modo a que todos possam ser ministrados; esotéricos ou ocultos os que, sendo mais verdadeiros, ou inteiramente verdadeiros, não convém que se ministrem senão a indivíduos previamente preparados, gradualmente preparados, para os receber. A esta preparação se chamava, e chama, iniciação. E esta iniciação é ela mesma gradual em todos os mistérios, e de tal modo disposta que o indivíduo inapto para receber esses ensinamentos ocultos se revela tal antes que eles lhe sejam inteiramente dados.
Se esses ensinamentos ocultos são verdadeiros, ou apenas especulações abstrusas, é outro problema. Se os hierofantes do oculto têm, na verdade, maior conhecimento da verdade pura do que nós profanos, que a buscamos, se a buscamos, com a leitura; ou a meditação, ou a inteligência discursiva e dialéctica — não o podemos nós saber. Tudo isso pode ser sinceramente crido pelos iniciados, e ser falso. O oculto pode ter alucinações próprias, enganos seus.
Seja como for, o certo é que os ensinamentos ministrados nos mistérios abrangem três ordens de coisas: (1) a verdadeira natureza da alma humana, da vida e da morte, (2) a verdadeira maneira de entrar em contacto com as forças secretas da natureza e manipulá-las, e (3) a verdadeira natureza de Deus ou dos Deuses e da criação do mundo. São, respectivamente, o segredo alquímico, o segredo mágico, e o segredo místico. Ao primeiro chama se alquímico porque os ensinamentos relativos a ele são em geral ministrados através de símbolos da chamada alquimia, que não é mais, como hoje claramente se sabe, do que uma linguagem simbólica.
…..
Mas o significado real da iniciação é que este mundo visível em que vivemos é um símbolo e uma sombra, que esta vida que conhecemos através dos sentidos é uma morte e um sono, ou, por outras palavras, que o que vemos é uma ilusão. A iniciação é o dissipar — um dissipar gradual, parcial — dessa ilusão. A razão do seu segredo é que a maior parte dos homens não está adaptada a compreendê-lo e, portanto, compreendê-lo-á mal e confundi-lo-á, se for tornado público. A razão de ele ser simbólico é que a iniciação não é um conhecimento, mas uma vida, e o homem deve, portanto, descobrir por si o que mostram os símbolos, porque, assim, viverá a vida deles, não se limitando a aprender as palavras em que são mostrados.
Dizer que Cristo é um símbolo do Sol é pôr o processo iniciatório ao invés. É o Sol que é o símbolo de Cristo. Por outras palavras, Cristo é a realidade e o Sol a ilusão, Cristo é a luz, e o Sol a sombra. (O Inefável é a luz; o GA, corpo; o mundo, sombra — a sombra projectada pelo denso quando iluminado pelo subtil. A luz está na circunferência e a sombra lançada para o centro. Isto tem alguma coisa a ver com o pt. dentro do c.?) (Cf. a ideia cabalística do En Soph retirando-se para dentro, manifestando-se dentro e não fora).

Fernando Pessoa e a Filosofia Hermética - Fragmentos do espólio . Fernando Pessoa. (Introdução e organização de Yvette K. Centeno.) Lisboa: Presença, 1985.
Jardim da estrela, Janeiro 2009

Neste mundo em que esquecemos
Somos sombras de quem somos,
E os gestos reais que temos
No outro em que, almas, vivemos,
São aqui esgares e assomos.
Tudo é nocturno e confuso
No que entre nós aqui há.
Projecções, fumo difuso
Do lume que brilha ocluso
Ao olhar que a vida dá.
Mas um ou outro, um momento.
Olhando bem, pode ver
Na sombra e seu movimento
Qual no outro mundo é o intento
Do gesto que o faz viver.
E então encontra o sentido
Do que aqui está a esgarar,
E volve ao seu corpo ido,
Imaginado e entendido,
A intuição de um olhar.
Sombra do corpo saudosa,
Mentira que sente o laço
Que a liga à maravilhosa
Verdade que a lança, ansiosa,
No chão do tempo e do espaço.
9-5-1934
Poesias. Fernando Pessoa. (Nota explicativa de João Gaspar Simões e Luiz de Montalvor.) Lisboa: Ática, 1942 (15ª ed. 1995). - 195.
Aqui poderão ler um artigo interessante sobre este poema: http://www.dhi.uem.br/gtreligiao/pdf/st9/Gebra,%20Fernando.pdf

sábado, 28 de março de 2009

Ainda o Dia Mundial do Teatro. Tenho um grande amigo no teatro, daqueles em que a palavra amigo deveria ter letras bem grandes, e não ser escrita por cinco letras, mas cinco mil. Grande abraço bem lá do fundo.

E LÁ SERÁ MAIS UM DIA MUNDIAL DA HIPOCRISIA

Hipócritas éramos nós, gente do espectáculo, que tínhamos tantas caras que os demais nem sabiam como nos defrontar, e nos consideravam fugidios, falsos, com esse recurso, por todos e desde sempre invejado, de podermos adaptar-nos a outras circunstâncias, camaleões e dançarinos. Mas neste 27 de Março, dia em que se insiste em comemorar o Teatro, nem isso já pode ser nosso atributo, nossa especificidade. Hoje não seremos nós, gente do teatro, stripteseauses da verdade poética, quem terá várias caras, que andam fechados os teatros, em ruínas, degradados, em perigo ou já foram demolidos - e poucos espectáculos se farão nesta noite. Mas haverá almoços, discursos e jantares, debates e inquéritos. E os hipócritas não seremos nós, que há anos (nós e os antes de nós, tantos) pedimos esmola, atenção, diálogo, intervenção, planificação, política aos políticos, certos que estamos de que o teatro não pode estar sujeito ao mercado, é área de intervenção do Estado, coração da língua, a tal língua que só no palco tem corpo e suor - e às vezes essa coisa única, gargalhadas e lágrimas. Vamos, mais uma vez, fingir que nos amam, que nos respeitam, almoçar, ouvir declarações de amor e pedidos de voto, vamos mais uma vez ouvir dizer que povo sem teatro não é povo nesta cultura europeia, que faremos mais com menos (eu até estou de acordo, imaginem... não estou é a ver que se faça o que quer que seja), dar beijos, agradecer e dar abraços, vamos todos fingir. Com a surda raiva de saber que viveremos sempre assim, desprezados, nós, os que éramos hipócritas por definição, escolha e prazer, desprezados por quem nada mais quer da palavra do que o silêncio dos outros. Mas não somos nós os hipócritas originais, os que acreditam na palavra, no seu feitiço - e nela nos enredamos, palavra dos poetas, palavra dos políticos, palavra dos outros que todas as noites tornamos carne nossa - para não mentir à vida? Como vamos encarar toda essa gente que vive à nossa custa - funcionários em barda que se ocupam de "cultura" - e nos vai vir abraçar, beijar, cumprimentar, prometer coisas que sabem tão bem que à primeira esquina, aliança política ou campanha eleitoral não irão cumprir? Como vamos encarar os desmaiados salamaleques - e mesmo as desculpas dos que ainda se desculpam... - de tanta gente? Engolindo para dentro a nossa miséria, a nossa tristeza, calando?Ou herdando o gesto sincero do Zé Povinho, esse rapaz de Bordalo? Pois não está, neste momento, toda a profissão teatral em Portugal a trabalhar de graça, com salários em atraso ou de miséria, por pura incapacidade das autoridades chamadas "culturais", burocratas enredados numa teia de dossiers impraticável e que sobre eles tende a desabar? Não estamos a trabalhar fiado? E não foi o Zé Povo quem dizia "Queres fiado? Toma!", maravilhoso gesto, bela expressão da língua portuguesa?

artigo públicado em 27.03.2009 no Jornal Público por Jorge Silva Melo, Director dos Artistas Unidos, companhia eventualmente apoiada pelo Ministério da Cultura/Direcção Geral das Artes

sexta-feira, 27 de março de 2009

Às vezes fico chocado com a brutalidade, a insensatez, o egoísmo, a mediocridade, a altivez, a hipocrisia, disfarçados por máscaras captivantes várias, sejam artísticas, sentimentais, intelectuais. Mas se calhar todos temos que lidar com a falsidade, mesmo a nossa, por interposta incoerência, timidez, ambição ou ignorância. Aquilo que parece às vezes não o é, mas achamos que existe uma conduta única para a nossa vida a que chamamos personalidade. Somos escravos daquilo que queremos ser, mas passamos a vida a esquecer o que somos sem o querer. O querer é um artifício, esconde as nossas fragilidades, e prático, trabalha a pilhas neurónicas, e permite que nos olhemos ao espelho com outros olhos, e dá-nos uma alegria em contagiar outros com o nosso querer. E digo, como Milosz do poeta, a essência da vida está em não querer, porque o querer afasta-nos daquilo que somos, e por isso, também, daquilo que queremos. Como captar esse relâmpago, esse tigre, que é o nosso ser, quando aparece amiúde sem avisar, eis o que podemos fazer com a nossa sensibilidade, que um dia poderá ser um querer livre de vontade, algo que cresceu dentro de nós com uma vida própria e trancendente. Um dia os homens vão poder sentir aquilo que são na sua inteira dimensão, e poderão beijar a sua alma e o universo, até lá, contentam-se com os seus feitos e o seu orgulho. Que os bons espíritos nos guiem.



ARS POETICA?

Eu sempre aspirei a uma forma mais ampla
que fosse livre da pretensão de ser poesia ou prosa.
e permitisse que nos compreendêssemos uns aos outros,
não expondo o autor ou o leitor a sublimes agonias.

A poesia na sua essência tem algo de chocante:
uma coisa que nasce de nós e não sabíamos que estava dentro de nós,
e piscamos os olhos como se atrás de nós tivesse saltado um tigre,
e ficasse parado na luz, abanando a cauda.

É por isso que se afirma com razão que a poesia é ditada por um demónio,
embora haja exagero em afirmar que deverá ser um anjo.
É difícil de entender de onde vem o orgulho dos poetas,
quando tantas vezes se envergonham pela descoberta da sua fraqueza.

Que homem razoável gostaria de ser uma cidade de demónios,
que nele se multiplicam como em sua própria casa, falando inúmeras línguas,
e como se não lhes bastasse roubar-lhe a boca e as mãos,
ainda tentam alterar-lhe o destino a seu belo prazer?

É verdade que hoje valoriza-se tudo o que é mórbido,
alguém poderá pensar que estou só a brincar,
ou que encontrei mais uma maneira
de elogiar a Arte com a ajuda da ironia.

Houve um tempo em que somente livros sábios eram lidos,
Ajudando-nos a suportar a dor e a desgraça.
Mas isso, apesar de tudo, não é o mesmo que examinar milhares
de obras oriundas directamente de hospitais psiquiátricos.

O mundo é diferente daquilo que deveria ser,
e nós próprios somos diferentes daquilo que transparece dos nossos delírios.
Por isso as pessoas preservam a sua integridade silenciosa,
para conquistar o respeito dos seus próximos e vizinhos.

A finalidade da poesia consiste em lembrar-nos
o quanto é difícil manter a nossa identidade,
pois a nossa casa está aberta, não há chaves nas portas,
e hóspedes invisíveis entram e saem à vontade.

O que estou aqui a dizer, concordo, não é poesia,
os poemas deveriam ser escritos raramente e com relutância,
sob uma pressão insuportável e apenas com a esperança
de que os bons espíritos, e não os maus, nos escolham como seu instrumento.

Czeslaw Milosz


versão inglesa de Czeslaw Milosz aqui: http://info-poland.buffalo.edu/classroom/milosz/ars.html

quarta-feira, 25 de março de 2009


Sete Cidades, Agosto 2007



O nome de Ulrich inspirou este blogue não por mero acaso. Desde 1982 que me acompanha e sem dúvida, que a sua escrita majestosa e delicada, me deliciou na sua arte de bem escrever, marcou a minha maneira de olhar o mundo. Além das ideias, dos raciocínios, dos sentires, dos amares, no Homem sem Qualidades, Musil utilizou os personagens para explanar as suas reflexões na filosofia, na política, no amor, na ciência, na psicologia, não para lhes dar papeis específicos numa trama, ou numa história.
As páginas mais belas e intensas aparecem quando Ulrich se vê finalmente livre da política e da sua formação de matemático e engenheiro, apesar do seu racionalismo nunca o largar, e nos mergulha em reflexões profundas, poéticas, muitas vezes contraditórias, sobre o amor e o espírito, a alma e o devir do humano. Esta passagem que cito é uma estranha reflexão poética, quase onírica, mas tão real, e traz-nos um Ulrich místico, mais uma vez, desencantado por o seu sentir não conseguir abraçar o mundo na sua totalidade. Também é o começo de uma viagem iniciática, espiritual e sentimental, que irá percorrer com Agata. O que verdadeiramente nos liga, nos aproxima ou nos afasta, ao mundo e aos outros? Como podemos sair de nós próprios? Como podemos nos tornar seres humanos mais completos? O que é um sentimento? São algumas reflexões de Musil, também minhas, e questões essenciais ao nosso ser existencial.

“Conheces esta experiência? Perguntou o seu irmão quase persuadido que ela a conhecia. Podemos nos encontrar presos num movimento, o mais violento, quando de repente o olhar incide sobre um objecto qualquer, que Deus e o mundo abandonaram, e nós não conseguimos mais deixar de o olhar. De repente, somos levados pela sua minúscula existência, como uma pena que voa ao vento, livre de toda a gravidade, de todas as forças?
-Com excepção do movimento violento sobre o qual tu insistes tanto, eu creio reconhecê-la – disse Agata. Não pôde deixar de sorrir ao ver o embaraço cheio de veemência que se espraiava no rosto do irmão e que tão mal se coadonava com as suas palavras ternas. - Por vezes esquecemo-nos de ver e ouvir, perdemos a palavra. Portanto, é justamente nesses minutos que temos a impressão, por instantes, de nos reencontrarmos.
- Eu diria – prosseguiu Ulrich com entusiasmo, que é como quando o olhar divaga sobre uma grande superfície de água espelhada: tudo é tão luminoso que o olhar parece apenas captar a obscuridade, e sobre as margens, do outro lado, as coisas parecem não estar assentes sobre a terra, mas flutuar no ar, com uma nitidez excepcional e subtil, quase dolorosa, quase perturbadora. Exaltamo-nos e ficamos deprimidos ao mesmo tempo. Estamos ligados a tudo e nada nos aproxima. Tu estás deste lado, o mundo está daquele, tu mais que subjectiva, ele mais que objectivo, mas os dois quase penosamente neutros; e o que separa e une estes dois elementos vulgarmente interligados, é uma cintilação sombria, um extravasamento (um transbordar), um esvaziamento (um extinguir), uma troca de vibrações. Vocês flutuam como o peixe na água ou o pássaro no céu, mas não existem nem margens, nem ramagens, nada mais que esse flutuar! Ulrich sonhava, sem dúvida; portanto, o fogo e a firmeza da sua voz cortavam como metal sobre o seu tema subtil e flutuante. Parecia ter abandonado a prudência que habitualmente o continha; Agata estava espantada, mas também, com uma alegria esfuziante.”

Nenhuma das traduções existentes em Portugal me satisfaz, daí a minha versão do francês, com variantes entre parêntesis (com pena de não saber alemão). Robert Musil, O Homem sem Qualidades da tradução francesa de Philippe Jaccottet pág. 89 Capítulo 11,Tome II Éditions Le Seuil, 2004, nouvelle édition.

segunda-feira, 23 de março de 2009

As palavras, procuro-as; às vezes nos livros, outras enquanto olho para um pássaro, ou ainda outras, quando o Sol me beija, por vezes, no seu silêncio de oiro. As palavras pousam e eu alimento-as, dou-lhes sílabas e pensamentos, faço-as entrar no meu coração. Depois voam. Sim, voam. Aí percebo que o céu está cheio de palavras, e que elas gostam das pessoas, dos animais, das árvores, mas sobretudo das flôres! De noite as estrelas fazem aquele bailado tão belo com o seu brilho, ao som cristalino do infinito. Preenchem o céu de palavras, e de sonoridades, ainda e só, por nós sonhadas.

domingo, 22 de março de 2009


Adamastor Fevereiro 2009


BREVE PROGRAMA PARA UMA INICIAÇÃO AO CANTO

Ao escrever e independentemente do valor do que escrevo, tenho às vezes a vaga consciência de que contribuo, embora modestamente, para o aperfeiçoamento desta terra onde um dia nasci para nela morrer um dia para sempre. Dou palavras um pouco como as árvores dão frutos, embora de uma forma pouco natural e até antinatural porquanto, sendo como o é a poesia uma forma de cultura, representa uma alteração, um desvio e até uma violência exercidos sobre a natureza. Mas, ao escrever, dou à terra, que para mim é tudo, um pouco do que é a terra. Nesse sentido, escrever é para mim morrer um pouco, antecipar um regresso definitivo à terra.
Escrevo como vivo, como amo, destruindo-me. Suicido-me nas palavras. Violento-me. Altero uma ordem, uma harmonia, uma paz que, mais do que a paz invocada como instrumento de opressão, mais do que a paz dos cemitérios, é a paz, a harmonia das repartições públicas, dos desfiles militares, da concórdia doméstica, das instituições de benemerência. Ao escrever, mato-me e mato. A poesia é um acto de insubordinação a todos os níveis, desde o nível de linguagem como instrumento de comunicação, até ao nível do conformismo, da conivência com a ordem, qualquer ordem estabelecida.
O poeta deve surpreender-se e surpreender, recusar-se como instituição, fugir de integração, da reforma que até mesmo pessoas e grupos aparentemente progressivos lhe começam subtilmente a tentar impor o mais tardar aos trinta anos. Abaixo o oportunismo, a demagogia, seja a que pretexto for. O poeta deve desconfiar dos aplausos, do êxito e até passar a abominar o que escreveu logo depois de ter escrito. Numa sociedade onde quase todos, pertencentes a quase todos os sectores, procuram afinal instalar-se o mais cedo possível, permanecer fiéis à imagem que de si próprios criaram pessoalmente ou por interpostas pessoas, o poeta denuncia-se e denuncia, introduz a intranquilidade nas consciências, nas correntes literárias ou ideológicas, na ordem pública, nas organizações patrióticas ou patrióticas organizações.
Escrever é desconcertar, perturbar e, em certa medida, agredir. Alguém se encarregará de institucionalizar o escritor, desde os amigos, os conterrâneos, os companheiros de luta, até todas aquelas pessoas ou coisas que abominou e combateu. Acabarão por lhe encontrar coerência, evolução harmoniosa, enquadramento numa tradição. Servir-se-ão dele, utilizá-lo-ão, homenageá-lo-ão. Sabem que assim o conseguirão calar, amordaçar, reduzir.
É claro que falo do poeta e não do poetastro, do industrial e comerciante de poemas, do promotor de venda das palavras que proferiu. Falo do homem que nunca repousou sobre o que escreveu, que se recusou a servir-se a si e a servir, que constantemente se sublevou.
Falo do homem que, ombro a ombro com os oprimidos, empunhando a palavra como uma enxada ou uma arma, encontrou ou pelo menos procurou na linguagem um contorno para o silêncio que há no vento, no mar, nos campos.
O poeta, sensível e até mais sensível porventura que os outros homens, imolou o coração à palavra, fugiu da autobiografia, tentou evitar a todo o custo a vida privada. Ai dele se não desceu à rua, se não sujou as mãos nos problemas do seu tempo, mas ai dele também se, sem esperar por uma imortalidade rotundamente incompatível com a sua condição mortal, não teve sempre os olhos postos no futuro, no dia da amanhã, quando houver mais justiça, mais beleza sobre esta terra sob a qual jazerá, finalmente tranquilo, finalmente pacífico, finalmente adormecido, finalmente senhor e súbdito do silêncio que em vão tentou apreender com palavras, finalmente disponível não já tanto para o som dos sinos como para o som dos guizos e chocalhos dos animais que comem a erva que afinal pôde crescer no solo que ele, apodrecendo, adubou com o seu corpo merecidamente morto e sepultado.

Ruy Belo em Transporte do tempo, 1973

sábado, 21 de março de 2009

UM CERTO FENÓMENO CHAMADO MÚSICA

Que irá ficar na criança que durante tanto tempo brincou com as coisas, com a areia e a água, que irá restar nela mais tarde do seu poder de brincar?
Adulto consumado, o mamífero deixa de brincar, ou pouco brinca. No homem, todavia, que é um ser de desenvolvimento demorado, o jogo, engenhosamente introduzido, após ter tido tempo de se tornar importante, usa de manha para não sobreviver em meros vestígios, procurando, e às vezes encontrando, a meio dos comportamentos de adulto, uma nova organização lúdica.
Música, operação do devir, a mais sã operação humana. A música substitui os seres, a mãe, a mulher, a criança, os amigos, naquilo que têm de maravilhoso mas de que só quereríamos amiúde, sem dar por isso, através duma maravilhosa subtracção do que incomoda, guardar apenas isto que os exprime, para os tornar tão inofensivos como as ondas de delícias que dão náuseas. Música, eixo profundo, eixo arcaico que sustém os eixos múltiplos. Eixo, dir-se-ia, anterior à ambivalência.
Arte que canta o divino sem precisar de crer em Deus nem de fazer parte duma religião nem de se ficar por dogmas, sem sequer saber se aquilo que compõe é realmente um hino ou apenas uma maneira de querer tomar lugar em “divinamente”.

A água corre. Eu acotovelo-me.

Henri Michaux, Passages em Retiro pelo Risco, Fenda Tradução de Júlio Henriques

sexta-feira, 20 de março de 2009

As coisas estão ligadas umas às outras por caminhos nem sempre muito evidentes. O prazer da descoberta de mundos dentro do nosso mundo espiritual e amoroso, as portas que se abrem para caminhos até aí desconhecidos. Como dizia o poeta: No ay camiños, ay que camiñar... Eis-me de caras com W.H.Auden, através de Joseph Brodsky, que o considerava "the greatest mind" do séc XX. Aqui vai um poema belíssimo,ainda mais sobre a temática em que quero mergulhar neste blogue.

Canzone by W. H. Auden

When shall we learn, what should be clear as day,
We cannot choose what we are free to love?
Although the mouse we banished yesterday
Is an enraged rhinoceros today,
Our value is more threatened than we know:
Shabby objections to our present day
Go snooping round its outskirts; night and day
Faces, orations, battles, bait our will
As questionable forms and noises will;
Whole phyla of resentments every day
Give status to the wild men of the world
Who rule the absent-minded and this world.

We are created from and with the world
To suffer with and from it day by day:
Whether we meet in a majestic world
Of solid measurements or a dream world
Of swans and gold, we are required to love
All homeless objects that require a world.
Our claim to own our bodies and our world
Is our catastrophe. What can we know
But panic and caprice until we know
Our dreadful appetite demands a world
Whose order, origin, and purpose will
Be fluent satisfaction of our will?

Drift, Autumn, drift; fall, colours, where you will:
Bald melancholia minces through the world.
Regret, cold oceans, the lymphatic will
Caught in reflection on the right to will:
While violent dogs excite their dying day
To bacchic fury; snarl, though, as they will,
Their teeth are not a triumph for the will
But utter hesitation. What we love
Ourselves for is our power not to love,
To shrink to nothing or explode at will,
To ruin and remember that we know
What ruins and hyaenas cannot know.

If in this dark now I less often know
That spiral staircase where the haunted will
Hunts for its stolen luggage, who should know
Better than you, beloved, how I know
What gives security to any world.
Or in whose mirror I begin to know
The chaos of the heart as merchants know
Their coins and cities, genius its own day?
For through our lively traffic all the day,
In my own person I am forced to know
How much must be forgotten out of love,
How much must be forgiven, even love.

Dear flesh, dear mind, dear spirit, O dear love,
In the depths of myself blind monsters know
Your presence and are angry, dreading Love
That asks its image for more than love;
The hot rampageous horses of my will,
Catching the scent of Heaven, whinny: Love
Gives no excuse to evil done for love,
Neither in you, nor me, nor armies, nor the world
Of words and wheels, nor any other world.
Dear fellow-creature, praise our God of Love
That we are so admonished, that no day
Of conscious trial be a wasted day.

Or else we make a scarecrow of the day,
Loose ends and jumble of our common world,
And stuff and nonsense of our own free will;
Or else our changing flesh may never know
There must be sorrow if there can be love.

quinta-feira, 19 de março de 2009

Do meu Pai criei o gosto pela música clássica. Mas apesar da herança musical o meu gosto é o bocadinho diferente do dele. Digamos que gosto de Polifonia renascentista e Barroco, coisas que a ele não dizem nada. Alguns sinfónicos gosto de visitar como Sibelius, mas fujo de um Bruckner, de Shostakovich ou mesmo um Mahler, que me deprimem, mas não resisto a um Brahms, um Bartok, também a Schoenberg da Noite Transfigurada ou Gurrelieder. Ficou o gosto pelo piano e a música de câmara. Quanto a Wagner, fugimos os dois, e tem música tão bela, mas se calhar é demais para nós. A música é qualquer coisa que me acompanha desde que nasci, e o meu Pai dizia que eu adormecia ao som da Aida. Outra coisa que ele me fazia, era pôr-me determinados trechos de música para eu tentar adivinhar o que seria. Ainda hoje continuo a fazer este teste a mim mesmo: no outro dia estava a dar uma música na rádio, clarinete, depois ouvia-se orquestra ao de leve, um concerto supostamente, a linguagem parecia-me algo inglesa, tonal, mas não totalmente romântica, eis-me à beira do séc XX, penso em concertos para clarinete, e surge-me Finzi, e era, e eu não conhecia a música, claro. Não que adivinhar seja o mais importante, mas obriga-nos a dar atenção às características da música, a apreciá-la com um prazer culinário. O piano foi sempre o meu instrumento de eleição, sonho-me várias vezes a tocar piano, e um dia finalmente consegui aprender a tocar. Foi como se já tivesse estado a estudar desde tenra idade. A música é assim, quando faz parte de nós não há nada a fazer, está no nosso sangue em infinitas partituras. Obrigado Pai.

quarta-feira, 18 de março de 2009


Arcos, Ilha do Pico Agosto 2007

Olhando para esta fotografia vem-me ao pensamento quantas pessoas estão no mundo, neste momento, a fazer exactamente as mesmas coisas, com os mesmos gestos, o mesmo olhar, os mesmos sonhos, a mesma alegria, também os mesmos sofrimentos, a mesma violência, a mesma tristeza... A Natureza O Homem O Cosmos

terça-feira, 17 de março de 2009



“Aquilo que pensamos já foi pensado, o que sentimos é caótico, o que somos é obscuro.”

Thomas Bernhard em Trevas

Penso que existe um nível inexplicável e mágico em toda a boa música, que nos ilumina por dentro, mas que a escrita musical não pode tornar visível. Dentro do nosso corpo existem mundos que só nos são revelados através dos sentidos, das nossas intuições, da nossa capacidade em aceitar o encantamento. Muitas vezes a mística recorre precisamente aos paradoxos e às contradições que a reflexão lógica recusa, para dar corpo às suas intuições. Dir-se-ia que a mística fornece ao homem uma das vias condutoras à superação de um abismo dramático e intransponível que atravessa a realidade e a vida.
O verdadeiro sentido da vida nasce do amor e da arte. Parece-me que “a arte foi sempre a arma do homem contra a matéria, que procura engolir o seu espírito. A arte exprime a necessidade de harmonia que o homem e a sua determinação de lutar consigo mesmo, no interior da sua própria individualidade, chegar ao equilíbrio desejado entre matéria e espírito”. Continuando com Tarkovsky “a arte afirma o que o homem tem de melhor: a Esperança, a Fé, o Amor, a Beleza, a Oração. O artista exprime o instinto espiritual da humanidade. Sua obra traduz a tensão do homem diante do Eterno, o Sublime, o Todo-poderoso, apesar do seu estado de pecado.”
Muitas pessoas pensam que um artista é um homem iluminado, cheio de pensamentos profundos, pleno de inspirações momentâneas, mas esquecem que ele é basicamente um ser atormentado pela sua existência, que procura fazer com que a sua natureza continue a existir para além de si próprio, iluminando uma chama trémula e cintilante. A luz é uma luz intermitente, às vezes fraca, outras com tons mais brilhantes. Tudo se passa como se o artista fosse um homem invisível, tal o absurdo da sua ânsia em ser visível, tal a incompleta natureza dos seus sentimentos perante o mundo. Existe sempre algo que lhe escapa, mas na sua vida tudo tem um sentido, e esse sentimento é sempre mais forte que em outros homens.
O filme “Ondas de Paixão” de Lars von Trier ilustra de uma maneira muito bela esta ideia, e esse sentido da vida é levado ao mais profundo e recôndito diamante da alma: o amor de Bess por Jan. Mas esse amor não é um amor vulgar, porque é entendido como uma dádiva de Deus, que nos transporta à Paixão, ao Sacrifício e à Ressurreição. Existe qualquer coisa de místico no amor pelo próximo. Bess tem o poder de ver, sentir, o que os outros não podem sequer adivinhar senão deduzindo que está possuída pela loucura. A loucura de Bess permite-lhe experimentar a graça divina, pois o poder do Amor puro é milagroso (a recuperação de Jan). A alegria de possuir esse Dom é eterna e infinita, graças a Deus (os sinos a repicarem no final).

“Antes de pintar um bambu, o bambu tem de crescer no mais íntimo de nós. É então que de pincel na mão, de olhar concentrado, a visão surge à nossa frente. Captem imediatamente esta visão por meio dos traços do pincel, porque ela pode desaparecer tão subitamente como a lebre que sente aproximar-se o caçador.”

Calígrafo e pintor chinês do séc.XI.

Penso que quem quer seguir qualquer das belas artes: música, pintura, escultura, arquitectura, cinema, fotografia, tem de ter consciência da sua vocação e não simplesmente do seu gosto ou do seu gozo. Digo vocação porque ela pressupõe que se mergulhe mais fundo, e não se transporte o nosso mundo todo na superfície do gosto-não gosto, apetece-não apetece, quero-não quero. Se as coisas nos emocionam temos que procurar que esse sentimento seja construtivo e nos obrigue a mergulhar em profundidade dentro de nós, e não transformar a nossa vida numa série de bons e maus momentos sem nexo, como se a vida fosse exterior a nós mesmos e imposta segundo modelos já estabelecidos. Hoje é fácil ser intelectual, sensível, alternativo. Existem padrões para todos os comportamentos, mesmo a irreverência e o improviso. Importa é perguntar a nós mesmos o que queremos fazer com a nossa vida, quem somos nós e porque somos assim.

“A vida só tem sentido se fôr entendida como a luta contra todos os mecanismos imbecilizantes/alienantes que a sociedade coloca diante de nós sob as formas mais variadas e apetecíveis. Portanto, o único triunfo possível na vida é a absoluta solidão como sobrevivência e a rejeição de toda a actividade embrutecedora e/ou mesquinha.
Temos que lutar contra tudo o que não seja afirmação da própria individualidade.”

Ernesto Sampaio em Trevas de Thomas Bernhard

Às vezes penso como Bernhard, que “só em solidão podemos formar-nos, e sós estaremos sempre, com a consciência de não podermos sair de nós mesmos; o resto não passa de ilusão, dúvida. Nada muda...”, mas ainda acredito no poder regenerador do Amor e da Arte.

Funchal, 7 de Junho de 1998

segunda-feira, 16 de março de 2009

De repente abriram-me o coração. Alguém que na vida luta pelos seus sonhos e procura que os outros possam realizar os seus. Luta por direitos fundamentais e gosta de conduzir o mundo através das grandes causas. É também uma guerrilheira, o seu espírito é contestatário, o seu coração gosta sobretudo de se sentir livre. Colocou dentro de mim explosivos, que eu na procura do amor, fui obrigado a detonar. Ao princípio não percebi que o amor que eu estava a sentir não era o amor por ela, mas sim o amor na sua força regeneradora. O coração abriu, e essa luz intensa que tomou conta de mim só queria uma coisa: expandir. Tudo em mim começou a abanar, a despertar. Sentia-me a enlouquecer, mas no fundo tratava-se de um processo de renascimento, de reencontro com o meu eu profundo. Ela ensinou-me a não desistir de mim, dos meus sonhos, da necessidade de nos mantermos apaixonados pelo mundo, pelas pessoas, pela vida. Guardo dela o seu olhar de imensa doçura. Fiquei encantado pelo seu feitiço, mas agora eu também tenho uma varinha mágica. Obrigado.



Uma recordação de um amigo muito especial, e quando o conheci não entendia o sentido destas suas palavras. O Virgilio já não está entre nós, mas dentro de mim a sua luz guia-me sem eu o saber para o espanto e a paixão do humano e da humanidade. Saudades tuas, meu amigo.

Elsa
Virgílio Caturra

A costa da Caparica é o outro lado de cá da alma. Sem peso aqui flutuo por dentro da ainda mais flutuante Elsa. Caminho com os sentidos cheios de Elsa, vejo-a entre os arbustos, o mar, a pedra mais avançada do pontão, o rolo que se afasta de penas e algas finas como cabelos. O paredão, este bloco por onde caminho feito de rochedos e palavras soltas inextrincáveis com que os homens sonham altivos – a protecção destas terras estéreis da invasão marinha e bárbara, o domar do mar, o dobrar das correntes, o conter das areias em movimento para sul…-, mas são as terras deles; o paredão por cima é liso e atapetado de ventanias em que os bagos ínfimos de areia semeiam evidências teimosas contínuas de erosão. Mesmo no Verão, depois da hora de o calor descongelar, turvam a vista daquela luz que de tão forte passa agora a mais macia, mais macia. Elsa, a pele de Elsa.

Filtro deste modo a fúria tenaz em me apaixonar. Se Elsa é pretexto, não estou sendo justo para Elsa, mas há alguma coisa que no princípio não tenha sido pretexto dalguma coisa? A absorvente dedicação a uma paixão justifica tudo – a recusa do trabalho imposto, o desleixo das obrigações contraídas, a traição aos amigos, o esmorecer das preocupações sociais. Mas sobretudo deixa o apaixonado a sós consigo mesmo, através da presença envolvente daquele que se ama, possibilitando um antever das inúmeras capacidades individuais a que cada um se furta no afundamento nas restrições colectivas, moralmente justificadas como de interesse comum, social, do dia-a-dia. Digamos, Elsa será o lúmen em que me movimento, me alimento. Assim, Elsa não poderá ser uma natureza fechada, aquário de mesmo muito cristaliníssimas paredes. Deverá ser fluido, água e ar. Essência migratória, transmutante, o fogo lhe darei eu, melhor se também dele for ela portadora. Só deste modo e depois de Elsa se ter esquecido poderei experimentar um grande amor. O reconhecer das limitações, de tudo o que não dei a Elsa, fazendo-me crer que o dava, do que lhe roubei, far-me-ão oscilar entre a inexistência e a totalidade globalizante. Em vez de experimentar uma paixão ela-mesmo. E o que tenho é o Grande Amor. É claro que Elsa se recomporá depressa, deverá ter a resistência obstinada das mulheres, o amargor das vicissitudes senão experimentado ainda, ainda será mais enlouquecedor, mal se sinta abandonada. É natural que não fique com grande opinião de mim e que o desabafo de seu peito seja, não sem corrosiva conotação: “Não passará nunca de uma criança…”, ela, sempre tão desesperadamente terna para com as crianças. Esta história já eu sei. Mas terá sempre que ser assim? Deverei imolar Elsa?

Mas como fugir a Elsa, se Elsa é já tudo e o mar. Não me fugisse Elsa a mim.
(Possa a tua mão guiar o arado cego. Por entre os sulcos debicam aves.)
É uma teia que estendo a Elsa. Oxalá possa Elsa escapar.

Antes não sabia que Elsa queria um barco para navegar o mundo inteiro – e quis navegar o mundo de Elsa. Embora fosse o corpo de Elsa que eu quisesse navegar. (Ou antes, fora…). Depois sem barco nem Elsa interrogo no cais perfis, silhuetas, sombras, deslizantes, ortónimas. Pessoas, gente, encorpadas de incorpóreo. Duras como a palavra dura, teima em se agarrar a este desalento premeditado. Represento a tristeza de Elsa ter partido sem barco nem embargo. (Ou que ela não navegasse em mim). Alegre e leve. Espero só não ter demais perturbado a sua descuidada tranquilidade. Agora devo extremamente fatigar o corpo.
Jurei a Elsa e a mim o silêncio de Elsa. Mas como ser dúvida calada?

Envolvido num misterioso romance aguardo a vinda de João. Na sua boca. Suspenso estou e de mãos fortes. Atinjo no nome João a unidade do plural – o rosto de Elsa, os lábios, os olhos dela. Bebo a recordação até me esquecer. É beleza o halo que fica desses momentos, mas quase nuca – é o corpo que se entranha. Não consigo esquecer.

Perder-me de ti. Deve ser terrível perder-te, mas mais enlouquecedor é o começo deste meu amor por ti.

Agosto de 1983

domingo, 15 de março de 2009

Tenho uma amiga que tem uma alma pura e um coração de oiro. Ao mundo exterior ela não se distingue por qualquer feito notável, antes prefere a discrição e a contenção. O seu olhar espalha centenas de anjos que saem do seu coração de oiro. A sua alma toca-me naquilo que em mim é pedra basilar do amor e da vida. O seu amor respira o natural e permanece como uma água purificadora dentro do seu coração. Obrigado.

sábado, 14 de março de 2009

Ando a ler um livro fascinante e não muito comum, de que vos vou trazer extractos. Trata-se de “Pôr o Corpo a Pensar” de Maria João Ceitil edição ISPA, 2003. este da pág 210:

"Porque há qualquer coisa de excessivo em o pensamento se lançar no domínio de um corpo à procura de outro corpo. Porque há qualquer coisa de excessivo em o pensamento acolher a linguagem do contacto. Isso é algo que é difícil de pensar porque só é pensável se o próprio pensamento ficar encantado, enfeitiçado. E a partir do momento em que o pensamento fica encantado, enfeitiçado, muda-se de registo, e já é algo, já há algo que se pensa nesse pensamento. E o desejo está “no coração do pensamento”? É o desejo que dá vida ao pensamento? Há algo que se pensa no pensamento: há algo, independente de nós, que se pensa em nós. Mas se o pensamento fica encantado, enfeitiçado, se pensa segundo a lógica”louca” do contacto, do amor, já não é um pensamento filosófico. Será mesmo assim? O que é a filosofia? O que é que a Filosofia tem a ver com o som dos batuques? O que é que a Filosofia tem a ver com o cheiro do amor e o som dos batuques? O que é que a filosofia tem a ver com o cheiro do leite e do seio e o som do coração? O que é que a Filosofia tem a ver com as emoções mais primárias, mais primitivas que sentimos? Há palavras, conceitos filosóficos, para falar das emoções mais primárias, mais primitivas? O desejo, na sua forma nais primária, mais primitiva, não morre? Pensar o desejo, o corpo, o afecto, o contacto, é um modo privilegiado de pensar o que é a própria Filosofia. Segundo Georges Battaille em “L’Histoire de l’Érotisme”:

“A reflexão humana não pode ser indiferentemente separada de um objecto que lhe diz respeito em primeiro lugar, nós temos necessidade de um pensamento que não se perturbe perante o horror, por último de uma consciência de si que não se furta no momento de explorar a possibilidade até ao fim”

Ilha da Madeira e Desertas Fevereiro 2009


Se há coisa que eu gosto de sentir, é o nascer do dia. Adoro as manhãs, ouvir os pássaros, a frescura inocente, o Sol a abraçar tudo gradualmente sem juízo. Gosto da delicadeza com que a natureza ocupa os seus espaços de vida no cosmos, o respirar, o beijar, o cheirar. Gosto de sentir-me a nascer de novo, e de o olhar se encantar com tudo, como se fôsse a primeira vez.

sexta-feira, 13 de março de 2009




XIV
Procuramos por algo que não vemos:
seu nome é "semente".
Procuramos por algo que não ouvimos:
seu nome é "subtil".
Procuramos por algo que não sentimos:
seu nome é "pequeno".
Essas três coisas são inseparáveis.
Por isso, entrelaçadas, formam o Um.
Seu aspecto superior não é luminoso.
Seu aspecto inferior não é escuro.
Nascendo continuamente, não se pode nomeá-lo.
Ele retorna ao Não-Ser.
A isso dá-se o nome de caos misterioso.
Indo ao seu encontro, não lhe vemos o rosto;
seguindo-o, não lhe vemos as costas.
Quando nos apegamos ao caminho antigo para dominar o Ser de hoje,
podemos conhecer o velho princípio.
Isso quer dizer: o fio condutor do Tao.

X
Serás capaz de educar a tua alma
para que ela abarque a Unidade sem se dispersar ?
Serás capaz de unificar a tua força
e conseguir a delicadeza de uma criança ?
Serás capaz de purificar a tua visão íntima
até torná-la imaculada ?
Serás capaz de amar os homens e governar o estado
de modo que fiques sem conhecimento ?
Serás capaz de, quando se abrem e se fecham as Portas do Céu,
ser como a fêmea de um pássaro ?
Serás capaz de, com a tua clareza e pureza interior,
penetrar em tudo sem precisar de acção ?
Produzir e alimentar,produzir e não possuir,
agir sem guardar para si,
aumentar sem dominar:eis a Vida secreta

Lao Tze -Tao Te King versão Richard Wilhelm


Madalena do Pico, com Faial ao fundo Agosto 2007

As ilhas também são para habitar. Os pensamentos são como ilhas, e existirão sempre rodeados de mar e marés, dependentes da Lua e do Sol. As pessoas são mais marinas, gostam do prazer e do devaneio, inconstantes e impacientes. O coração, esse tem um lanho de todo o tamanho, mas bate e arrisca viver.

Neste mundo, estamos todos vampirizados, fugimos todos à luz, queremos alimentar-nos dos outros procurando a imortalidade. Daí o fascínio da noite. Transformamos o amor nesse ritual secreto e íntimo, nesse devorar em silêncio e em golfadas, do sangue do outro. Não gostamos de o levar para a luz, na luz somos confrontados com a dor da perda, do nosso eu. A luz dilacera-nos no nosso âmago, mas ficamos fascinados pelo jogo de espelhos, de fusão, de narciso. Somos ao mesmo tempo sombras e reflexos, por isso procuramos abraços e corações, para podermos nos olhar e sentir. Existimos assim intermitentes entre o desejo de imortalidade e o de sermos humanos e amados. Para o vampiro o seu espelho é a sua sombra, e o mundo apresenta-se disforme, mas latejante e sedutor. O homem encontrou na arte e na beleza o sangue que ilumina a sua alma, e no amor, algo tão infinito e poderoso, que o sentimos como uma luz intensa, impossível de guardar numa caixa como uma coisa só sua. A vida é isto: respira-se e acontece.



Às vezes pensamos ser o amor aquilo que dá sentido à nossa vida, e o sentimos como uma tábua de salvação. Mas o amor é esse mar imenso que nos rodeia e não a tábua, afogarmo-nos nele é tão só perder o medo de respirar dentro desse mar. Não há nada para agarrar no amor, só a vida, mas essa também um dia nos irá escapar.