sábado, 21 de março de 2009

UM CERTO FENÓMENO CHAMADO MÚSICA

Que irá ficar na criança que durante tanto tempo brincou com as coisas, com a areia e a água, que irá restar nela mais tarde do seu poder de brincar?
Adulto consumado, o mamífero deixa de brincar, ou pouco brinca. No homem, todavia, que é um ser de desenvolvimento demorado, o jogo, engenhosamente introduzido, após ter tido tempo de se tornar importante, usa de manha para não sobreviver em meros vestígios, procurando, e às vezes encontrando, a meio dos comportamentos de adulto, uma nova organização lúdica.
Música, operação do devir, a mais sã operação humana. A música substitui os seres, a mãe, a mulher, a criança, os amigos, naquilo que têm de maravilhoso mas de que só quereríamos amiúde, sem dar por isso, através duma maravilhosa subtracção do que incomoda, guardar apenas isto que os exprime, para os tornar tão inofensivos como as ondas de delícias que dão náuseas. Música, eixo profundo, eixo arcaico que sustém os eixos múltiplos. Eixo, dir-se-ia, anterior à ambivalência.
Arte que canta o divino sem precisar de crer em Deus nem de fazer parte duma religião nem de se ficar por dogmas, sem sequer saber se aquilo que compõe é realmente um hino ou apenas uma maneira de querer tomar lugar em “divinamente”.

A água corre. Eu acotovelo-me.

Henri Michaux, Passages em Retiro pelo Risco, Fenda Tradução de Júlio Henriques

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