quarta-feira, 31 de março de 2010


Estrada da Eira do Serrado, Vasco Gil, Funchal, 30 de Março 2010


Isto de andar pelas zonas altas tem o seu encanto, por vezes, felino. Para a Lena.

segunda-feira, 29 de março de 2010

Roshi Bernard Glassman é um professor zen que está à frente de um projecto para sem-abrigo na zona de Yonkers, em Nova Yorque. Da última vez que o ouvi falar, disse-me uma coisa que me desconcertou: afirmou que não faz propriamente este trabalho para ahudar os outros, fá-lo por sentir que mudar-se para as áreas da sociedade que rejeitou é o mesmo que trabalhar com as partes de si mesmo que rejeitou.
Embora se trate de um pensamento budista comum, é difícil vivê-lo. Até é difícil ouvir dizer que aquilo que rejeitamos lá fora é o que rejeitamos em nós, e que o que rejeitamos em nós é o que vamos rejeitar lá fora. (...) Ter compaixão começa e acaba com termos compaixão por todas as partes indesejadas de nós, por todas as imperfeições para as quais nem queremos olhar. A compaixão não é nenhum tipo de projecto de automelhoramento ou de ideal que queiramos prosseguir nas nossas vidas.

Pema Chodron, Quando Tudo se Desfaz, Lua de Papel (Leya), 2007

sexta-feira, 26 de março de 2010

Machico 25 Março 2010

quarta-feira, 24 de março de 2010



Rothko in Machico, Março 2010


terça-feira, 23 de março de 2010



Tenho andado a folhear os vários livros de Van Gogh que tenho, em especial o da Taschen de que tenho a edição em grande, e que tem imensas coisas não muito vistas, algumas delas até desaparecidas. Tenho a sensação que existem imensos quadros que não são do próprio, serão imitações muito bem feitas. Estes acima, são sublimes, e originais de certeza. Gosto dos quadros e desenhos em que ele simplesmente se deixa ir na sua pulsão pictórica, e foge a qualquer desejo em ser um pintor impressionista. O de cima é um quadro perfeito, o de baixo, é um exemplo de uma imperfeição delirante e mágica.

quarta-feira, 17 de março de 2010


Funchal, zonas altas, 16 de Março 2010
Ainda estou impressionado. Não se trata somente da miséria exterior, de pessoas a viverem em condições precárias. O que mais me inquieta é a indiferença que rodeia todo este estado de coisas, a nossa cumplicidade, o nosso comodismo. Todos nós nos contentamos com a miséria nas nossas vidas, desde que a consigamos esconder! Casamos com alguém que não amamos, aplaudimos artistas medíocres, cumprimos ordens disparatadas, e por aí adiante. Desde que a miséria não nos incomode e consigamos fazer a nossa vidinha, está tudo bem. Depois ela aparece com uma enxurrada, a doença, o silêncio...O consumismo veio mascarar as frustrações e transformá-las em felicidade. O progresso é tornado visível através de tuneis, auto-estradas e centros comerciais. Mas a miséria continua lá, e o mais grave, é ela estar dentro de cada um de nós, nas suas mais variadas formas, e muitas delas aparentemente belas e ricas. "Felizes os pobres de espírito!"ou "pobres os felizes de espírito"? Tal a tamanha absurda disfunção da sociedade em que vivemos. O mais angustiante é do sermos todos cúmplices, participarmos activamente na construção e preservação de uma sociedade assente na hipocrisia, na mentira, sem alma, sem luz. Vivemos todos alienados, e convencidos que somos ricos em espírito, em cultura, em amor, e no fundo transportamos connosco uma quantidade imensa de lixo, de medo e de solidão. Como lutar contra esta pobreza, esta melancólica alegria?




sexta-feira, 12 de março de 2010

Campo da Barca, Funchal 2006
Este blogue começou pela minha necessidade em exprimir, em recolher impressões, do que penso, do que sinto. Foi consequência, alguém resolver remeter-se a um silêncio inexplicável, e que eu não conseguia compreender. Também um outro blogue de que gostava, e que ainda acompanho, mas que retirei da minha lista, por se ter tornado um pouco amargo de mais para meu gosto. De que serve a inteligência se nos servimos dela para ocultar as nossas fraquezas, os nossos medos, as nossas carências e nos pensamos superiores a outros através da cultura que podemos absorver, por exemplo. Não é por acaso que a ideia de inteligência emocional surge nestes tempos.Eu, já há bastante tempo que intui, estar o coração e mesmo o estômago e os órgãos sexuais, ligados a uma forma de inteligência. As emoções são inteligentes e a inteligência está completamente ligada a um pensamento emocional e intuitivo. Ora isto é extremamente fascinante. Mesmo o nosso pensamento racional pode escapar ao nosso controlo, porque não pode existir sem emoções, vindas dos lugares mais inesperados. Na verdade, uma das qualidades que mais admiro numa pessoa, é a inteligência. Não sendo propriamente uma qualidade em si, é sem dúvida, geradora de qualidades. Também admiro a espontaneidade e a capacidade de improviso. No fundo temos que ser inteligentes mas ao mesmo tempo ter a capacidade de nos abstrairmos da sua utilização ou não. Os resultados podem ser surpreendentes: não sabemos na realidade o que somos. A criatividade será esse diálogo permanente entre o que pensamos e o que sentimos. Estamos em contínua metamorfose, em permanente encantamento. Como sair de nós? Como saber do que somos feitos?

quinta-feira, 11 de março de 2010

Como complemento à entrevista de Lourdes Castro, junto passagens do livro Zen e a arte do tiro com arco de Eugen Herrigel, Assírio e Alvim, 2007.
Livro, também para mim, essencial.

Um dos aspectos mais significativos na prática do tiro com arco – e em qualquer outra arte praticada no Japão e provavelmente também noutros países do Extremo Oriente – é o facto de não ter quaisquer propósitos utilitários, nem se destinar à pura fruição estética. Na verdade, representa um exercício da consciência, com o objectivo de a pôr em contacto com a realidade última. Assim, não se pratica o tiro com arco no mero intuito de acertar no alvo, nem se maneja a espada com o fim de vencer o adversário; o bailarino não dança apenas para executar um movimento rítmico: acima de tudo pretende-se harmonizar o consciente com o inconsciente.
No que diz respeito ao tiro com arco, isto significa que atirador e alvo deixam de ser duas entidades opostas, para se unirem numa única realidade. O arqueiro já não tem consciência de si como alguém a quem cabe a tarefa de acertar no alvo à sua frente. Mas este estado de não-consciência só é alcançado quando o arqueiro se desprende e liberta inteiramente do seu Ego, quando forma uma unidade com a perfeição da perícia técnica. Isto é algo completamente diferente de todo e qualquer progresso susceptível de ser alcançado na arte do tiro com arco.
Essa diferença chama-se satori, e pertence a uma ordem inteiramente diversa. Significa intuição, mas distingue-se perfeitamente daquilo que em geral assim se denomina. Por isso lhe chamo intuição-prajna. Prajna pode ser definida como a “sabedoria transcendental”, embora esta expressão também não transmita todas as matizes contidas na palavra, pois prajna é uma intuição que compreende simultaneamente a totalidade e a individualidade de todas as coisas. Essa intuição reconhece, sem qualquer espécie de meditação, que o Zero é infinito – e o Infinito é Zero -; isto não tem um significado simbólico ou matemático, é uma experiência apreensível sem meditação.
Por isso, satori é, em termos psicológicos, o que está para além da fronteira do Ego. Do ponto de vista lógico, trata-se da percepção da síntese de afirmação e negação. Em termos metafísicos, é a apreensão intuitiva do Ser é Devir e Devir é Ser.
A diferença essencial entre o Zen e todas as outras doutrinas de natureza religiosa, filosófica ou mística é o facto de não desaparecer da nossa vida quotidiana e, apesar disso, de todas as suas possibilidades de aplicação prática e do seu carácter concreto, conter algo em si que o demarca do grande teatro mundano da imperfeição e da inquietude.
Referimo-nos à relação entre o Zen e a arte do tiro com arco ou às outras artes como a esgrima, o ikebana, a cerimónia do chá, a dança e as artes mais delicadas.
Zen é a “consciência diária”, na definição de Baso Matsu(falecido em 788). Esta “consciência diária”não é senão “dormir, quando se está cansado e comer, quando se tem fome”. No momento em que reflectimos, ponderamos e construímos conceitos, perde-se o inconsciente original, dando lugar a um pensamento. Já não comemos quando comemos nem dormimos quando dormimos. A seta foi disparada, mas não voa na direcção do alvo, não está onde deveria estar.
O ser humano é uma criatura pensante, mas as suas grandes obras realizam-se quando ele não pensa nem calcula. Após longos anos de treino na arte do esquecimento-de-si, o objectivo é o de recuperar o “estádio de infância”. Uma vez atingido, a pessoa pensa, embora não pensando. Pensa como a chuva que cai do céu; pensa como as vagas que se levantam no mar; pensa como as estrelas que iluminam o céu nocturno; como a folhagem verde que rebenta sob a doçura da aragem primaveril. Na verdade, ele próprio é a chuva, o mar, as estrelas, o verde.
Uma vez atingida esta etapa do desenvolvimento “espiritual”, o indivíduo torna-se um mestre Zen da vida. Não precisa, como o pintor, de tela, pincel e tintas. Não utiliza, como o arqueiro, arco, seta e alvo, nem quaisquer outros apetrechos. Tem os seus membros, o corpo, a cabeça e tudo isso. A sua existência Zen exprime-se através de todos estes “instrumentos”, importantes enquanto formas de manifestação. As mãos e os pés são pincéis e o universo inteiro a tela, onde irá pintar a sua vida, ao longo de sessenta, oitenta ou noventa anos.

Daisetz T. Suzuki da Introdução Zen e a Arte do Tiro com Arco de Eugen Herrigel, Assírio e Alvim, 2007

(...)o tiro com arco revela-nos o confronto do arqueiro consigo próprio. Só é permitido aos que possuem um coração puro e livre de segundas intenções. O confronto consiste em que o arqueiro se transforma a si próprio em alvo. Ele é simultaneamente o que alveja e é alvo, o que atinge e é atingido. O fundamental é que o arqueiro, apesar da sua acção, se converta num centro imóvel. Então sucede algo de grandioso e final: a arte deixa de ser arte e o tiro deixa de ser tiro, pois acontece sem arco e sem flecha. O professor converte-se novamente em aluno, o mestre em aprendiz, o fim em princípio e o princípio em perfeição.
(…)Arco e seta são, por assim dizer, apenas um pretexto para uma busca que os poderia dispensar, um caminho possível para um objectivo, que não é o próprio objectivo, mas uma ajuda para o salto último e decisivo.
(…)aquilo que prevalece nunca é a especulação, mas sim uma experiência directa da insondável profundidade do ente que não pode ser apreendida pela razão, nem mesmo quando se crê haver passado por experiências inequívocas e evidentes, ou seja, sabe-se, na medida em que se não se sabe. Para tornar possíveis essas experiências decisivas, o Budismo-Zen sugere caminhos que, através do aprofundamento em si sistematicamente exercitado, deverão conduzir, no mais fundo da alma, à interiorização, melhor ainda, à integração daquilo que, sem fundo e sem forma, é inominável.


Zen e a Arte do Tiro com Arco de Eugen Herrigel, Assírio e Alvim, 2007

quarta-feira, 10 de março de 2010


Lourdes Castro e Manuel Zimbro no Museu de Serralves
"À luz da sombra"de 5 de Março até 13 de Julho



"continuar a criar sombras, para mostrar o espírito das coisas".
"dar atenção ao que não se vê, ao que está dentro de nós".
"Só crio sombras de pessoas que conheço bem"


"A minha pintura é esta: o viver, o estar cá"
Entrevista no jornal "Público"de 5 de Março por Óscar Faria

Lourdes Castro está em Serralves, numa exposição antológica partilhada, como a vida, com Manuel Zimbro. A sombra e a luz.
No Museu de Arte Contemporânea de Serralves, no Porto, é hoje inaugurada a exposição antológica "À luz da sombra", que reúne trabalhos de Lourdes Castro (1930, Funchal) e Manuel Zimbro (1944-2003). A mostra, comissariada por João Fernandes, percorre a obra de dois artistas que partilharam parte das suas vidas: "A gente fez tudo juntos, nem que só fosse fazer o almoço para o outro", nota a madeirense, numa conversa acerca de sombras em que também se fala de amigos, de livros, da natureza.
Lourdes Castro é produtora de uma vasta obra atravessada sobretudo pelo tema da sombra, e que pode ser lida a partir da sua permanente transformação. A sua actividade artística inclui a produção da revista KWY, 12 números realizados em Paris, entre 1958 e 1963, em colaboração com René Bertholo. A publicação, que nunca terá mais de 300 exemplares, incluiu outros nomes quer na sua concepção, como Christo, Escada, João Vieira e Jan Voss, quer no elenco dos convidados para cada edição. No início dos anos 60, surgiram os objectos: acumulações de "tralhas que já não servem para nada", coladas sobre antigas telas e pintadas da cor do alumínio. Sucedem-lhes as sombras projectadas e os contornos: retratos de amigos realizados sobre tela ou em coloridos e recortados plexiglass. Mais tarde, no Verão de 1968, surgiram as "Sombras deitadas" bordadas em lençóis. Na Madeira, em 1972, Lourdes Castro irá reunir "O grande herbário de sombras": 100 sombras de espécies botânicas "tomadas directamente ao sol, sobre papel heliográfico". O "Teatro de Sombras", já experimentado desde 1966, irá assumir um papel relevante na actividade da artista a partir de uma estada em Munique, entre 1972 e 1973: "Durante o espectáculo eu sou a sombra e o Manuel é a luz." Tudo na direcção do nada, situação tornada visível através de "Peça", um objecto desenhado em colaboração com Francisco Tropa para a Bienal de S. Paulo, em 1998.

Quanto nasceu a ideia desta exposição?
Quando fiz as "Sombras à volta de um centro." Um dia, o João [Fernandes] foi à Madeira falar-me numa exposição com os plexiglass, os lençóis, aquelas coisas todas, mas nunca uma retrospectiva exaustiva.
Porquê "nunca uma retrospectiva"?
Porque é muito. Cansava-me eu, cansava-se o João, cansava-se toda a gente e mesmo as pessoas para verem o que se tem nas gavetas, os livros, as coisas todas que fizeste durante tantos anos... é demasiado para uma exposição e mesmo para um museu. O João dizia: fazemos uma exposição mais pequena das coisas do Manuel [Zimbro]. Comecei a pensar nisso: a gente fez tudo juntos, nem que só fosse fazer o almoço para o outro.
Cada exposição era partilhada... O Manuel ajudou-me muito: conhecemo-nos, eu estava no teatro; portanto, já foi mesmo a dois: a sombra e a luz.



Conheceram-se quando?
Em Paris... 72, 73. Depois fomos para Berlim.
A Lourdes nasceu em Dezembro...
Sim. Sou Sagitário, mas depois há o ascendente que conta.
Qual é o seu?
Peixes. Sou bicho, sou animal, sou gente, tenho uma flecha e ainda sou peixe: sou da água.
A flecha...
Estou sempre a ver para a frente.
O Manuel Zimbro tem um texto intitulado "A Sombra da Flecha", escrito em 1992...
O Sagitário é metade cavalo, metade homem - um centauro -, e depois a flecha é a direcção para a frente. Estou sempre a prever coisas. Tenho esta tendência, mesmo para esta exposição. É o aceitar naturalmente as coisas: se tu souberes onde é que andas e o que é que estás a fazer. Não é? Nós pertencemos ao universo, não estamos fora. A astrologia tem tanta importância como outra coisa qualquer. No fundo, se se separou as coisas foi para as estudar.
Pegando na ideia da flecha, um dos livros que a marcou foi "Zen e a Arte do Tiro com Arco", de Eugen Herrigel...
Às vezes são bóias de salvação. Quando o Ocidente já não estava a responder ao que se perguntava, foi muita gente ao Oriente. E voltou; como o senhor Herrigel, que esteve lá, estudou e aprendeu o japonês. Essa troca vem responder a coisas, como a religião: são respostas que a um certo momento batem certo, que nos aliviam, que nos ajudam. Na Madeira, estive no Colégio Alemão desde o jardim-de-infância: foi a minha avó que me ensinou a ler, a avó da Praia Formosa. Ela já sabia uma coisinha de alemão, porque o professor de piano lhe ensinou. Ela também sabia inglês e francês: foi a primeira aluna do liceu da Madeira. Nessa altura, a gente não percebia muito, a avó convenceu os meus pais que os pequenos tinham de ir para a escola alemã, que dava uma certa organização. Ela lá sabia, porque era professora.
Tudo isto levou-a a ler o livro...
O Colégio Alemão fechou quando começou a guerra, no início dos anos 40, sou pré-histórica... Ainda me lembro das professoras a tricotar coisas para os soldados. A minha avó disse: "Os pequenos devem continuar..." Prossegui as lições com uma senhora alemã, uma botânica que vivia sozinha e dava lições particulares. Tinha estado na América do Sul e um quarto cheio de papagaios e um tucano. Depois, uma sobrinha dela, que estava na Alemanha, mandou-lhe um livro que tinha acabado de sair. Ela leu-o e disse-me: "Empresto-te". Era o "Zen e a Arte do Tiro com Arco", do Herrigel. Li-o em alemão: "Enquanto não fores a flecha..." Tens que ser tu com o que fazes; se não, há separação.
Continuou a alimentar esse interesse pelo zen?
Não só o zen, mas também a Índia. O [Rabindranath] Tagore, que também li em traduções alemãs... todo aquele ar que vinha de lá, sem ser os descobrimentos, o que vem na História.



Foi alguma vez à Índia ou ao Japão?
Nunca fui. O Japão às vezes é como se lá estivesse... voltando um pouco atrás, o João tinha-me dito que se fazia uma exposição do Manuel, com as coisas dele, a "História Secreta da Aviação." A gente sempre fez juntos; às vezes, pode não vir o nome no catálogo, mas foi ele que fez o desenho deste [o catálogo de "Além da Sombra", CAM, Gulbenkian, 1992], escreveu o texto e escolheu os fragmentos dos "Álbuns de Família". A "Montanha de Flores" [1988-...], foi o Manuel que fez a instalação. É mágica, eu nunca teria chegado ali: punha as florinhas, caíam as pétalas. Disse ao João: a exposição tem que ser Lourdes e Manuel ou Manuel e Lourdes, a luz e a sombra; não se pode separar. Até bebemos um champanhe nesse dia. Tinha uma garrafa pequenina e fizemos um brinde: pronto, a exposição está feita. E o João disse: "Com certeza".
Não posso deixar de lhe perguntar o que significam os caracteres japoneses impressos na sua t-shirt ...
É o "Sutra do coração" [um dos textos fundamentais do Budismo Mahayana]. Tenho um amigo na Madeira que me diz: "Lourdes, quando pões essa t-shirt é como a gente na escola quando punha a t-shirt para os exames". O "Sutra do coração" é muito importante. Há muitos sutras no "Prajnaparamita" [escrituras budistas que tratam do tema da perfeição da sabedoria; a mais antiga foi escrita por volta do ano 100 a.C.]. Não sou supersticiosa... cada um de nós tem sempre assim umas coisinhas... uma pedrinha que põe no bolso. O sutra é uma coisa que protege, "c'est ça". Tens uma coisa para o frio [um casaco] e depois pões algo que protege.

Quando é que começou a realizar os "Álbuns de família"?
Quando comecei as sombras - há as silhuetas no século XVIII e depois sabes vagamente umas coisas, já viste. São, no fundo, para perceberes onde é que tu estás e o que é que estás a fazer. Acho que em 1965 acabei o primeiro, mas foi em 1963 que comecei a colar naqueles álbuns.
O que coloca nesses álbuns?
É pena, na exposição só vai estar uma página aberta. Se o chamei "Álbum de família", é como se fosse uma família nossa, onde tens os primos chegados, os irmãos, os amigos: depois, há os que estão mais longe, mais afastados. No fundo, só podes ver em ti e é aí que deves chegar; mais nada.
Continua a fazer "Álbuns de família"?
Continuo, porque ainda me aparecem coisas.
Quantos volumes já realizou?
34... O Fidel de Castro, quando fumou um charuto da Holanda, disse: "Es paja", é palha. Há coisas que são palha; mas é bom ver-se que nos álbuns há alguma palha.
Os álbuns são só acerca de sombras?
O Arp está lá, mas não é com uma sombra. As formas dele já são muito puras, porque, no fundo, ninguém sabe o que é a sombra... O senhor Goethe, na teoria das cores, fala em sombra colorida. E depois fazem-te companhia, tu não estás sozinha e percebes melhor. Ou tu és um pintor primitivo, e estás no teu cantinho, ou então, se estás de olhos abertos, trata de aprender tudo o que há por aí.

No fundo, para si, a sombra não tem uma conotação negativa...
Sei que tirei as sombras da sombra. Dei-lhes corpo, porque fiz os plexiglass, mas este é transparente, tem menos matéria. Os lençóis, não os ia fazer em plexiglass, porque a gente não se deita em cima desse material e o plástico também não é agradável... Não se trabalha só com a cabeça: trabalho muito com os olhos e com aquilo que se ouve: trabalha-se com tudo.
Os plexiglass são sobretudo retratos de amigos...
Eles tinham de me emprestar a sombra. Tinham de estar quietinhos, mas às vezes era difícil.
Começava por realizar um desenho?
Sim, sobre papel. Depois "passava-os a limpo" para o plexiglass. Com o sol é muito difícil também, porque a sombra mexe imenso. Se pões um papel, muda imenso. No fundo, a sombra é a parte imaterial das pessoas: o espírito, a alma...
No caso dos lençóis, ao contrário do que acontece com os plexiglass, os corpos retratados são de amigos?
Ao princípio, nos plexiglass, tomei a decisão de só passados dez anos dizer quem é, porque senão começavam: "está parecida", "não está parecida", "o nariz é tal e qual". Nos corpos, como é nos lençóis, é mais íntimo: não ponho o nome, há o respeito pelas pessoas. São amigos que disseram "ok, a gente deita-se; é muito confortável." Estavam mais quentinhos: era no chão do ateliê. Punha o papel, fazia o contorno, depois passava para o pano e bordava. Foi muito bom, depois de trabalhar com a serra eléctrica, estar ali sossegada: lembro-me estar a ouvir os carros. Foi na Rua des Saints- Pères [em Paris]. Depois voltei a pô-las em movimento: o teatro.

O "Teatro de sombras" são, de facto, três trabalhos distintos...
O primeiro programa eram três coisinhas pequeninas: "Pic-nic à sombra", "Contorno" e "Dia e noite"; o segundo programa, "As cinco estações"; e o terceiro programa, "A linha do horizonte". Não tinham história: é como um quadro, uma coisa chama a outra. O fio condutor era a transformação. Eram três coisas, depois passamos a um assunto só, sem intervalo, porque quando tu vês as sombras é tal o envolvimento, a magia, que é uma pena ter intervalo. "As cinco estações" e a "Linha do horizonte" duravam uma hora.
Era a única pessoa em cena?
Sim, porque eram tantos ensaios... Estávamos os dois em casa, portanto fazia-se a qualquer hora: era quase um ano para fazer uma peça nova. Como é que podias estar com outra pessoa a exigir dela tudo o que podes exigir a ti ou a quem está contigo? Depois de ter contratos com teatros, entras na galeria, não é com desprezo, mas entras muito mais à vontade. Não vais pedir nada: é muito bom. Liberdade: o manter-se desapegado, é muito importante...

O seu último trabalho, "Peça" (1998), foi feito em colaboração com o Francisco Tropa...
O que estou a fazer agora, o filme da Catarina [Mourão] toca nisso...
O cuidar do jardim?
É aquilo tudo: as árvores... O filme mostra um bocadinho. Depois do "Teatro de sombras" é difícil fazer coisas, porque era aquela hora efémera. Como é que posso estar a fazer assim coisas, materialmente, que durem, quando o "Teatro de Sombras" passava? Foi nessa altura que mudamos de casa, que fomos para ali [Caniço, Madeira]...
Quem projectou a casa?
O Manuel desenhou casa toda. O Pedro [Morais] também ajudou, o irmão do Pedro também e o Manuel Amado deu o plano para fazer a chaminé. O Manuel desenhou tudo conforme o nosso viver dentro de casa: um ateliê para um, outro para outro e tudo aberto. As pessoas perguntam: "A Lourdes tem pintado, tem trabalhado muito?". "Tenho trabalhado muito." O que é trabalho? O que é não-trabalho? Tenho tanta coisa para fazer. A minha pintura é esta: o viver, o estar cá.
Há, na exposição, uma série de pedras com frases escritas pelo Manuel Zimbro...
Nós nunca demos prendas; se fazíamos uma viagem, podia-se trazer uma coisa maior, mas no Natal e isso tudo era um papelinho, uma coisinha. O Manuel uma vez deu-me uma pedra, em que escreveu: "Faltam quatro horas para a meia-noite". Foi a prenda de Natal.

terça-feira, 9 de março de 2010

Difícil Poema de Amor
Luiza Neto Jorge

Separo-me de ti nos solstícios de verão, diante da mesa do juiz supremo
dos amantes. Para que os juízes me possam julgar, conhecerão primeiro o
amor desonesto infinito feito de marés ambulantes de espinhos nas pálpebras
onde as ruas são os pontos únicos do furor erótico e onde todos os pontos
únicos do amor são ruas estreitíssimas velocíssimas
que se percorrem como um fio de prumo sem oscilação.

Ontem antes de ontem antes de amanhã antes de hoje antes deste
número-tempo deste número-espaço uma boca feita de lábios alheios beijou.
Precipício aberto: ele nada revela que tu já não saibas.
Porque este contágio de precipícios foste tu que mo comunicaste
maléfico como um pássaro sem bico.

Num silêncio breve vestiu-se a cidade. Muito bom-dia querido
moribundo. Sozinho declaraste a terceira grande paz mundial quando abrindo
os olhos me deste de comer cronometricamente às mil e tantas horas da
manhã de hoje.

Deito-me cedo contigo o meu sono é leve para a liberdade acordas-
-me só de pensares nela. As casas e os bichos apoiam-se em ti. Não fujas não
te mexas: vou fixar-te para sempre nessa posição.

Que há? Abrem-se fendas no ar que respiro vejo-lhe o fundo. Tens os
olhos vasados. Qual de nós os dois "quero-Te" gritou?

Bebe-me espaçadamente encostada aos muros. Se és poeta que fazes tu?
Comes crianças jogas ases sentado és uma estátua de pé a cauda de um cometa.

Mães entretanto vão parindo. Os filhos morrerão ainda? Entregas-te a
cálculos. Amas-me demais.
Confesso: não sei se sou amada por ti.

Virás
quando houver uma fala indestrutível devolvida à boca dos mais vivos. Então
virás
vivo também. Sempre esperei ver-te ressuscitado. Desiludiste-me.

E iremos com o plural de nós nos leitos menores onde o riso, onde o
leito do rio é um filho entre os dois. Que farei de teus braços de meus cabelos
benignos que faremos?

Nasci-te da minha pele com algumas fêmeas te deitei por vezes.
Conheces-me. Não me tens amor

Grave esta corda cortada agudo seixo me ataste aos olhos para me
afundar.

Só por grande angústia me condenas à morte se de mim te veio a cidade
e os minúsculos objectos que já amaste ou que irás amar um dia espero.
Ah a cratera o abismo eléctrico!

Por isso o teu novo amor será comigo mais perigoso que este imaculado
com mais visco de amor cópula mortal.

Calo-me.
Reparei de repente que não estavas aqui. Pus-me a falar a falar. Coisas
de mulher desabitada. Sei que um dia desviarei sem ti os passeios rectos
esvaziarei os gordos manequins falantes. A razão é uma chapa de ferro
ao rubro: se acredito na tua morte começo o suicídio.

Enquanto penetrantemente te espero a luz coalhou. Os pássaros
coalharam enquanto te espero. O leite enquanto te espero coalhou. Haverá
outro verbo?
Submersa, muito distante de qualquer inferno de um paraíso qualquer existo
eu. Existirão tais palavras?

É a altura de escrever sobre a espera. A espera tem unhas de fome, bico
calado, pernas para que as quer. Senta-se de frente e de lado em qualquer
assento. Descai com o sono a cabeça de animal exótico enquanto os olhos se
fixam sobre a ponta do meu pé e principiam um movimento de rotação em
volta de mim em volta de mim de ti.

Nunca te conheci - assim explico o teu desaparecimento. Ou antes:
separei-me de ti no solstício de um verão ultrapassado. As mulheres viajavam
pela cidade completamente nuas de corpo e espírito. Os homens mordiam-
-se com cio. Imperturbável pertenceste-me. Assim nos separámos.

Não calhasse morrer um de nós primeiro que o outro porque ambos ao
mesmo tempo será impossível enquanto não houver relógios que meçam
este tempo e as horas fielmente se adiantarem e atrasarem.

Alguma vez pretendi dizer-te o que quer que fosse? Falava por paixão
por tibieza por desgosto por claridade por frio por cansaço

nunca por pretender dizer o que quer que fosse.

Não me desculpo. Se já me cai o cabelo se já não sinto os ombros é
porque o amor é difícil ou a minha cabeça uma pedra escura que carrego
sobre o corpo a horas e desoras ostentando-a como objecto público sagrado
purulento. O odor que as pedras têm quando corpos. O apocalipse de tudo
quando amamos. O nosso sangue em pó tornado entornado.

O teu amor espreita o meu corpo de longe. De longe por gestos
lhe respondo. Tenho raízes nos vulcões ternuras íntimas medos reclu-
-sos beijos nos dentes.

A pobreza surge dentro de nós embora cautelosos deitados de manhã e
de tarde ou simplesmente de noite despertos. Ambos meu amigo estamos
sentados neste momento perfeitamente incautos já. Contemplamos um país
e sentamo-nos e vestimo-nos e comemos e admiramos os monumentos e
morremos.

Inventei a nossa morte em toda a impossível extensão das palavras.
Aterrorizei-me segundos a fio enquanto em corpo nu ouvindo-me ador-
-mecias devagar.

Com a precaução de quem tem flores fechadas no peito passeei de noite
pela casa. Um fantasma forçou uma porta atrás de mim. Gemendo como um
animal estrangulado acordei-te.

Enterro o meu terror como um alfange na terra. Porque é preciso ter
medo bastante para correr bastante toda a casa celebrar bastantes missas negras
atravessar bastante todas as ruas com demónios privados nas esquinas.

Só o amor tem uma voz e um gesto mesmo no rosto da ideia que me
impus da morte.
És tu tão único como a noite é um astro.


Sobre a poeira que te cobre o peito deixo o meu cartão de visita o meu
nome profissão morada telefone.

Disse-te: Eis-me.
E decepei-te a cabeça de um só golpe.

Não queria matar-te. Choro. Eis-me! Eis-me!
Deambulando por este lugar de poesia, à procura de poemas para o dia da mulher. Poemas no feminino ou para a alma feminina. Mas também poemas com todas as letras. Existe imensa poesia, de todos os tipos, para vários gostos. Não digo que é em excesso porque a poesia é uma coisa que perdura pelo tempo, e os versos apesar de terem um fim, não acabam nunca, de preencher vazios, de querer dizer. Têm uma vida própria, de sílabas, de encanto, de imagens que vagueiam como lobisomens, esperando a lua cheia. A poesia escreve-se e mostra-se, mas o que nela existe de belo não está nas palavras, mas sim na saudade que fica em as ter lido, na nostalgia que nos aperta o coração em as ter vivido, e naquele absurdo compasso de espera, de um amor mágico e surreal pelo outro, pela palavra escolhida. A maior parte da poesia é artificiosa e cheira demasiado a coisa bonita ou sentimental, quer dizer muito e declamar, e quer dizer que é poesia porque existe como poema. Outra, tenta jogar com as palavras, introduzindo uma lógica e uma geometria. O poeta não é um atleta da poesia: por mais poemas que faça. Mas existirá assim tanta poesia? A escolha de um poema de que nos clama e inflama é bastante árdua. Mesmo um poeta excelso, de que gostamos a peito, teremos dificuldade em eleger todos os seus poemas, porque muitos deles são repetições de repetições, de ritmos e sensações, de estados de alma. O poeta habituou-se a cerzir o amor de imenso, a viver num labirinto de palavras que respiram e sangram. Procura o caminho para algo transcendental. A poesia não se quer bela, mas sim ritual de sacrifício daquele que se quer poeta. Poeta, quem o é? Serão assim tão poucos?
Aqui vai um longo poema de Luiza Neto Jorge, em homenagem à mulher, e a um dia feminino, mas par (8 de Março).

segunda-feira, 8 de março de 2010

Uma ideia para Portugal

Pedimos ao autor de Identificação de um País que nos contasse o que está para vir. Um desafio ao historiador sobre o que nós podemos esperar de Portugal depois de olharmos para o passado. O país será sempre o mesmo?Por José Mattoso

História e previsão
A História só sabe o que aconteceu. Ignora o futuro e o condicional. Não lhe podem pedir previsões, nem mesmo aquelas que nos séculos XIX e XX se deduziam das pretensas leis do devir histórico, como as propostas pelo materialismo dialéctico. Se algum historiador ousa falar do que está para vir, só pode fazê-lo em nome da sabedoria que lhe vem de conhecer o passado. Na verdade, é a sabedoria que lhe faz dizer: "nada há de novo debaixo do Sol" (Ecles. 1.9). Lampedusa, n"O Leopardo diz o mesmo, aliando à sabedoria um certo cinismo: "Para que as coisas permaneçam iguais, tudo deve mudar". Na verdade, não podemos cultivar ilusões. O mundo será sempre o mesmo: com hegemonia americana, europeia ou chinesa, com globalização ou sem ela, com revoluções ou governos estáveis, com guerras ou com a paz, teremos sempre de contar com o sofrimento, a desigualdade social, a luta pela vida, a morte.Neste sentido, se me perguntam o que espero para Portugal nos próximos anos, devolveria a pergunta aos economistas e sociólogos. Sem ilusões, é claro. Em tempos de crise, como a actual, as suas previsões podem traduzir probabilidades, mas também a intenção oculta de influenciar a opinião pública para tranquilizar os investidores, beneficiar o funcionamento normal da máquina financeira ou favorecer os sectores políticos a que estão ligados. Raramente revelarão informações seguras, ou seja, estatísticas exactas, completas e significativas. A manipulação estatística é uma arma poderosa. O seu potencial político retira às previsões económicas e sociais a exacta credibilidade. A política é a arte de neutralizar os prognósticos. Além disso, as previsões "científicas" ignoram o inesperado, como aconteceu no 11 de Setembro.

Identidade nacional
É verdade que a História também serve para verificar recorrências, algumas delas relacionadas com os fenómenos da identidade. A continuidade da ocupação humana num certo território e da associação dos seus habitantes sob a orientação do mesmo poder político durante séculos pode propiciar a emergência de fenómenos análogos; mesmo que sejam determinados por estruturas de tempo longo, isto é, de alteração lenta, e não constitutivos da Nação, não podemos deixar de os observar atentamente.Que se pode, então, esperar do futuro próximo de Portugal em virtude de factores identitários ou estruturais? Esquecendo os numerosos retratos míticos de Portugal e dos portugueses produzidos desde o tempo de Camões, voltemos aos indicadores sociais e económicos. Notemos a diferença entre o Portugal atlântico e o interior, o densamente povoado e o desertificado, o citadino e o que resta do rural. Noutro registo, o Portugal dos ricos, separado por um largo fosso do dos pobres (ou antes, dos fracos, dos desempregados), dos crentes e dos não crentes, dos instruídos e dos ignorantes. Características maiores: uma minoria capaz de profissionalização e uma maioria que, mesmo com diplomas, não consegue sustentar uma produção tecnologicamente competitiva e rentável. Um país feito de bocados que nada consegue unir. Acontece não só nas estruturas socioeconómicas, mas também na produção cultural, cuja "norma" é a "descontinuidade de saltos geracionais" (Eduardo Lourenço, citado por Miguel Real), e a esterilidade institucional das obras geniais (Fernão Lopes, Nuno Gonçalves, Vieira, Pessoa, Amadeu, Antero...). Daí o "irrealismo", acentuado por Eduardo Lourenço, tanto do discurso patriótico alimentado pela epopeia dos Descobrimentos e assumido pelo Estado Novo, como do pessimismo decadentista dos Vencidos da Vida, ambos resultantes do complexo de inferioridade nacional.

Desencanto
Daí os protestos dos poetas: "Portugal: questão que eu tenho comigo mesmo...meu remorso / meu remorso de todos nós" (Alexandre O"Neill); "O país que tinha já de si pequeno / fizeram-no pequeno para mim / os donos das pessoas e das terras / os vendilhões das almas no templo do mundo" (Ruy Belo); "Portugal / país defunto talvez unto para nações vivas / Portugal meu país de desistentes" (Ruy Belo); "Meu país desgraçado! / Por que fatal engano? Que malévolos crimes / teus direitos de berço violaram?" (Sebastião da Gama); "Este país te mata lentamente. / País que tu chamaste e não responde. / País que tu nomeias e não nasce." (Sophia de Mello Breyner Andresen); "Pátria magra - meu corpo figurado / Meu pobre Portugal de pele e osso! / Nada na tua imagem se alterou: / A casca e o caroço / dum sonho que mirrou" (Miguel Torga). É verdade que estas palavras estão datadas. Foram escritas antes do 25 de Abril. É verdade que em Portugal muita coisa mudou. António Barreto insiste nisso e convenceu-nos a todos num programa televisivo largamente difundido (2007): "A verdade é que mudámos muito. Os portugueses hoje são muito diferentes do que eram há trinta anos... nascem, crescem, aprendem a ler, trabalham, amam, alimentam-se, reproduzem-se [...] sofrem e morrem de modo diferente". Sem dúvida.Mas depois dos entusiasmos criados pelas expectativas da integração na Europa, os portugueses descobrem que os níveis de vida, a educação elementar, a cultura, as capacidades técnicas, a competitividade económica, o funcionamento das instituições, o desempenho da justiça, a eficiência do regulamento jurídico, continuam tão longe dos níveis da Europa como sempre foram. O "atraso" português é uma dura realidade. A crise económica agravou-o e, segundo parece, continuará, nos próximos anos, a agravá-lo.

Saber durar
Mas o "atraso" é um conceito relativo. Só tem sentido por relação com outra coisa - a Europa ou os EUA, obviamente. Ora, uma das descobertas mais simples e mais irrecusáveis do após 25 de Abril é que Portugal é um país como os outros. Sem missão providencial, sem Quinto Império, sem realizações espectaculares, sem lugar especial no mundo, apesar dos Descobrimentos. Com alguns génios, reais, mas não muito numerosos. Não é provável que para ele se desloque o centro do mundo, ou venha a desempenhar um papel de relevo na confrontação das civilizações. Quer isto dizer que devemos viver "habitualmente" como aconselhava Salazar? De certo modo, sim, porque somos como qualquer outro país. Mas, ao contrário do que, na sua intenção totalitária e paternalista ele queria dizer, para fazermos da mediocridade e da submissão um ideal de vida, a aceitação do quotidiano pode também significar a libertação tanto dos complexos de inferioridade como da paranóia colectiva. Associado ao "saber durar" que o aguentou durante tanto tempo na sua cadeira, pode, e creio que deve, ser tomado não como programa pessoal sustentado a qualquer preço, mas como convite à resistência quotidiana, à inteligência na busca de soluções possíveis, à busca da solidariedade social, de partilha do bom e do mau, de honestidade e persistência no trabalho, de aceitação da responsabilidade, de sabedoria. Em suma, "saber durar" vivendo intensamente o dia-a-dia, sem ilusões nem desfalecimento. Se temos problemas, em vez de nos lamentarmos e acusar os outros, procuremos resolvê-los. O que os nossos antepassados nos ensinam, é isso mesmo - não proclamar glórias quinhentistas que não são nossas, mas de quem as viveu; não declinar responsabilidades inerentes à vida em sociedade; não lamentar vícios nacionais, mas combatê-los; não cultivar utopias enganadoras ou esperanças vãs, mas ser realista e pragmático. Por mais moralista que este discurso pareça (ou seja!), não creio que possamos dispensar-nos de pensar assim, nesta época de dúvidas tão radicais acerca do nosso futuro como as que resultam da globalização, da comunicação em "tempo real", do domínio da técnica sobre a biologia, da facilidade com que se compra o armamento, da irresponsabilidade com que se agride a natureza. A ideologia resultante do domínio da técnica propicia a apropriação difusa do poder em proveito próprio e o esquecimento das fronteiras éticas. Será possível evitar uma catástrofe universal sem restituir aos preceitos éticos o seu carácter sagrado?

O lugar dos justos
Haverá ainda lugar, no mundo de hoje, para uma concepção humanista da existência? Seja qual for o sentido que demos ao conceito, o que quero dizer é que não acredito numa ideia para Portugal senão baseada no respeito pelo Homem e pela sua dignidade. O domínio da técnica ameaça o Homem porque dá o poder mas não garante o seu bom uso. Podemos falar em esperança; mas se não sabemos o que a justifica, a sua invocação é estéril. Como podemos, no meio da crise, saber se não é apenas mais uma mentira? Só conheço uma resposta: aquela que se deduz da "conversa" entre Javé e Abraão antes da destruição de Sodoma e Gomorra: "Será que vais exterminar ao mesmo tempo, o justo e o culpado? Talvez haja cinquenta justos na cidade: matá-los-ás a todos? Não perdoarás à cidade por causa dos cinquenta justos que nela podem existir?" (Génesis., 18.23). Só Deus sabe que proporção de "justos" no conjunto de habitantes de cada cidade é suficiente para ela subsistir. Pelos vistos, Javé até se contentava com dez. Mas ninguém sabe. O que a vida me tem ensinado é que existem mais "justos" neste mundo do que se pode saber através dos jornais. Há muitas formas de santidade oculta, nem que seja por meio do sofrimento assumido, do apaziguamento, da noção do dever. A religião católica aliada ao individualismo atrofiou o conceito de "justo". A história do Génesis propõe que se creia no efeito da acção do "justo" sobre a comunidade a que pertence em virtude do princípio de solidariedade. Os "justos" são a porção viva e sã, mas escondida, da comunidade a que pertencem. Garantem a sua capacidade de regeneração. O fundamento da esperança no futuro é o reconhecimento dos "justos" que nos rodeiam, seja qual for o meio em que vivem e o apoio que somos capazes de lhes dar na sua luta pela "justiça". Talvez isso sirva de antídoto contra a desilusão que nos causam os poderosos da finança, da política ou do espectáculo.

texto incluído no Público de sábado 6 de Março de 2010, caderno P2, "20 anos, 20 ideias que mudaram o mundo"


Maio 1988


sexta-feira, 5 de março de 2010


Porto Santo, Julho 2005

A minha amiga Ana, minha irmã por inerência afectiva, que tem uma escrita de grande inteligência e fluidez, e pessoa, além da beleza aqui vista, de qualidades excepcionais, mandou-me esta foto das férias que tive com ela, filha e mãe, e com a minha Sara. Obrigado Ana.




quinta-feira, 4 de março de 2010

Novos discos de Peter Gabriel, Scratch my back e de Massive Attack, Heligoland.
O primeiro com arranjos de Bob Ezrin (The Wall, Peter Gabriel I)um pouco pomposos e com laivos de Philip Glass, é uma colectânea de versões de outros. Gabriel quis um disco sem guitarras, bateria e baixo. A abrir Heroes (é quase impossível fazer uma má versão desta música), e Gabriel transmite-nos a sua nostalgia e desejo de regressar talvez como um grande músico/compositor. A coisa fica sempre pelas meias tintas. Hit provável deste disco: The Book of Love, versão dos Magnetic Fields, Gabriel igual a si mesmo, o que não é própriamente um elogio para ele. Única, para mim, grande faixa: Listening the wind, dos Talking Heads. Absolutamente magistral a abertura desta música.
Quanto aos Massive o caso muda de figura. Apesar da crítica em geral cair em cima, o disco é globalmente bom, sobressaindo as faixas 3.sppliting the atom, 6.Flat of the blade, 7.Paradise Circus. Esta última hit certo, mas na remix de Gui Boratto incluída na edição especial de 2 cds. Para quem gosta de se deliciar com produções minuciosas e combinações sonoras exaltantes, eis mais um disco dos Massive para viajar no som.
A capa do disco de Gabriel é verdadeiramente bela, como em Up.

quarta-feira, 3 de março de 2010

Ontem ao almoço apanhei no canal hollywood o final de um filme que já vi umas quantas vezes. O filme não é própriamente uma obra prima, mas é bastante bom:
Comboio em Fuga (Runaway Train) de Andrei Konchalowsky, com argumento de Akira Kurosawa. A sequência final com Jon Voigt a gozar a sua liberdade plena, e a música sobre o tema da Glória de Vivaldi, é bela, grandiosa, de encontro a um Deus que se quer humano, como em Ondas de Paixão de von Trier.
Há filmes que nos marcam por razões nem sempre proporcionais à qualidade dos mesmos. Mas aqui existem frases como:
"Tu não sabes do que és capaz e do que não és capaz","está tudo aqui (apontando para a cabeça)". Bem à maneira de um samurai.
Não é de admirar que nos filmes que me dizem algo, existe uma espécie de ritual, de fé na transcendência do humano, de luz etérea como uma alma palpável, que nos transmite um saber emocional alquímico. Temos por exemplo: A Palavra, de Dreyer; O Sacrifício de Tarkovsky, Blade Runner de Ridley Scott, O Eclipse de Antonioni, e mesmo Cinema Paraíso de Tornatore...











Aqui vão algumas coisas que tenho feito. Desenhar é quase como esculpir o abismo. A mão guia-nos, o cérebro diz onde parar, as emoções fervem impacientes. Quero descobrir o que existe dentro dessa pulsão do desenho. Será um interior revelado? Será um exterior transformado por um feitiço? Não quero que exista nenhuma ideia preconcebida em fazer um objecto artístico. Eu semeio linhas, e dou-lhes o movimento de um arado. Sou um Sol. Ilumino orgias.

terça-feira, 2 de março de 2010

“Não aconteceu nada”, repito e repito a quem liga. Estou intacta, os “meus” estão intactos, suponho que não aconteceu nada.
Mas é um “nada” cheio de pessoas desaparecidas, é um “nada” repleto de cadáveres sujos, é um “nada” com muitas despedidas, com filhos perdidos, com mãos vazias.
E, sim, tenho lama até à cintura e pedregulhos no coração. E à noite, entre sonhos e pesadelos, tenho aa casa inundada, filhos a escaparem-me dos braços e gritos maternos ecoam-se no peito e caem no colo saqueado.
E, sim, quando a chuva cai, em gotinhas miudinhas e inofensivas, não consigo respirar, vejo-me presa no carro vazio e sou arrastada para o fim do mundo e nada me prende e morro uma e outra vez.
E, sim, de vez em quando, vou a correr para casa e espero que ela lá esteja, rezo para que ela lá esteja, que as fotos de quem eu era, de quem os avós eram, esses que já cá não estão, lá estejam. Porque tenho medo de não ter mais passado, de sucumbir no meio da lama, da terra, do entulho, e de me tornar invisível. Medo de acordar e já não existir.
E, sim, quando ando na rua olho de soslaio a ribeira, que vai murmurando baixinho, e as montanhas imponentes, que recortam o céu, e já não lhes adivinho nenhuma beleza…oiço-as a troçar de mim, dos que choram, dos que partiram, dos que ficaram.
E, sim, a cada passo que dou, as pontes e as estradas parecem abrir buracos e as fendas invisíveis atormentam-me e não me surpreenderia cair no vazio e perder-me de mim, dos outros e não mais me encontrar ou ser encontrada.
E, sim, espero que me salvem e admira-me que me vejam a lama até à cintura, os pedregulhos na alma e não chamem ninguém para ajudar, espanta-me que na minha casa, inundada e vazia, não haja bombeiros atarefados, jornalistas curiosos a relatar ao mundo a tragédia que me assolou, que nos assolou a vida.
Parece que as ruas vão ficando limpas, algumas…e parece que decretaram que temos de sorrir e acenar e andar e comer e trabalhar e, de novo, sorrir e até, quem sabe rir.
“Não, não aconteceu nada”

Lena Câmara Pacheco, Funchal
no jornal"Público"de 28 de Fevereiro 2010, "cartas à directora"

segunda-feira, 1 de março de 2010







Funchal, 21 de Fevereiro 2010
A aparente serenidade destas imagens de um mundo feito de silêncio.