terça-feira, 2 de março de 2010

“Não aconteceu nada”, repito e repito a quem liga. Estou intacta, os “meus” estão intactos, suponho que não aconteceu nada.
Mas é um “nada” cheio de pessoas desaparecidas, é um “nada” repleto de cadáveres sujos, é um “nada” com muitas despedidas, com filhos perdidos, com mãos vazias.
E, sim, tenho lama até à cintura e pedregulhos no coração. E à noite, entre sonhos e pesadelos, tenho aa casa inundada, filhos a escaparem-me dos braços e gritos maternos ecoam-se no peito e caem no colo saqueado.
E, sim, quando a chuva cai, em gotinhas miudinhas e inofensivas, não consigo respirar, vejo-me presa no carro vazio e sou arrastada para o fim do mundo e nada me prende e morro uma e outra vez.
E, sim, de vez em quando, vou a correr para casa e espero que ela lá esteja, rezo para que ela lá esteja, que as fotos de quem eu era, de quem os avós eram, esses que já cá não estão, lá estejam. Porque tenho medo de não ter mais passado, de sucumbir no meio da lama, da terra, do entulho, e de me tornar invisível. Medo de acordar e já não existir.
E, sim, quando ando na rua olho de soslaio a ribeira, que vai murmurando baixinho, e as montanhas imponentes, que recortam o céu, e já não lhes adivinho nenhuma beleza…oiço-as a troçar de mim, dos que choram, dos que partiram, dos que ficaram.
E, sim, a cada passo que dou, as pontes e as estradas parecem abrir buracos e as fendas invisíveis atormentam-me e não me surpreenderia cair no vazio e perder-me de mim, dos outros e não mais me encontrar ou ser encontrada.
E, sim, espero que me salvem e admira-me que me vejam a lama até à cintura, os pedregulhos na alma e não chamem ninguém para ajudar, espanta-me que na minha casa, inundada e vazia, não haja bombeiros atarefados, jornalistas curiosos a relatar ao mundo a tragédia que me assolou, que nos assolou a vida.
Parece que as ruas vão ficando limpas, algumas…e parece que decretaram que temos de sorrir e acenar e andar e comer e trabalhar e, de novo, sorrir e até, quem sabe rir.
“Não, não aconteceu nada”

Lena Câmara Pacheco, Funchal
no jornal"Público"de 28 de Fevereiro 2010, "cartas à directora"

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