quarta-feira, 29 de setembro de 2010

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O QUE É ANGÚSTIA?
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Um rapaz fez-me essa pergunta difícil de ser respondida. Pois depende do angustiado. Para alguns incautos, inclusivé, é palavra que se orgulham de pronunciar como se com ela subissem de categoria - o que também é uma forma de angústia.
Angústia pode ser não ter esperança na esperança. Ou conformar-se sem se resignar. Ou não se confessar nem a si próprio. Ou não ser o realmente se é, e nunca se é. Angústia pode ser o desamparo de estar vivo. Pode ser também não ter coragem de ter angústia - a fuga é outra angústia. Mas angústia faz parte: o que é vivo, por ser vivo, se contrai.
Esse mesmo rapaz perguntou-me: você não acha que há um vazio sinistro em tudo? Há sim. Enquanto se espera que o coração entenda.
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Clarice Lispector, A Descoberta do Mundo, 1984, Rocco

terça-feira, 28 de setembro de 2010

COMPREENDER: Vendo de repente o episódio de amor como um nó de razões inexplicáveis e de soluções bloqueadas; o sujeito exclama: “Quero compreender (o que me está a acontecer)!”
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1. Que penso do amor? – Em suma, nada penso. Gostaria de saber o que é, mas, estando nele embrenhado, vejo-o em existência, não em essência. Isto que quero conhecer (o amor) é a mesma matéria que utilizo para falar (o discurso de amor). É-me certamente permitida a reflexão, mas, como essa reflexão fica imediatamente presa na repetição das imagens, não se transforma em reflexibilidade: excluído da lógica (que admite linguagens exteriores umas às outras), não posso pretender pensar bem. Assim, por mais que discorra sobre o amor ao longo do ano, apenas poderia ter a esperança de agarrar o conceito “pela cauda”: por relâmpagos, fórmulas, surpresas de expressão, dispersos através da grande corrente do Imaginário; estou do lado mau do amor, do seu lado deslumbrante: “O lugar mais sombrio, diz um provérbio chinês, situa-se sempre sob a lâmpada.”

2. Ao sair do cinema, sozinho, matutando no meu problema de amor que o filme não fora capaz de fazer esquecer, exclamo bizarramente: não: que isto acabe! Mas: quero compreender (o que me está a acontecer)!

3. Repressão: quero analisar, saber, enunciar numa outra linguagem que não seja a minha; quero representar a mim próprio o meu delírio, quero “olhar de frente” o que me divide, me corta. Compreendei a vossa loucura: era a ordem de Zeus, ao dizer a Apolo que virasse o rosto dos Andróginos divididos (como um ovo, uma sorva) na direcção do golpe (o ventre) “para que a visão da sua separação os torne menos ousados”. Compreender não é cindir a imagem, desfazer o eu, órgão soberbo do desconhecimento?

4. Interpretação: não é aí que está o significado do vosso grito. Esse grito, na verdade, é ainda um grito de amor: “Quero compreender-me, fazer-me compreender, fazer-me conhecer, fazer-me beijar, quero que alguém me leve consigo.” Eis o que significa o vosso grito.

5. Quero mudar de sistema: nunca mais desmascarar, nunca mais interpretar, mas fazer da própria consciência uma droga e através dela aceder à visão sem fim do real, ao grande sonho claro, ao amor profético.

6. (E se a consciência – uma tal consciência – fosse o nosso futuro humano? Se, graças a uma volta suplementar da espiral, num dia, deslumbrante entre todas, desaparecida toda a energia reactiva, a consciência se tornasse enfim nisto: a abolição do patente e do latente, da aparência e do escondido? Se à análise fosse pedido não que destruísse a força (nem mesmo a corrigisse ou dirigisse) mas apenas que a decorasse, à maneira do artista? Imaginemos que a ciência do lapso descobre um dia o seu próprio lapso e que esse lapso é: uma forma nova, estranha, da consciência?)
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Roland barthes, Fragmentos de um discurso amoroso, 1977, Edições 70

domingo, 26 de setembro de 2010


Jardim da Estrela, 4 de Abril de 2009
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Partida
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Ao ver escoar-se a vida humanamente
Em suas águas certas, eu hesito,
E detenho-me às vezes na torrente
Das coisas geniais em que medito.

Afronta-me um desejo de fugir
Ao mistério que é meu e me seduz.
Mas logo me triunfo. A sua luz
Não há muitos que a saibam reflectir.

A minh'alma nostálgica de além,
Cheia de orgulho, ensombra-se entretanto,
Aos meus olhos ungidos sobe um pranto
Que tenho a fôrça de sumir também.

Porque eu reajo. A vida, a natureza,
Que são para o artista? Coisa alguma.
O que devemos é saltar na bruma,
Correr no azul á busca da beleza.

É subir, é subir àlem dos céus
Que as nossas almas só acumularam,
E prostrados resar, em sonho, ao Deus
Que as nossas mãos de auréola lá douraram.

É partir sem temor contra a montanha
Cingidos de quimera e d'irreal;
Brandir a espada fulva e medieval,
A cada hora acastelando em Espanha.

É suscitar côres endoidecidas,
Ser garra imperial enclavinhada,
E numa extrema-unção d'alma ampliada,
Viajar outros sentidos, outras vidas.

Ser coluna de fumo, astro perdido,
Forçar os turbilhões aladamente,
Ser ramo de palmeira, água nascente
E arco de ouro e chama distendido...

Asa longinqua a sacudir loucura,
Nuvem precoce de subtil vapor,
Ânsia revolta de mistério e olor,
Sombra, vertigem, ascensão - Altura!

E eu dou-me todo neste fim de tarde
À espira aérea que me eleva aos cumes.
Doido de esfinges o horizonte arde,
Mas fico ileso entre clarões e gumes!...

Miragem rôxa de nimbado encanto -
Sinto os meus olhos a volver-se em espaço!
Alastro, venço, chego e ultrapasso;
Sou labirinto, sou licorne e acanto.

Sei a distância, compreendo o Ar;
Sou chuva de ouro e sou espasmo de luz;
Sou taça de cristal lançada ao mar,
Diadema e timbre, elmo real e cruz...

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O bando das quimeras longe assoma...
Que apoteose imensa pelos céus!
A côr já não é côr - é som e aroma!
Vem-me saudades de ter sido Deus...

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Ao triunfo maior, avante pois!
O meu destino é outro - é alto e é raro.
Únicamente custa muito caro:
A tristeza de nunca sermos dois...
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Mário de Sá-Carneiro, in 'Dispersão'




sexta-feira, 24 de setembro de 2010

“A vida intensa é contrária ao Tao”, ensina Lao-Tse, o homem mais normal que alguma vez existiu. Mas o vírus cristão corrói-nos: herdeiros dos flagelantes, é refinando os nossos suplícios que tomamos consciência de nós próprios.
(…) A “vida intensa” faz-se à custa tanto do espírito como do corpo. Mestres na arte de pensar contra si próprio, Nietzsche, Baudelaire, Dostoievski ensinaram-nos a apostar nos nossos perigos, a alargar a esfera dos nossos males, a ganhar existência através da divisão interna do nosso ser. E aquilo que aos olhos do grande chinês era símbolo de decadência, exercício de imperfeição, constitui para nós a única modalidade por que nos possuímos, por que entramos em contacto connosco próprios.
“Que o homem nada ame, e será invulnerável” (Tchuang-tsé). Máxima tão profunda como inoperante. Como atingir o apogeu da indiferença quando até a nossa apatia é tensão, conflito, agressividade? Não há nenhum mestre de sabedoria entre os nossos antepassados, mas sim seres insatisfeitos, caprichosos, frenéticos, cujas decepções ou excessos temos, de uma maneira ou de outra, que continuar.
(…) A esfera da consciência reduz-se na acção, por isso ninguém que aja pode aspirar ao universal, porque agir é agarrar-se às propriedades de ser em detrimento do ser, a uma forma de realidade em prejuízo da realidade. O grau da nossa emancipação mede-se pela quantidade das iniciativas de que nos libertámos, bem como pela nossa capacidade de converter em não-objecto todo o objecto. Mas nada significa falar de emancipação a propósito de uma humanidade apressada que se esqueceu de que não é possível reconquistar a vida nem gozá-la sem primeiro a ter abolido.
Respiramos demasiado depressa para sermos capazes de captar as coisas em si próprias ou de denunciar a sua fragilidade. O nosso ofegar postula-as e deforma-as, cria-as e desfigura-as, e amarra-nos a elas.
(…) Empanturrados de sensações e do seu corolário, o devir, somos seres não libertos, por inclinação e por princípio, condenados de eleição, presas da febre do visível, pesquisadores desses enigmas de superfície que estão à altura do nosso desânimo e da nossa trepidação.
Se queremos recuperar a nossa liberdade, devemos pousar o fardo da sensação, deixar de reagir ao mundo através dos sentidos, romper os nossos laços. Ora, toda a sensação é um laço, tanto o prazer como a dor, tanto a alegria como a tristeza. Só se liberta o espírito que, puro de toda a convivência com seres ou com objectos, se aplica à sua vacuidade.
(…) Ao mesmo tempo que remexemos nos nossos males, os dos outros não deixam de nos interpelar. Na época das biografias, ninguém pode encobrir as suas chagas sem que tentemos descobri-las e pô-las à luz do dia; quando não conseguimos fazê-lo, afastamo-nos cheios de decepção. E mesmo aquele que acabou na cruz não é de maneira alguma por ter sofrido por nós que ainda conta aos nossos olhos, mas simplesmente por ter sofrido e soltado alguns gritos tão profundos quanto gratuitos. Porque aquilo que veneramos nos nossos deuses são as nossas derrotas embelezadas.
(…) Mais ainda do que o estilo, o próprio ritmo da nossa vida assenta na honorabilidade da revolta. Repugnando-nos admitir a identidade universal, afirmamos a individuação, a heterogeneidade, como fenómeno primordial. Ora, revoltarmo-nos é postular essa heterogeneidade, concebê-la de algum modo como anterior ao advento dos seres e dos objectos. Se oponho a Unidade, só ela verídica, à multiplicidade, necessariamente enganadora, se, noutros termos, assimilo o outro a um fantasma, a minha revolta torna-se vazia de sentido, essa revolta que, para existir, tem de partir da irredutibilidade dos indivíduos, da sua condição de nómadas, de essências circunscritas. Todo o acto institui e reabilita a pluralidade, e, conferindo à pessoa realidade e autonomia, reconhece implicitamente a degradação, a fragmentação do absoluto. E é dele, do acto, e do culto que lhe é dedicado, que procede a tensão do nosso espírito, bem como essa necessidade de explodirmos e nos destruirmos no cerne da duração. A filosofia moderna, ao instaurar a superstição do Eu, tornou-o a mola real dos nossos dramas e o eixo das nossas inquietações. Chorar o repouso no indistinto, o sonho neutro da existência sem qualidades, de nada serve; quisemo-nos sujeitos, e todo o sujeito é ruptura com a quietude da Unidade. Quem se disponha a atenuar a nossa solidão ou as nossas dilacerações age contra os nossos interesses e contra a nossa vocação. Medimos o valor do indivíduo pela soma dos seus desacordos com as coisas, pela sua incapacidade de ser indiferente, pela sua recusa de tender para o objecto. Daí a depreciação da ideia de Bem, daí a voga do Diabo.
(…) Procurar o sofrimento para evitar a redenção, seguir ao contrário o caminho da libertação, tal é o nosso contributo em matéria de religião: iluminados biliosos, budas e Cristos hostis à salvação, pregando aos miseráveis os encantos da sua desgraça. Raça superficial, se quiserem. Mas não deixa de ser verdade que o nosso primeiro antepassado só nos deixou por herança o horror ao Paraíso. Ao dar um nome às coisas preparava a sua e a nossa queda. Se quisermos remediá-la, teremos de começar por desbaptizar o universo, por retirar a etiqueta que, posta em cada aparência, a eleva e lhe empresta um simulacro de sentido. Entretanto, tudo em nós, até as células nervosas, sente repulsa pelo Paraíso. Sofrer: única modalidade de aquisição da sensação de existir; existir: único modo de salvaguardarmos a nossa perda. E assim será até que uma cura de eternidade nos desintoxique do devir, enquanto não nos aproximarmos desse estado no qual, segundo um budista chinês, “o instante vale dez mil anos”.
Se o absoluto corresponde a um sentido que não soubemos cultivar, entreguemo-nos a todas as rebeliões: elas acabarão por se voltar contra si próprias, contra nós próprios…Talvez recuperemos, então, a nossa supremacia sobre o tempo; a menos que, no extremo oposto, e querendo escapar à calamidade da consciência, nos juntemos aos animais, às plantas e aos objectos, e a essa estupidez primordial de que, por culpa da História, perdemos até mesmo a recordação.

em A tentação de existir, E.M.Cioran, Relógio d’água, 1988

segunda-feira, 20 de setembro de 2010

Os cínicos e os moralistas estão de acordo quanto a colocar as voluptuosidades do amor entre os prazeres ditos grosseiros, entre o prazer de beber e o de comer, declarando-os, contudo, visto que asseguram poder viver-se sem eles, menos indispensáveis que os outros. Do moralista espero tudo, mas espanta-me que o cínico se engane nesse ponto. Admitamos que uns e outros tenham medo dos seus demónios, quer lhes resistam, quer se lhes abandonem, e se esforcem por aviltar o seu prazer, a fim de lhe retirar o poder quase terrível, ao qual sucumbem, e o seu estranho mistério, em que se sentem perdidos. Acreditaria nesta assimilação do amor às alegrias puramente físicas (supondo que existem) no dia em que visse um apreciador de bons petiscos soluçar de delícia diante do seu prato favorito, como um amante encostado a um ombro juvenil. De todos os nossos jogos é o único que pode perturbar a alma, o único também em que o jogador se abandona necessariamente ao delírio do corpo. Não é preciso que o bebedor abdique da sua razão, mas o amante que conserva a sua, não obedece até ao fim ao seu Deus. Em toda a parte a abstinência ou o excesso não aliciam senão o homem só: salvo no caso de Diógenes, cujas limitações e carácter de racional pessimista se evidenciam por si próprios, todo o procedimento sensual nos coloca em presença do Outro, nos implica nas exigências e nas servidões da escolha. Não conheço outra em que o homem se resolva por razões mais simples e inelutáveis, em que o objecto escolhido seja avaliado mais exactamente pelo seu peso bruto de delícias, em que o amador de verdades tenha mais possibilidades de julgar a criatura nua. A partir de um despojamento que se iguala ao da morte, de uma humildade que ultrapassa a da derrota e da prece, fico maravilhado ao ver renovar-se sempre a complexidade das recusas, das responsabilidades, dos factores, das pobres confissões, das frágeis mentiras, dos compromissos apaixonados entre o meu prazer e o do Outro, tantos laços que é impossível quebrar e contudo tão depressa desfeitos. Este jogo misterioso que vai do amor de um corpo ao amor de uma pessoa pareceu-me suficientemente belo para lhe consagrar uma parte da minha vida. As palavras enganam, visto que esta – prazer – esconde realidades contraditórias, comporta ao mesmo tempo as noções de tepidez, doçura, intimidade de corpos, e as de violência, agonia e grito. A pequena frase obscena de Possidónio sobre o atrito de duas parcelas de carne, que te vi copiar nos teus cadernos escolares com uma aplicação de menino ajuizado, não define o fenómeno do amor, assim como a corda que o dedo faz vibrar se não apercebe do milagre dos sons. Essa frase insulta menos a voluptuosidade que a própria carne – instrumento de músculos, de sangue e de epiderme, essa nuvem vermelha cujo relâmpago é a alma.
E confesso que a razão fica confundida perante o prodígio do amor, da estranha obsessão que faz que esta mesma carne, que tão pouco nos preocupa quando compõe o nosso próprio corpo, limitando-nos a lavá-la, a alimentá-la e, se possível, a impedi-la de sofrer, possa inspirar-nos uma tal paixão de carícias simplesmente porque é animada por uma individualidade diferente da nossa e porque representa certos lineamentos de beleza sobre os quais, aliás, os melhores juízes não estão de acordo. Aqui a lógica humana fica aquém, como nas revelações dos Mistérios. A tradição popular não se enganou ao ver sempre no amor uma forma de iniciação, um dos pontos em que o secreto e o sagrado se encontram. A experiência sensual compara-se ainda aos Mistérios, na medida em que a primeira aproximação dá ao não iniciado a impressão de um rito mais ou menos assustador, escandalosamente afastado das funções familiares de dormir, de beber e de comer, motivo de brincadeiras, de vergonha ou de terror. Tanto como a dança das Ménades ou o delírio dos Coribantes, o nosso amor arrasta-nos para um universo diferente, onde, noutros tempos, nos era interdito entrar e onde deixamos de nos orientar desde que o ardor se extingue ou que o prazer se desenlaça. Pregado no corpo amado como um crucificado na sua cruz, aprendi acerca da vida alguns segredos que já se desvanecem na minha lembrança, por efeito da mesma lei que leva o convalescente, depois de curado, a deixar de se encontrar nas verdades misteriosas do seu mal, o prisioneiro posto em liberdade a esquecer a tortura ou o triunfador desembriagado a glória.
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Memórias de Adriano, Marguerite Yourcenar, Ulisseia, tradução Maria Lamas
Pensei várias em elaborar um sistema de conhecimento humano baseado no erótico, uma teoria do contacto, em que o mistério e a dignidade de outrem consistiria precisamente em oferecer ao Eu esse ponto de apoio de um outro mundo. A voluptuosidade seria, nessa filosofia, uma forma mais completa, mas também mais especializada, dessa aproximação do Outro, mais uma técnica posta ao serviço do conhecimento daquilo que não somos nós. Nos encontros, mesmo os menos sensuais, é ainda no contacto que a emoção se completa ou nasce: a mão um tanto repugnante desta velha que me apresenta uma petição, a fonte humedecida de meu pai na agonia, a chaga lavada de um ferido. As próprias relações intelectuais ou as mais neutras ocorrem através deste sistema de sinais do corpo: o olhar subitamente esclarecido de um tribuno a quem explicam uma manobra na manhã de uma batalha, a saudação impessoal de um subalterno que a nossa passagem paralisa numa atitude de obediência, o esgar amigável do escravo a quem eu agradeço ter-me trazido uma bandeja, ou a expressão apreciadora de um velho amigo perante o camafeu grego que lhe oferecem. Com a maior parte dos seres, os mais ligeiros, os mais superficiais desses contactos bastam ao nosso desejo, ou mesmo já o excedem. Que eles insistam, se multipliquem em volta de uma única criatura até a cativar completamente; que cada parcela de um corpo assuma para nós tantas significações perturbantes como os traços de uma fisionomia; que um único ser, em vez de nos inspirar quando muito irritação, prazer ou aborrecimento, nos obsidie como uma música ou nos atormente como um problema; que ele passe da periferia do nosso universo ao seu centro, se nos torne, enfim, mais indispensável que nós próprios, e o espantoso prodígio realiza-se, no que eu vejo mais uma invasão da carne pelo espírito que um simples jogo da carne.
Tais pontos de vista sobre o amor poderiam conduzir a uma carreira de sedutor. Se a não segui foi sem dúvida porque fiz outra coisa, aliás melhor. À falta de génio, semelhante carreira requer cuidados e mesmo estratagemas, para os quais me sentia pouco disposto. Essas armadilhas preparadas, sempre as mesmas, essa rotina restringida a perpétuos encontros, limitada pela própria conquista, fatigaram-me. A técnica do grande sedutor exige, na passagem de um objecto a outro, uma facilidade, uma indiferença que eu não tenho relativamente a eles: de qualquer maneira, deixaram-me mais que eu os deixei a eles; nunca compreendi que alguém se saciasse de um ser. O desejo de conhecer exactamente as riquezas que cada novo amor nos traz, de o ver mudar, talvez de o ver envelhecer, concilia-se mal com a multiplicidade das conquistas. Acreditei outrora que um certo gosto da beleza substituiria em mim, a virtude, saberia imunizar-me contra as solicitações demasiado grosseiras. Mas enganava-me. O amador de beleza acaba por encontrá-la em toda a parte, filão de ouro nos mais ignóbeis veios, por experimentar, ao tocar essas obras-primas fragmentárias, sujas ou quebradas, um prazer de único conhecedor a coleccionar barros considerados vulgares. Obstáculo mais sério, para um homem de gosto, é uma posição de eminência nos negócios humanos, com o que o poder quase absoluto comporta de riscos, de adulação ou de mentira. A ideia de que um ser se contrafaz na minha presença, por muito pouco que seja, é capaz de me fazer lamentá-lo, desprezá-lo ou odiá-lo. Sofri estes inconvenientes da minha fortuna como um homem pobre sofre os da sua miséria. Um passo mais e teria aceitado a ficção que consiste em pretender que seduzimos quando sabemos que nos impomos. Mas o nojo ou talvez a parvoíce arriscam-se a começar nesse ponto.
Acabar-se-ia por preferir aos estratagemas bafientos da sedução as simples verdades da libertinagem se a mentira não predominasse também aí. Em princípio estou disposto a aceitar que a prostituição seja uma arte como a massagem ou o penteado, mas já se me torna difícil distrair-me nos barbeiros ou nos massagistas. Nada mais grosseiro que os nossos cúmplices. A olhadela oblíqua do dono da taberna que reserva para mim o melhor vinho, e por consequência priva qualquer outra pessoa de o beber, era já o suficiente, aos olhos da minha juventude, para me desgostar dos divertimentos de Roma. Desagrada-me que uma criatura julgue poder gozar antecipadamente o meu prazer, prevê-lo, adaptar-se mecanicamente ao que ela supõe ser a minha escolha. Este reflexo imbecil e deformado de mim mesmo que um cérebro humano me oferece nesses momentos, far-me-ia preferir os tristes efeitos do ascetismo.
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Memórias de Adriano, Marguerite Yourcenar, Ulisseia, tradução de Maria Lamas.

sexta-feira, 17 de setembro de 2010



Jardim da Estrela, Abril de 2009


Jardim da Estrela, Abril de 2009

quinta-feira, 16 de setembro de 2010


Jardim da estrela, 10.4.2009

terça-feira, 14 de setembro de 2010



Praia de Faro, 29 de Agosto 2010 20.30 e 21h


segunda-feira, 13 de setembro de 2010


Duas cidades com aeroporto: Madrid e Faro. Com possibilidade de estarem ligadas ao resto do mundo.
Nas duas fotos, eu espero. Espero uma ligação. Espero conectar-me. Espero.
Vislumbro nas sombras a presença de algo. Algo que nos observa e nos quer falar.
Mas impossível. Por ser sombra e reflexo de uma qualquer forma cheia de realidade e vontade de o ser. As sombras não têm vontade.
Talvez tenham uma delicadeza, um contorno, uma luz, somente existentes na alma.
Algo permanece. Uma sensação inexprimível ,de infinitos momentos em infinita transformação.
Um amor mudo e intenso pelo objecto que nos faz existir.
Uma sombra é uma luz que vive intensamente o seu luto.


sexta-feira, 10 de setembro de 2010




Cacela Velha, 31 de Agosto de 2010

Praia da Fábrica, Cacela, Tavira, 31 de Agosto de 2010 19.00h

quinta-feira, 9 de setembro de 2010

Tavira, 30 de Agosto de 2010
Faro, 30 de Agosto de 2010
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Já disse. Gosto da manhã. É como ser beijado longamente pela luz e pela serenidade.

terça-feira, 7 de setembro de 2010

Monchique, Casa Karuna, 29 de Agosto 2010
Monchique, 29 de Agosto de 2010
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O Alexandre, pessoa singular, atormentada, inesperada, musical, afectuosa, com uma tristeza alegre de animal selvagem, reservado, livre e um belo sorriso no olhar e nos dentes.
Que estes dias frutifiquem na tua alma.

segunda-feira, 6 de setembro de 2010

29 de Agosto 2010, Monchique, Casa Karuna

Meditação Vipassana.

10 dias para aprender a técnica.

Bastante exigentes, mas também

de uma alegria hilariante, vinda não sei de onde de dentro de mim.

É bom não estar à espera de nada,

não nos apegarmos a qualquer manifestação boa ou má.

Respiramos,

um extenso sentido de liberdade,

de alegria, de doçura mental, de luminosas emoções.

Não é uma receita,

é algo que se vive,

inesperadamente,

como se respira.