segunda-feira, 20 de setembro de 2010

Pensei várias em elaborar um sistema de conhecimento humano baseado no erótico, uma teoria do contacto, em que o mistério e a dignidade de outrem consistiria precisamente em oferecer ao Eu esse ponto de apoio de um outro mundo. A voluptuosidade seria, nessa filosofia, uma forma mais completa, mas também mais especializada, dessa aproximação do Outro, mais uma técnica posta ao serviço do conhecimento daquilo que não somos nós. Nos encontros, mesmo os menos sensuais, é ainda no contacto que a emoção se completa ou nasce: a mão um tanto repugnante desta velha que me apresenta uma petição, a fonte humedecida de meu pai na agonia, a chaga lavada de um ferido. As próprias relações intelectuais ou as mais neutras ocorrem através deste sistema de sinais do corpo: o olhar subitamente esclarecido de um tribuno a quem explicam uma manobra na manhã de uma batalha, a saudação impessoal de um subalterno que a nossa passagem paralisa numa atitude de obediência, o esgar amigável do escravo a quem eu agradeço ter-me trazido uma bandeja, ou a expressão apreciadora de um velho amigo perante o camafeu grego que lhe oferecem. Com a maior parte dos seres, os mais ligeiros, os mais superficiais desses contactos bastam ao nosso desejo, ou mesmo já o excedem. Que eles insistam, se multipliquem em volta de uma única criatura até a cativar completamente; que cada parcela de um corpo assuma para nós tantas significações perturbantes como os traços de uma fisionomia; que um único ser, em vez de nos inspirar quando muito irritação, prazer ou aborrecimento, nos obsidie como uma música ou nos atormente como um problema; que ele passe da periferia do nosso universo ao seu centro, se nos torne, enfim, mais indispensável que nós próprios, e o espantoso prodígio realiza-se, no que eu vejo mais uma invasão da carne pelo espírito que um simples jogo da carne.
Tais pontos de vista sobre o amor poderiam conduzir a uma carreira de sedutor. Se a não segui foi sem dúvida porque fiz outra coisa, aliás melhor. À falta de génio, semelhante carreira requer cuidados e mesmo estratagemas, para os quais me sentia pouco disposto. Essas armadilhas preparadas, sempre as mesmas, essa rotina restringida a perpétuos encontros, limitada pela própria conquista, fatigaram-me. A técnica do grande sedutor exige, na passagem de um objecto a outro, uma facilidade, uma indiferença que eu não tenho relativamente a eles: de qualquer maneira, deixaram-me mais que eu os deixei a eles; nunca compreendi que alguém se saciasse de um ser. O desejo de conhecer exactamente as riquezas que cada novo amor nos traz, de o ver mudar, talvez de o ver envelhecer, concilia-se mal com a multiplicidade das conquistas. Acreditei outrora que um certo gosto da beleza substituiria em mim, a virtude, saberia imunizar-me contra as solicitações demasiado grosseiras. Mas enganava-me. O amador de beleza acaba por encontrá-la em toda a parte, filão de ouro nos mais ignóbeis veios, por experimentar, ao tocar essas obras-primas fragmentárias, sujas ou quebradas, um prazer de único conhecedor a coleccionar barros considerados vulgares. Obstáculo mais sério, para um homem de gosto, é uma posição de eminência nos negócios humanos, com o que o poder quase absoluto comporta de riscos, de adulação ou de mentira. A ideia de que um ser se contrafaz na minha presença, por muito pouco que seja, é capaz de me fazer lamentá-lo, desprezá-lo ou odiá-lo. Sofri estes inconvenientes da minha fortuna como um homem pobre sofre os da sua miséria. Um passo mais e teria aceitado a ficção que consiste em pretender que seduzimos quando sabemos que nos impomos. Mas o nojo ou talvez a parvoíce arriscam-se a começar nesse ponto.
Acabar-se-ia por preferir aos estratagemas bafientos da sedução as simples verdades da libertinagem se a mentira não predominasse também aí. Em princípio estou disposto a aceitar que a prostituição seja uma arte como a massagem ou o penteado, mas já se me torna difícil distrair-me nos barbeiros ou nos massagistas. Nada mais grosseiro que os nossos cúmplices. A olhadela oblíqua do dono da taberna que reserva para mim o melhor vinho, e por consequência priva qualquer outra pessoa de o beber, era já o suficiente, aos olhos da minha juventude, para me desgostar dos divertimentos de Roma. Desagrada-me que uma criatura julgue poder gozar antecipadamente o meu prazer, prevê-lo, adaptar-se mecanicamente ao que ela supõe ser a minha escolha. Este reflexo imbecil e deformado de mim mesmo que um cérebro humano me oferece nesses momentos, far-me-ia preferir os tristes efeitos do ascetismo.
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Memórias de Adriano, Marguerite Yourcenar, Ulisseia, tradução de Maria Lamas.

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