sexta-feira, 19 de fevereiro de 2010

(...)aquilo que leva a que só o ser amado seja o fundamento da capacidade de amar: é a confiança dada por experiências vividas de fiabilidade com o outro que, permitindo renunciar ao primeiro objecto que nos amou e aceitar a sua perda definitiva, na sua forma original, confere a possibilidade de encontrar também a si própria, através de uma busca que vai sempre mais além.
(…)
Assim, amar é, antes de tudo, acolher de um outro um lugar, donde é possível dar aos outros o seu, estando aí disponível para eles(…) O lugar mantido e desempenhado por u permite então ao outro, que o encontra ou que com ele vive, situar-se ele mesmo numa relação que, porque diferenciada, o remete para o desejo que lhe é próprio. Ser remetido para o desejo que nos é próprio é a experiência essencial feita em psicanálise. A vida através das interacções reais é também um lugar onde se pode fazer de outra maneira essa mesma experiência…se, todavia, tivermos a possibilidade de encontrar alguém que saiba ocupar o seu lugar, e nos faça então viver em simultâneo a sua “indiferença” – seja o que for que façamos, ele continua a ser ele – e o seu investimento – tudo o fizermos diz-lhe respeito ao mesmo tempo. Encontramos de novo aqui o que já dissemos sobre a necessária inanidade de uma mãe que está, simultaneamente, presente ao seu filho. Ou aquilo que já dissemos sobre uma relação que precisa de ser mediatizada por um objecto interior. O facto de ocupar tal lugar com prazer, nele vivendo desde então trocas relacionais claramente situadas, e nele realizando uma obra que dá satisfação pessoal, sem lançar olhares invejosos aos que se encontram em torno, pode fazer encontrar e desejar a liberdade fecunda da renúncia.
É graças a esse lugar consolidado e garantido de solidão habitada, que a relação com o outro assume sentido e o amor pode ser vivido, porque ele oferece a possibilidade única de um diálogo fecundo com o outro, a partir do qual é possível construir uma obra numa troca autêntica. Então torna-se possível receber, ouvir e responder aos pedidos e aos desejos, numa palavra, aceitar uma dependência amorosa e amigável, e transformá-la em diferentes formas de enriquecimento. E isso precisamente porque é possível, ao mesmo tempo pedir, desejar, recusar e entrar em conflito.
O amor está no acolhimento oblativo e no dom receptivo, e ninguém pode apropriar-se dele. Se existe apropriação, já não se trata então de amor, mas de captação narcísica. Ele é a mediação, o fluxo e o refluxo, a força dinâmica, o laço entre os contrários, a tensão fecunda das diferenças; ele vive unicamente no espaço entre duas pessoas que se amam, mas que não podem amar-se a si mesmas a menos que, por sua vez e de outro modo, sejam amadas e amem; ele é o si, esse movimento, essa vida, essa circulação incessante de trocas e de energias, vivido entre um homem e outro, e isso até ao infinito. Ele é aquilo que, necessariamente, toma forma num terceiro termo: a obra, o filho.

Págs. 135, 147-8, Jeammet
Pouco a pouco, insensivelmente, neste mundo orgulhoso do seu individualismo, esbate-se a questão da necessidade de amar e de ser amado. Quem sabe actualmente que o amor dá a possibilidade de obter êxito na própria vida e permite oferecer aos outros possibilidades de serem bem sucedidos nas suas?
E, ainda que o soubéssemos, os modelos com que deparamos só nos permitem a nostalgia dessa “crença”. Primeiro fala a razão “razoável” contra a razão paradoxal: se tudo dependeu de um meio circundante quanto à qualidade de um amor recebido, que eventualmente teria então permitido ser bem sucedido na própria vida, a questão é meramente formal. Quando nada dependeu de si, a única salvação real não terá consistido, efectivamente, numa subversão das situações de dependência experimentadas como alienatórias?
E depois desencadeiam-se os reflexos condicionados actuais: “Queriam mostrar que é melhor amar e ser amado? Queriam com isso dizer que existe algures uma verdade que poderia ser válida para todos os homens?” Esta pretensão, sentida como um ataque, é imediatamente desqualificada e assimilada ao pecado do século: um dogma, que esconde um sistema forçosamente paranóico.
Hoje em dia é muito viva a alergia aos rótulos de verdadeiro/falso, bom/mau. Cada um os sente como um escolho relativamente à sua própria liberdade de decisão: por isso cada um pretende possuir a faculdade de se governar a si mesmo, e decidir aquilo que para ele é verdadeiro ou falso, bom ou mau. A identidade procura-se na recusa à sublissão a um imperativo categórico, seja ele qual for: o homem de hoje possui um agudo sentido do direito à sua irredutível diferença. Depois de o pensamento ter sido confiscado por normas colectivas, ele é actualmente confiscado pelo indivíduo.
“Outrora cego para o totalitarismo, o pensamento encontra-se agora cego por ele” denuncia Finkielkraut (La défaite de la pensée), e prossegue:”Tendo-se fixado como objectivo prioritário a ruptura com o masoquismo moralizador”e com as antigas estruturas comunitárias(…)”o homem democrático concebe-se a si mesmo como um ser independente, como um átomo social: separado em simultâneo dos seus antepassados, dos seus contemporâneos e dos seus descendentes, ele preocupa-se em primeiro lugar com fazer face às suas necessidades privadas, e pretende-se igual a todos os outros homens(…)”.”Uma tal reabilitação do individualismo ocidental mereceria ser aplaudida sem reservas, se, na sua raiva anti-depreciativa, ela não confudisse o egoísmo (ou, para utilizar uma perífrase desprovida de qualquer conotação moral: a prosecução por cada um dos seus interesses privados) com a autonomia.(…)No próprio instante em que a técnica, por interposta televisão e interpostos computadores, parece poder fazer entrar todos os saberes em todos os lares, a lógica do consumo destrói a cultura. A palavra permanece, mas esvaziada de qualquer ideia de formação, de abertura ao mundo e de cuidado com a alma. A partir daí, é o princípio do prazer – forma pós moderna do interesse particular – que rege a vida espiritual. Já não se trata de constituir os homens em sujeitos autónomos; trata-se de satisfazer o seu desejo imediato, de os divertir pelo mínimo custo.”A lógica do consumo, se ela destrói a cultura, destrói também o amor.(…)porque esta palavra, tal como a palavra cultura, encontra-se efectivamente esvaziada de qualquer conteúdo rigoroso(…).

págs. 138-140 , Jeammet

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010

La Haine Nécessaire – Nicole Jeammet, 1989 PUF

O Ódio necessário, Editorial Estampa, 1990

Índice

Prefácio de Pierre Luquet
Introdução

Capítulo 1 – O ódio e o amor no Édipo

I. O Édipo, um conflito que obriga a situarmo-nos
II. Aceder ao Édipo supõe ligar em si o ódio ao amor
III. A culpabilidade edipiana
IV. O ciúme, caminho necessário para a superação da inveja
V. Os pais, modelos relacionais identificatórios
VI. O Édipo abre um caminho para o tempo e para a ternura
VII. Ideal do eu e eu-ideal
VIII. O funcionamento mental estruturado pelo Édipo

Capítulo 2 – Vida psíquica afectiva e relacional

I. A experiência do outro
II. A pulsão
a)Realizações de desejo em laço com o objecto
b)Realizações de desejo, desligadas do objecto
c)Os representantes psíquicos da pulsão

Capítulo 3 – A relação mãe-filho: cadinho do amor

I. Freud e Winnicott
II. O “si”
III. O si vivido pela criança
IV. O si vivido pela mãe
a)Um contacto necessário para os seus afectos
b)Uma continuidade psíquica construída para si mesma
c)Uma presença corporal que partilha prazer e desprazer
d)Um espelho objectual
e) Uma ausência, fonte de unificação
V. O si, como lugar do paradoxo

Capítulo 4 – O ódio e os seus destinos

I. A necessidade de se julgar “bom” para viver
II. O ódio e os seus destinos de vida
III. O ódio e os seus destinos de morte
IV. O rosto do outro, um espelho
V. A idealização: máscara devastadora do ódio

Capítulo 5 – O amor? Que amor? Porquê?

I. A lógica do consumo, obstáculo à lógica do amor
II. A identidade viva construída nos encontros
a)A qualidade determinante dos objectos exteriores reencontrados
b)No olhar amante de um outro recebe-se o seu lugar onde ser e criar
c)A lei necessária para uma relação justa
d)As condições para as experiências correctoras
III. Proteger-se do ódio projectado sobre si

Conclusão
Bibliografia
Ando a ler um livro muito interessante, que se chama "O Ódio Necessário" de Nicole Jeammet.
Alguns trechos da Introdução:

(...)O homem não é uma mónada. Situado num meio circundante, ocupa neste um lugar relacional, determinante para ele próprio como para aqueles que o rodeiam.
O sujeito naão pode construir-se sem objecto, e isso por duas razões exactamente inversas. Para uma criança, é necessário que o objecto-mãe ali esteja, presente e disponível no real, para que ela possa acreditar que foi ele que a criou com todos os seus elementos (teoria de Winnicott). A ilusão é fundadora da psique, na medida em que traz em si mesma a possibilidade da desilusão, que é sinónimo de acesso ao real. Um não é possível sem o outro. E nisso consiste o segundo papel igualmente indispensável do objecto: resistir à ilusão de completude, e fazer experimentar o ódio e o desejo de rejeição, a fim de dar ao real o seu peso de “realidade”.
O objecto só será objecto para mim se, em simultâneo, eu pude cria-lo, pela força do meu desejo, e encontrá-lo totalmente independente do meu desejo. Tal paradoxo constitui o cerne do nosso estar-no-mundo como ser indissoluvelmente real e simbólico. É esse paradoxo que este livro pretenderia explorar: a realidade – e muito o valorizou a psicanálise – só pode representar-se em fantasmas, que se interpenetram dinamicamente com objectos reais; mas os objectos reais orientam e transformam incessantemente os fantasmas…
Restringindo o campo ao domínio puramente fantasmático, o estudo psicanítico do funcionamento mental frequentemente propagou uma visão simplista do coração do homem: foi, por exemplo, evidenciado até que ponto o motor último de toda a acção residia permanentemente na evicção do desprazer, mas então se nada se faz com outras motivações para além do prazer, incluindo aquilo que é aparentemente altruísta e desinteressado, isso vem comprovar que todo o tipo de comportamento é equivalente, e que toda a forma de relação recobre, efectivamente, essa única realidade que consiste num único amor de si, um único egocentrismo. Todo o amor se procura a si próprio.
Esta visão, raramente formulada em termos tão incisivos, veiculada de maneira mais difusa e sabiamente ambígua, perverte gravemente o modo como se poderá compreender o que significa amar-se a si próprio e, a partir daí, amar outrem. E isso conduz a uma dupla armadilha: há quem aí encontre a justificação para a legitimidade do desejo pessoal enquanto tal, seja qual for esse desejo – considerando que limitá-lo ou renunciar a ele decorre do masoquismo ou da hipocrisisa – e há também aqueles que, reagindo a essa inflação do eu, assumem a posição rigorosamente contrária: vilipendiando o amor de si, pretendem privilegiar o amor do outro.
(…)
Se o conhecimento tem uma função tem uma função, não será ela a de manifestar sentido e, fazendo-o, permitir-nos o distanciamento das nossas próprias experiências, sejam elas quais forem, e por pouco que seja? Representações que, tendo a ver com uma compreensão coerente de nós mesmos, nos nossos laços de reciprocidade com os outros, não poderão orientar de outro modo as nossas energias de apetência, e proporem-se elas mesmas como possíveis saídas para a nossa libertação das teias afectivas em nos vemos enredados? E permitindo-nos então atingir qualquer coisa dos nossos encontros com os outros.
Porque se uma reflexão sobre este laço exemplar mãe-filho é tão rica, é porque, evocando-nos uma forma de amor, que pode criar ou matar uma vida e um real partilhados, ela fala-nos analogicamente de um campo de forças, presente nas tensões dinâmicas entre nós e os outros, que se encontra constantemente em devir de construção e de destruição.
(…)
Sem espaço de reconhecimento, fazemos necessariamente circular a violência de um ódio destruidor, que se alimenta da justificada reinvindicação de um lugar ao qual cada um tem direito para simplesmente existir. Para que nos sintamos vivos, todos nós temos necessidade de um lar(chez-nous) feito de um espaço e de um tempo abertos, que só se revelam a partir da diferença vivida entre o outro e nós, entre nós e o outro.
Do que são feitas essas maneiras de estar-no-mundo, que dão aos encontros possibilidades de acordarem dinamismos de vida, abrindo espaços e tempos de liberdade entre as pessoas?
De que são feitas, pelo contrário, essas maneiras de estar-no-mundo, que transformam os encontros em ocasiões nas quais se verifica que nada pode mudar, que o condicionamento tem efectivamente a última palavra e, que ele nos abandona ao desespero da repetição e do absurdo?

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2010





Porto Santo, 11 de Fevereiro 2010

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2010

Deram-me um livro do Gary Zukav "Amar, Sonhar, Viver" Pergaminho, que ando a ler. Já tinha deitado os olhos ao famoso "O Lugar da Alma". É um livro dentro do que Louise L. Hay escreveu em "Pode curar a sua vida" e "O poder está dentro de si", Pergaminho, ou seja, estão no grupo daqueles livros nocivos à alma, de tanta ideia positiva, são negativos, por serem terrivelmente moralistas e egocentristas. Dizem coisas importantes misturadas com coisas absolutamente aberrantes, e o pior, é ser a parte nociva a mais facilmente compreensível e aplicável. Com mais tempo, posso escrever mais sobre isso. Como não sou um anti pensamento positivo, sugiro os livros incontornáveis que visam a tomada de consciência de quem realmente somos e a libertação ao nosso "corpo de dor": Eckhart Tolle "Um Novo Mundo" (absolutamente essencial!) e "O Poder do Agora", e os livros de Krishnamurti e Osho.

terça-feira, 9 de fevereiro de 2010

Saíu na edição de Domingo do Público de 7.2.2010, na Pública, um artigo da Alexandra Lucas Coelho, que me deu um especial gozo ler, o que é muito raro nos jornais e revistas que por aí andam. E faz falta! É sobre "um português, engenheiro reformado, que traduziu o livro "9 histórias" de J.D.Salinger para o aniversário da mulher e fez dele uma edição ilustrada de um único exemplar." Dedicou seis meses da sua vida. O livro é absolutamente delicioso, já o dei a ler a algumas pessoas e as reacções são em geral de espanto, por estarem a ler tanto disparate. As livrarias, mesmo em Lisboa, desprezam este tipo de livros, e não será fácil encontrar a edição, única existente, da Difel, diz a cronista. Leiam, é o que vos digo. Deliciem-se ou estranhem-se.
Klaus Wiese e Mathias Grassow dois grandes músicos da música ambiente, aquela em que a influência meditativa e repetitiva dos "drones" (sons que se prolongam com pequenas variações), é a sua matéria prima. Mergulhe nas nuvens ou no seu eu planante.

http://www.youtube.com/watch?v=hdKwuM54FQc

segunda-feira, 8 de fevereiro de 2010

Até que enfim! Alguém escreveu um livro anti pensamento positivo. Contra a ditadura do pensamento positivo. Barbara Ehrenreich nasceu em Montana, nos EUA há 68 anos. Ex-colunista da revista Times e colaboradora do New York Times, entre outros, já foi nomeada Humanista do Ano. Depois de ter tido um cancro da mama, escreveu o livro Bright Sided-How the relentless Promotion of Positive Thinking has Undetermined America ( Como a promoção incansável do pensamento positivo prejudicou a América). Ver texto e blogue

(...)os livros de auto-ajuda são cada vez mais populares.
É muito apelativo acreditar que temos um poder tão grande que podemos controlar tudo o que nos acontece. Querem-nos convencer que podemos curar uma doença, ficar ricos, ter uma carreira de sucesso, conquistar o homem que não nos ama...É uma espécie de religião, a primeira a colocar o ser humano no centro do universo. A ideologia do positivismo é terrivelmente individualista. Nenhum livro de auto-ajuda pergunta se os nossos desejos entram em conflito com os dos outros. Aqui, o homem é capaz de fazer tudo o que quer só com os seus pensamentos.

Estamos menos tolerantes com a infelicidade?
Não queremos ouvir queixas, não queremos saber dos problemas dos outros. Ninguém quer estar perto de alguém negativo. As pessoas são ensinadas a não agir como vítimas. Se alguém pensa que os seus problemas se devem a discriminação racial ou ao facto de ter nascido pobre, o positivismo responde que isso são desculpas, que todos têm capacidade de ser bem sucedidos. Quando tive cancro, não queria estar sempre a queixar-me, mas também não me agradava a ideia de não poder ficar curada se não fosse optimista! Abaixo a ditadura do pensamento positivo!

Em última instância, o positivismo pode tomar o Homem mais infeliz?
Eu sentia-me infeliz com a doença. Ter de fingir que estava feliz só me dava uma sensação de infelicidade maior. Os sentimentos são para ser levados a sério.

De onde surgiu esta ideologia?
É uma coisa muito americana, de meados do séc.XIX. Ironicamente, tenho uma certa simpatia por quem começou este movimento: eram rebeldes contra o protestantismo calvinista da época, diziam que não eram todos pecadores, que não estavam todos condenados ao castigo eterno, que viviam num país cheio de oportunidades. O problema é que no séc. XX o pensamento positivo se transformou numa nova espécie de calvinismo, uma forma de as pessoas se culparem a elas próprias. Agora, em vez de andarmos obcecados com os nossos pecados, andamos obcecados em expulsar os pensamentos negativos.

A expansão das teorias do pensamento positivo pode mudar as características de um povo?
Eventualmente. Está a tornar-se um requisito para arranjar trabalho, por exemplo. Hoje, a atitude é mais importante do que a experiência ou a habilidade. É suposto aprender a ser positivo. Com a globalização, esta tendência pode deixar de ser exclusivamente americana.

Também critica as empresas que contratam oradores especialistas em motivação e positivismo. Acha que o seu papel é "mandar areia para os olhos" dos funcionários?
Acho. É um mecanismo de controlo num mundo empresarial onde queixar-se não é permitido, toda a gente tem de estar feliz com a sua situação, mesmo que seja precária. O império do positivismo movimenta milhares de milhões de dólares, é impossível imaginar quanto-além dos livros de relacionamentos, auto-ajuda e dietas, até nasceram novos postos de trabalho como os oradores especializados em motivação.

Como é que é possível escapar a esta obrigatoriedade do positivismo?
Encarando a realidade. Não é preciso pensar que tudo vai correr mal, mas porque não havemos de olhar para o mundo como ele é? Com as suas oportunidades e riscos?

Retirado de uma entrevista saída na revista "Sábado" de 28 de Janeiro de 2010, com texto de Vera Moura.

A esta última pergunta eu acrescentaria: Porque não havemos de olhar para nós mesmos e os outros como eles são? Mas para isso é necessário conseguirmos um conhecimento profundo de nós próprios, aceitando e melhorando algumas coisas, em vez de achar que só deveremos aceitar o positivo e o bom. Somos feitos de muita coisa contraditória, não acredito que consigamos ser perfeitos ou completamente harmonizados. Isso será conseguido com a consciência e o auto-conhecimento. O que pretendem os livros de auto-ajuda será a pessoa fazer um "reset" ao seu lado mais negro e assumir unicamente o lado luminoso. Pretendem acabar com as dúvidas, o inexplicável, a magia, o encanto, a poesia, a fúria, o sangue...os sentimentos são para ser levados a sério, e para serem nossos, não de todos e todos iguais.

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2010

I wanted sounds to be a metaphor, that they could be free as a human being might be free. That was may idea about sound. It still is, that they sould breath…not to be used for the vesteded interest of an idea.

Morton Feldman

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010

O RIO DA POSSE

Que somos todos diferentes, é um axioma da nossa naturalidade. Só nos parecemos de longe, na proporção, portanto, em que não somos nós. A vida é, por isso, para os indefinidos; só podem conviver os que nunca se definem, e são, um e outro, ninguéns.
Cada um de nós é dois, e quando duas pessoas se encontram, se aproximam, se ligam, é raro que as quatro possam estar de acordo.
O homem que sonha em cada homem que age, se tantas vezes se malquista com o homem que age, como não se malquistará com o homem que age e o homem que sonha no Outro.
Somos forças porque somos vidas. Cada um de nós tende para si próprio com escala pelos outros. Se temos por nós mesmos o respeito de nos acharmos interessantes, (...) Toda a aproximação é um conflito. O outro é sempre o obstáculo para quem procura. Só quem não procura é feliz; porque só quem não busca encontra, visto que quem não procura já tem, e já ter, seja o que for, é ser feliz (como não pensar é a parte melhor, de ser rico).
Olho para ti, dentro de mim, noiva suposta, e já nos desavimos antes de existires. O meu hábito de sonhar claro dá-me uma noção justa da realidade. Quem sonha demais precisa de dar realidade ao sonho. Quem dá realidade ao sonho tem que dar ao sonho o equilíbrio da realidade. Quem dá ao sonho o equilíbrio da realidade, sofre da realidade de sonhar tanto como da realidade da vida (e do irreal do sonho com o de sentir a vida irreal).
Estou-te esperando, em devaneio, no nosso quarto com duas portas, e sonho-te vindo e no meu sonho entras até mim pela porta da direita; se, quando entras, entras pela porta da esquerda, há já uma diferença entre ti e o meu sonho. Toda a tragédia humana está neste pequeno exemplo de como aqueles com quem pensamos nunca são aqueles em quem pensamos.
O amor perde identidade na diferença, o que é impossível já na lógica, quanto mais no mundo. O amor quer possuir, quer tornar seu o que tem de ficar fora para ele saber que só torna seu se não é. Amar é entregar-se. Quanto maior a entrega, maior o amor. Mas a entrega total entrega também a consciência do outro. O amor maior é por isso a morte, ou o esquecimento, ou a renúncia — os amores todos que são os absurdiandos do amor.
No terraço antigo do palácio, alçado sobre o mar, meditaremos em silêncio a diferença entre nós. Eu era príncipe e tu princesa, no terraço à beira do mar. O nosso amor nascera do nosso encontro, como a beleza se criou do encontro da Lua com as águas.
O amor quer a posse, mas não sabe o que é a posse. Se eu não sou meu, como serei teu, ou tu minha? Se não possuo o meu próprio ser, como possuirei um ser alheio? Se sou já diferente daquele de quem sou idêntico, como serei idêntico daquele de quem sou diferente.
O amor é um misticismo que quer praticar-se, uma impossibilidade que só é sonhada como devendo ser realizada.
Metafísico. Mas toda a vida é uma metafísica às escuras, com um rumor de deuses e o desconhecimento da rota como única via.
A pior astúcia comigo da minha decadência é o meu amor à saúde e à claridade. Achei sempre que um corpo belo e o ritmo feliz de um andar jovem tinham mais competência no mundo que todos os sonhos que há em mim. E com uma alegria da velhice pelo espírito que sigo às vezes — sem inveja nem desejo — os pares casuais que a tarde junta e caminham braço com braço para a consciência inconsciente da juventude. Gozo-os como gozo uma verdade, sem que pense se me diz ou não respeito. Se os comparo a mim, continuo gozando-os, mas como quem goza uma verdade que o fere, juntando à dor da ferida a consciência de ter compreendido os deuses.
Sou o contrário dos espiritualistas simbolistas, para quem todo o ser, e todo o acontecimento, é a sombra de uma realidade de que é a sombra apenas. Cada coisa, para mim, é, em vez de um ponto de chegada, um ponto de partida. Para o ocultista tudo acaba em tudo; tudo começa em tudo para mim.
Procedo, como eles, por analogia e sugestão, mas o jardim pequeno que lhes sugere a ordem e a beleza da alma, a mim não lembra mais que o jardim maior onde possa ser, longe dos homens, feliz a vida que o não pode ser. Cada coisa sugere-me não a realidade de que é a sombra, mas a realidade para que é o caminho.
O jardim da Estrela, à tarde, é para mim a sugestão de um parque antigo, nos séculos antes do descontentamento da alma.

Livro do Desassossego por Bernardo Soares. Vol.I. Fernando Pessoa. (Recolha e transcrição dos textos de Maria Aliete Galhoz e Teresa Sobral Cunha. Prefácio e Organização de Jacinto do Prado Coelho.) Lisboa: Ática, 1982.