sexta-feira, 24 de julho de 2009

Amar

Que pode uma criatura senão,
senão entre criaturas, amar?
amar e esquecer,
amar e malamar,
amar, desamar, amar?
sempre, e até de olhos vidrados, amar?

Que pode, pergunto, o ser amoroso
sozinho, em rotação universal, senão
rodar também, e amar?
amar o que o mar traz à praia,
o que ele sepulta, e o que, na brisa marinha,
é sal, ou precisão de amor, ou simples ânsia?

Amar solenemente as palmas do deserto,
o que é entrega ou adoração expectante,
e amar o inóspito, o áspero,
um vaso sem flor, um chão de ferro,
e o peito inerte, e a rua vista em sonho, e uma ave de rapina.

Este o nosso destino: amor sem conta,
distribuído pelas coisas pérfidas ou nulas,
doação ilimitada a uma completa ingratidão,
e na concha vazia do amor a procura medrosa,
paciente, de mais e mais amor.

Amar a nossa falta mesma de amor, e na secura nossa
amar a água implícita, e o beijo tácito, e a sede infinita.

Carlos Drummond de Andrade

terça-feira, 21 de julho de 2009

Há uma coisa que me intriga nas separações: a necessidade que o abandonado tem de que aconteça ao outro o mesmo que lhe aconteceu a si. No mínimo, ser infeliz, de preferência, ser depois abandonado também. Porque em princípio, é muito improvável que o outro se mude para melhor. Se alguém muda, é porque não estava bem. As pessoas não gostam de pensar nas coisas que não correm bem numa relação. Pôr-se no lugar do outro é um elemento essencial para que possamos dizer: eu amo esta pessoa, e exista na realidade uma relação a dois. Se não basta um dizer: eu amo, e o caso está resolvido, esse pensa exclusivamente no seu bem estar, no prazenteiro luxo do amor que possui pelo outro. O amor que se tem pelo outro torna-se um tesouro que oferecemos, se ele fôr digno dele. Amamos e deixamos de amar conforme as circunstâncias nos são favoráveis a nós ou não. Se o amor é esta troca, então realmente quando somos abandonados temos que ser ressarcidos dos prejuízos de um investimento que afinal ficou sem retorno. Aí o outro vai ter de pagar, em karma, em pecado, em culpa, etc. Será possível desejar algo que não a felicidade do outro, quando amamos verdadeiramente? A vida sem aquele que amamos torna-se vazia e sem sentido, é verdade, mas sem sentido será transformar o amor em desilusão e amargura. O amor não é de ninguém, ninguém é de ninguém. O amor é algo que está em nós, inesgotável, luminoso. Não é algo que damos ou que recebemos, é um respirar. Será que vamos conseguir agarrar o nosso respirar, para que ele não fuja? O problema das pessoas é que precisam de outros para sentirem que amam e são amadas, e esquecem-se de sentrir o amor que está dentro delas como uma dádiva, uma alegria, algo de maravilhoso. As pessoas amam outros no fundo, para pensarem unicamente em si próprias, no prazer e alegria que isso lhes dá. Parece contraditório, mas existe o perigo de esquecermos quem é o outro que amamos, porque nós estamos bem. Será que alguma vez saberemos o quanto e qual a qualidade do amor que o outro nos tem? A felicidade é algo que se constrói, não é um objectivo que se possa atingir, e depois...adormecer, deixá-la quietinha como uma fotografia, imóvel como um umbigo. O amor é electricidade, tudo menos estática, mas entusiástica. Luz e alegria do presente. Não do passado, nem do futuro.

quinta-feira, 16 de julho de 2009



Este site com imagens fantásticas diárias: http://antwrp.gsfc.nasa.gov/apod/archivepix.html
Noctilucent Cloud Storm Panorama P-M Hedén (Clear Skies, TWAN)
Explanation: Noctilucent or night-shining clouds lie near the
edge of space. From about 80 kilometers above Earth's surface, the icy clouds can still reflect sunlight even though the Sun itself is below the horizon as seen from the ground. Usually occurring at high latitudes in summer months, the diaphanous apparitions are also known as polar mesospheric clouds and may be connected to global change in the lower atmosphere. This impressive 360 degree panorama made from 34 separate images captures an impressive display of noctilucent clouds all over the sky. It was recorded last month from Vallentuna, Sweden. The photographer reports that the display was like a noctilucent cloud storm, one of the best he's ever witnessed

terça-feira, 14 de julho de 2009

Às vezes, a dificuldade que temos em chegar aos outros, faz de nós extraterrestres, torna as nossas emoções e sentimentos da realidade do outro, puzzles difíceis de descodificar. Um dia mandaram-me esta frase, algo codificada: "atingir o outro num toque invisível, e chegar ao infinito sem palavras ou música ..." No amor, é constante o número de mensagens codificadas, e é desejável que os amantes tenham a sua própria linguagem secreta. Mas a ânsia em atingir o outro num impulso voraz, afasta-nos por vezes de uma compreensão da sua verdadeira dimensão cósmica. O outro torna-se o outro que queremos que seja, não o outro que é. Aí perdemos duas dimensões: aquela que o outro é através do nosso amor , e aquela que permanece codificada e não revelada na essência que o outro é. Atingir o outro, mas esquecendo o que somos e o que desejamos.




A Cosmic Call to Nearby Stars Credit & Copyright: Yuvan Dutil & Stephane Dumas
Explanation: If Earth received this
message from deep space, could we decode it? The people from the Cosmic Call project sent the above image as the first page of a longer message. The message was broadcast toward local stars by radio telescope during the summer of 1999. Another message was sent in 2003. The single-dish, 70-meter diameter telescope that send the messages is located in Ukraine on the Crimean peninsula near the town of Yevpatoria. This first page of the Cosmic Call 1999 message, shown above, involves only numbers and so is easier for puzzle solvers to decode than a more famous message broadcast toward distant star cluster M13 in 1974.


A Message From Earth Credit: Frank Drake (UCSC) et al., Arecibo Observatory (Cornell, NAIC)
Explanation: What are these Earthlings trying to tell us? The above message was broadcast from
Earth towards the globular star cluster M13 in 1974. During the dedication of the Arecibo Observatory - still the largest radio telescope in the world - a string of 1's and 0's representing the above diagram was sent. This attempt at extraterrestrial communication was mostly ceremonial - humanity regularly broadcasts radio and television signals out into space accidentally. Even were this message received, M13 is so far away we would have to wait almost 50,000 years to hear an answer. The above message gives a few simple facts about humanity and its knowledge: from left to right are numbers from one to ten, atoms including hydrogen and carbon, some interesting molecules, DNA, a human with description, basics of our Solar System, and basics of the sending telescope. Several searches for extraterrestrial intelligence are currently underway, including Project Phoenix and one where you can use your own home computer.

segunda-feira, 13 de julho de 2009

Peguei neste livro que tinha já há algum tempo, e nele estão contidos alguns pensamentos que aqui exprimi por mim. Existem por certo, muitas pessoas que compreendem a Vida e o Amor deste modo. Ainda bem. É uma luz intensa que emana e alcança outros, e permite a descoberta do essencial. Obrigado Maria Flávia

VÉNUS é “O Gérmen da VIDA, da FORMA e do AMOR” Alice Bailey

Ensina também que a vibração de VÉNUS é a primeira percepção do Sagrado.
A primeira emoção que o Ser Humano tem da Unidade.
SACRO, o que contém a essência das coisas.
Isso que unifica e integra a dualidade.
O que emociona, por conter a vibração do Espírito.

A VIDA É SAGRADA
O respeito pela vida é uma conquista do Homem inerente à sua evolução.
Traduz uma receptividade venusiana.
Há uma ambiguidade na maneira como VÉNUS é apreendida.
Quem ama valoriza. Se há valoração há relatividade.
Se há relatividade há dualidade.
Se há dualidade há CRUZ, há tensão de opostos.

Por isso, o Amor venusiano tem sempre um reverso de dor, de sofrimento, de limitação.
Amar, é também aceitar a confrontação com o imperfeito.
Em VÉNUS O Amor ainda não é absoluto.

Amar é a única projecção emocional que permite transcender a prisão dos egos-separados, sair da divisão do mundo.
AMAR é UNIR.
Vénus é a primeira experiência de unidade.
Emoção sagrada, resulta do sentimento de expansão do Eu individual.
VÉNUS projecta-se numa ideia, num objecto, num qualquer ser amado.
Amplia a consciência do Eu, libertando-a da amarga solidão de um existir desintegrado e redutor.
VÉNUS projecta-se e identifica-se, para que a emoção de Unidade possa ser, neste mundo dual, novamente recriada.
Neste sentido, o Amor é o encontro do Ser consigo, com o que lhe falta em si, através do outro a quem ama.

VÉNUS ama em dualidade. Procura a Unidade na Dualidade.
Por isso VÉNUS valoriza, exige qualidade. Saber a qualidade é conhecer, inteligir o bom, o positivo, isso a que damos valor.
Não amamos o que não valorizamos e nos aparece sem qualidade.
QUALIDADE, entendida como via do Absoluto, do Imutável, pólo oposto e complementar da QUANTIDADE.
Qualidade, presente ou ausente na Quantidade, o mundo de todos os seres e de todas as coisas.

A Qualidade é inerente ao UM primordial. Contida ou não no DOIS de cada relacionamento.
É um Arquétipo Universal. Só a Qualidade permite sair do relativo, denunciá-lo.
A Qualidade UNIFICA. Remete para a consciência de Leis que ordenam o mundo.
Presente ou não na QUANTIDADE, isso que desdobra e multiplica, e que, contrariamente, remete para a desordem e confusão da existência.

Qualidade e Quantidade, são eternos conceitos da Tradição Sagrada.
Velhos e eternos conceitos, esquecidos ou renegados neste século de transição.
Há que os saber de novo, para que a simbologia de VÉNUS se possa definir.
A noção de QUALIDADE é a própria vibração de VÉNUS, pressentida por complementaridade. Revela-se no que VÉNUS valoriza, no que VÉNUS sempre procura.
Ao valorizar, VÉNUS primeiro discrimina, conhece, para finalmente poder eleger.

VÉNUS é selectiva: gosta ou não gosta.
Esta capacidade de opção e eleição, revela a vibração mental presente no Amor.
Não se pode amar o que se não conhece, ou quem não se conhece ainda.
Inventar o Amor, é não saber amar.
Sem REFERÊNCIAS DE QUALIDADE, não pode haver dinamismo evolutivo.
Amar é a grande referência.
VÉNUS identifica-se com a qualidade do amado, passa-lhe qualidade.
Amar é sempre ampliar o nosso desejo de qualidade.

Amar é o Maior Conhecimento.
Resposta unificadora das energias do Ser.
Quando os Sentimentos com a Mente se pacificam.
Quando o coração e a razão se fundem numa só Emoção.
Quando o Ar, a vibração mental, já pode activar o Fogo, já tem poder de animar a totalidade da vivência interior.
Então o Amor é Visão Absoluta.
A mais alta Vibração da Mente.

Não pode haver identificação com quem não liberta o Eu e não o amplia.
Com quem se revela limitado e redutor.
O mecanismo psíquico presente nesta constatação activa um sofrimento de desencanto. A “dor-de-amor”, tão conhecida de cada um.

Absoluto, Intemporal, o Amor é a nota sagrada do Universo.
Ao sintonizar a sua vibração, vive-se o que é perene, Imutável.
O que jamais pode ser destruído.

VÉNUS dissonante é ainda não saber do Amor.
Os seus aspectos negativos revelam sempre uma qualquer imaturidade.
Exprimem um relacionamento egocêntrico, definido pela energia do planeta com que VÉNUS está em dissonância.
Estes aspectos vão atrair conflitos de relação que obrigam a denunciar a sua não-qualidade.
É o reverso doloroso do Amor: o drama, o equívoco, o desencontro, quando esse a quem se ama, se reconhece como imperfeito.

Sair deste equívoco é atingir um grau de maturidade emocional.
A consciência que permite amar quem se conhece, além da ilusão.
Neste sentido, AMAR é VER.
Inteligir o amado na totalidade da sua proposta de vida.
Aceitá-lo incondicionalmente, pela compreensão do seu dinamismo evolutivo.

VÉNUS é também descobrir no outro isso que em nós desconhecemos.
O que não sabemos de nós próprios e que o ser amado, pelo seu amor, nos revela.
Como se através dele existíssemos mais.
Como se só então, pela emoção do relacionamento, vibrássemos na totalidade.
Pôlo exterior da minha imagem interior, o outro completa e fecha o ciclo da minha identidade.
Quando dois em Um se complementam, vibrando-a-dois, no mesmo Oceano emocional.
Instrumentos que somos de ressonância interna, a-dois vivemos o milagroso ampliar das nossas energias unificadas.

AMAR é sacralizar, tornar Sagrado.
Intuir o Sagrado no não-sagrado.
Separar o Eterno do temporal.
Encontrar Qualidade além do que é precário e indiscriminado.

AMAR é “baptizar” a água poluída do instinto.
Retirar-lhe o medo, que a torna compulsiva e irracional.
Torná-la inteligente.
Dignidade do Homem, devolve-lhe a consciência da sua sacralidade.
Quando sintoniza através do efémero, o que não pode morrer.

AMAR é refazer o mundo.
Reordenar o caos aparente.
Transformar o caos em Cosmos.
É já inteligência do Universo.

Em Maria Flávia de Monsaraz, O amor. A lei. De Vénus à sua oitava, Arteplural Edições, 1992

sexta-feira, 10 de julho de 2009

Ando a ouvir um disco que me cativa nem sei bem porquê. Digamos que gosto de electrónica, barulhinhos e coisas assim, além disso esta música é envolvente, não sei se é música de qualidade, quero lá saber disso, mas está na linha dos Goldfrapp, outros que também me seduzem no som, mas gostar própriamente, não me parece. Além disso, por vezes, gosto de coisas sem que a qualidade assim o obrigue. E isto da qualidade é das coisas mais irritantes que há. Detesto o espírito de rebanho, a única coisa bonita é a voz do pastor, a espaços, o ladrar dos cães, e aquele som permanente dos chocalhos. Algo que não depende de nenhuma qualidade dos presentes, mas que está na sua verdadeira natureza, incorruptível. Falo de Velocifero dos Ladytron, e da canção "versus", uma mistura entre música africana e air, uma valsa, tipo canção de embalar, em que a letra é cantada em tom declamatório e religioso. Aquele orgão faz-nos crianças, faz-nos sorrir, e faz-me lembrar as noites no Lontra com os putos a tocar quase a dormir.

Versus

Distance versus time, cutting verses down to size.
Focus versus tears versus
"How did I get here's" versus curses in your eyes.
Force of nature versus range, nature versus "That is strange."
"There's a fire starting here" versus "There's nothing to fear" versus lonely versus safe.
Like a kitten versus rain.
A cathedral versus love versus shame.
Free versus out to sea,
versus, versus, versus me versus me.

quinta-feira, 9 de julho de 2009


Como naquele dia em que te conheci, e olhei uma galáxia no teu interior. Vesti rápidamente o fato de astronauta e fiz-me à pista, como tu gostas de dizer. Descobri num abraço teu, o foguetão que precisava para esta viagem galáctica. Os beijos, esses, envolvem-me como estrelas, mastigando a atmosfera e saboreando o infinito.

Collection:
NASA Spitzer Space Telescope Collection
Title:
Cosmic Epic Unfolds in Infrared
Description:
This majestic view taken by NASA's Spitzer Space Telescope tells an untold story of life and death in the Eagle nebula, an industrious star-making factory located 7,000 light-years away in the Serpens constellation. The image shows the region's entire network of turbulent clouds and newborn stars in infrared light. The color green denotes cooler towers and fields of dust, including the three famous space pillars, dubbed the "Pillars of Creation," which were photographed by NASA's Hubble Space Telescope in 1995 (right of center; see related image below for exact location). But it is the color red that speaks of the drama taking place in this region. Red represents hotter dust thought to have been warmed by the explosion of a massive star about 8,000 to 9,000 years ago. Since light from the Eagle nebula takes 7,000 years to reach us, this "supernova" explosion would have appeared as an oddly bright star in our skies about 1,000 to 2,000 years ago. According to astronomers' estimations, the explosion's blast wave would have spread outward and toppled the three pillars about 6,000 years ago (which means we wouldn't witness the destruction for another 1,000 years or so). The blast wave would have crumbled the mighty towers, exposing newborn stars that were buried inside, and triggering the birth of new ones. The pillars of the Eagle nebula were originally sculpted by radiation and wind from about 20 or so massive stars hidden from view in the upper left portion of the image. The radiation and wind blew dust away, carving out a hollow cavity (center) and leaving only the densest nuggets of dust and gas (tops of pillars) flanked by columns of lighter dust that lie in shadow (base of pillars). This sculpting process led to the creation of a second generation of stars inside the pillars. If a star did blow up in this region, it is probably located among the other massive stars in the upper left portion of the image. Its blast wave might have already caused a third generation of stars to spring from the wreckage of the busted pillars. This image is a composite of infrared light detected by Spitzer's infrared array camera and multiband imaging photometer. Blue is 4.5-micron light; green is 8-micron light; and red is 24-micron light.



ver site http://www.nasaimages.org/index.html

segunda-feira, 6 de julho de 2009

Laureano Barros
O Homem que fugiu com uma biblioteca
Em “Jornal Público”, 05.07.2009, por Paulo Moura

Durante uma vida inteira, Laureano Barros reuniu , em Portugal, a mais valiosa biblioteca privada da segunda metade do século XX, que agora, após a sua morte, aos 84 anos, está a ser leiloada no Porto. Quem era este homem? Sabe-se que era rigoroso e desinteressado, legalista e libertário, vertical e humilde, pontual e incapaz de manter um emprego, matemático de génio e amante da literatura, tolerante e radicalo, egocêntrico e generoso. Mas porque se isolou ele com a sua biblioteca numa quinta em Ponte da Barca, durante mais de 30 anos?

Ele planeava tudo. Era organizado, previdente e perfeccionista. Inflexível com a verdade, a liberdade, a independência, o rigor e a pontualidade, exigia-os de si e dos outros. Laureano Barros tinha, portanto, poucos amigos, mas bons. Antes de morrer, fez uma lista das únicas cinco pessoas que deveriam ser avisadas. Arnaldo Sousa era uma delas.
Costumavam combinar encontros, para conversar. Arnaldo, de 46 anos, que é poeta e professor de Filosofia, conduzia até ao portão da Quinta da Fonte da Cova. Estacionava e esperava no carro, olhando para o relógio, até três minutos antes da hora que tinham marcado. Era esse o tempo exacto que levava a chegar, a passo, à porta da casa. Cronometrara-o escrupulosamente. Só então saía. Era um dos contratos que tinham, ao longo de mais de 20 anos de amizade: pontualidade absoluta. Outro era sobre as "datas obrigatórias": era proibido desejar Feliz Natal no dia de Natal, ou dar os parabéns no dia do aniversário. Nessa data, também não se ofereciam presentes.Outro contrato era a sinceridade. Nunca estariam um com o outro se não o desejassem. Quando fosse preciso dizer não, di-lo-iam sem receio.
Um dia, Arnaldo teve vontade de apresentar Laureano a um psiquiatra seu amigo, que o visitava em Ponte da Barca. Há muito que falava a Zeferino do velho coleccionador de livros Laureano Barros, a pessoa que mais admirava no mundo. Telefonou para a quinta e explicou a sua intenção, cheio de entusiasmo. "Posso levá-lo?""Não." Arnaldo poderia ter perguntado porquê, mas ficou satisfeito. Respeitar a vontade do amigo era uma obrigação contratual. "Não quer saber por que eu disse 'não'?", concedeu Laureano."Não, não quero saber. Disse 'não' e isso basta-me.""Mas eu quero explicar-lhe: é que eu não tenho interesse em conhecer mais ninguém."Resposta implacável. Mas ao mesmo tempo a chave para uma certeza auspiciosa: quando Laureano dissesse "sim", a sua vontade seria genuína.

Recebia Arnaldo para almoçar, com toda a formalidade e etiqueta. Sentava-o a seu lado, mandava servir os pratos que sabia serem os seus predilectos. Ficavam na sala a conversar, durante cinco, seis horas. A empregada, a sr.ª Mariquinhas, entrava apenas quando Laureano tocava a campainha. Por vezes, no Verão, almoçavam na cozinha. Aí, Arnaldo reparou que Laureano lhe oferecia sempre a cadeira onde ele próprio se costumava sentar, em frente à porta, que dava para as árvores da quinta. Uma vez perguntou-lhe e Laureano explicou a razão: "Porque tu és poeta, e os poetas devem ver a natureza."Falavam de todos os assuntos: literatura, política, filosofia, ciência, a vida e a morte, a amizade e o amor. Laureano era especialista em tudo. Amava a razão, a oratória e o contraditório. Esmiuçava os temas até às últimas consequências. No fim, quando Arnaldo chegava a casa, não era raro ter já vários telefonemas do amigo, que entretanto se lembrara de mais uma achega, mais um argumento. Ligava-lhe e ficavam mais umas horas a debater um pormenor qualquer. Não havia matérias irrelevantes. Todas eram dignas de elucubração e polémica. A escolha do nome de um cão, por exemplo.Após uma tarde de discussão, decidiram chamar Preto a um novo cachorro da quinta, por causa das manchas escuras que apresentava no pêlo. À noite, porém, Laureano telefonou a Arnaldo. Mudara de ideias. Ali perto, explicou, estavam hospedados, devido às obras da barragem do Alto Lindoso, alguns trabalhadores africanos. Poderiam ficar ofendidos quando ouvissem chamar pelo cão, que acabaria por ser baptizado simplesmente como P, já que, segundo vários livros da especialidade consultados por Laureano, os canídeos só fixam a primeira consoante do nome.
Outro contrato, que também foi cumprido: Arnaldo, que durante algum tempo foi director do jornal da terra, não deixaria que O Povo da Barca desse a notícia da morte de Laureano, quando ocorresse.

A juventude
Foi quando foi viver para o Porto, para frequentar o liceu, que o jovem Laureano Barros começou a comprar livros. Frequentava os alfarrabistas e iniciou uma colecção, tal como fazia com os paliteiros, bengalas, relógios, louças, antiguidades ou alfaias agrícolas. Mas ao contrário de toda a traquitana que sempre gostou de trazer para casa, aos livros ergueu uma fidelidade. Não os vendia, não desistia nem se esquecia deles. Começou a acumulá-los na moradia que o pai lhe comprou para se instalar na cidade, na Foz, continuou a ampliar a colecção enquanto viveu nessa casa com a primeira mulher, Leonor, e depois quando se divorciou dela e das seguintes. De cada vez que se separava da mulher com quem vivia (e foram mais mulheres do que os três casamentos), deixava-lhe tudo: a casa, os móveis, as antiguidades. Mas levava consigo a biblioteca. Eram livros de Matemática, de Filosofia, de Botânica, mas acima de tudo de Literatura Portuguesa, e, cada vez mais, volumes curiosos e raros, obras pouco conhecidas, primeiras edições. Por alguns autores tornou-se obcecado e comprava tudo. Depois estendeu a obsessão a todos os escritores. Comprava e lia, várias vezes, os livros de Camilo, Eça, Pessoa, Torga. Sempre teve insónias, e passava-as a ler. Dono de uma memória prodigiosa, sabia páginas e páginas de cor. Perdia horas a arrumar os livros, a manuseá-los, a acariciá-los.Para ele, eram um salvo-conduto contra a efemeridade de tudo o resto. E também contra a desilusão, como se nada, além dos livros, estivesse à altura dos padrões de excelência que estabeleceu. Do grau de pureza que cedo definiu para a sua vida.Tendo concluído a licenciatura em Matemática com alta classificação, Laureano foi logo convidado, com 21 anos, para assistente de Rui Luís Gomes, um dos professores mais prestigiados da Faculdade de Ciências do Porto. A bela colega Leonor Moreira obtivera, no secundário, a segunda melhor classificação a Matemática (19) e ele (que teve 20) casou com ela, quando eram ambos estudantes no curso de Matemática da Faculdade de Ciências. Teriam três filhos: Carlos, Rui e Margarida, futuros médico, arquitecto e professora de Matemática.Mas Rui Luís Gomes era um antifascista incorrigível. Em 1947, a seguir a vários episódios pouco felizes com a PIDE, foi expulso da faculdade, juntamente com outros dois matemáticos, José Morgado e, claro, o recto e incorruptível Laureano Barros, após terem enviado ao Governo uma carta protestando contra a prisão de uma aluna.
Desempregado, Laureano, então com 26 anos, montou uma sala de explicações, em frente ao mercado do Bolhão. Durante mais de 20 anos, viveu disso e pouco mais. Os rendimentos das propriedades familiares de Ponte da Barca, quando chegavam, convertiam-se imediatamente nalguma edição rara de Camilo ou Eça. O mesmo acontecia com as poucas remessas de Angola, onde o pai entretanto se estabelecera e constituíra outra família. Qualquer dinheiro extra era aplicado em extravagâncias bibliófilas, que incluíam, por exemplo, contratar um estudante para lhe catalogar a biblioteca. Foi o primeiro emprego de Alexandre Outeiro. Laureano Barros pagava ao jovem de Ponte da Barca a estadia numa pensão, mais um salário simbólico, para ele passar os dias a fazer fichas dos livros no T2 que, depois de se divorciar pela segunda vez, arrendara na Rua de Sá da Bandeira. Alexandre cumpria o seu horário de trabalho sozinho no apartamento, mas por volta do meio-dia recebia um telefonema de Laureano convidando-o para o almoço num restaurante, onde passaria a refeição a falar-lhe de livros, cultura e aventuras.Alexandre ficou a saber, maravilhado, como Laureano, que nunca foi comunista, deu guarida, na casa da Foz, ao militante comunista na clandestinidade Rogério de Carvalho, ou como se encontrou, a meio da noite, num pinhal em Vila do Conde, com a linda militante clandestina do PC Cândida Ventura, que ele não conhecia, para lhe passar uma pasta com documentos secretos. Ou ainda como numa aldeia chamada S. Martinho da Anta havia um velho olmo negro, descrito por Miguel Torga...Nesta altura já Laureano e Alexandre eram amigos, e davam passeios de vários dias pelo Norte do país, a convite de Laureano, que pagava comidas e dormidas, mas no carro de Alexandre, porque o outro nunca teve carta de condução. Mesmo assim, Alexandre sabia que tinha de chegar ao encontro com o amigo à hora exacta que haviam marcado. Se se atrasasse um minuto, Laureano era capaz de, zangado, ir sem abrir a boca do Porto a Braga. "Ele exagerava", admite Alexandre Outeiro, que é hoje director de uma delegação da Caixa Geral de Depósitos em Gaia. "E sabia que exagerava. Mas era assim. Um homem de um rigor extremo, em tudo o que fazia."

A biblioteca
Depois do 25 de Abril de 1974, Rui Gomes da Silva regressou do exílio no Brasil para ser nomeado reitor da Universidade do Porto. A primeira coisa que fez foi convidar Laureano para dar aulas na Faculdade de Ciências. Relutante, ele aceitou, mas, por discordar dos arbitrários saneamentos de professores, demitiu-se meses depois. Ainda voltou às explicações e leccionou num colégio, mas não se adaptou à balbúrdia da época e, após a morte do irmão, Joaquim, em 1976, mudou-se definitivamente para Ponte da Barca. Ia no terceiro casamento, com a professora de Francês Maria José Caleijo, que continuou a viver no apartamento de Sá da Bandeira. Os livros, esses, viajaram com Laureano. Agora, que herdara a casa grande da família, tinha espaço para eles.Primeiras edições de Fernão Mendes Pinto, Camões, Vieira, Verney, Eça, Pessoa, Antero ou António Nobre, obras juvenis de Guerra Junqueiro, Torga ou José Gomes Ferreira, edições raras de poetas quinhentistas de Ponte da Barca - a biblioteca começou a crescer em majestade, a tornar-se maior do que si própria, misteriosa e imortal, exigindo reverência e devoção. Laureano foi ficando solitário. Ninguém sabe ao certo porquê.Laureano Alves, primo de Laureano Barros, acha que ele se tornou um homem desiludido. "Passava muito tempo sozinho, embora adorasse conversar." O comportamento dos outros entristecia-o. Principalmente o dos mais comprometidos com o mundo. Por isso foi cortando elos. Recusou tudo o que lhe ofereceram. Foi convidado para professor catedrático da Faculdade de Ciências, como se tivesse leccionado durante todo o tempo desde a expulsão, em 1947. Não achou justo. Aceitou o cargo de director da Escola Secundária de Ponte da Barca, mas por pouco tempo. Segundo uma investigação que instaurou, descobriu serem falsos os atestados médicos que uma professora apresentava para faltar às aulas. Como ela não foi demitida, alegadamente por ter amizades no Ministério da Educação, Laureano pediu a reforma. Mais uma vez, recusou que lhe fosse contado o tempo de serviço desde a sua expulsão da Função Pública, como tinha direito, pelo que ficou com uma pensão miserável."Para ele, tudo tinha de ser perfeito", explica o primo. Não facilitava. Essa era provavelmente a razão por que, sendo um amante da literatura, não escrevia. "O que fizesse teria de ser perfeito. Até uma carta, demorava semanas a escrevê-la. Esse perfeccionismo paralisava-o. E, no entanto, escrevia muito bem." Também terá sido por causa do perfeccionsmo e obsessão pela verdade que não conseguiu manter nenhum casamento, explica um amigo. Não suportava situações menos que perfeitas, e não conseguia mentir: de cada vez que tinha uma infidelidade, contava logo, o que acabava por levar à separação. Mas continuou amigo de todas as ex-mulheres.A última, Maria José Caleijo, foi companheira até à sua morte, durante 45 anos, apesar de tudo. A certa altura, por imperativos de coerência, divorciaram-se, embora tivessem continuado juntos.

A solidão
Laureano isolou-se em Ponte da Barca, onde passaria os últimos 30 anos de vida. Fugia das pessoas, e ao mesmo tempo procurava-as. Os outros surgiam-lhe como entidades algo imateriais e o encontro com eles não raro o fazia sentir-se perdido. Para não se desiludir, preferia por vezes manter à distância aqueles de quem gostava, ignorando a crueldade da atitude. Quando Margarida, a filha, regressou de Inglaterra, onde, muito jovem, fora fazer o doutoramento em Matemática, Laureano fez tudo para que ela não o fosse visitar. Tinha medo que ela tivesse voltado muito esquerdista, e que se zangassem à primeira discussão. Fizera tudo, aliás, para que ela não seguisse Matemática, receando que não conseguisse. Margarida empenhou-se em mostrar que ele estava enganado, concluindo a licenciatura com média de 17.Talvez cultivasse o relacionamento com os que se prestavam a ser amigos imaginários, metáforas de si próprios. Dizem os psicólogos que os coleccionadores compulsivos sofrem de incapacidade de lidar com os outros. Se isso é verdade, os livros, metáforas perfeitas da vida, são a colecção ideal do filantropo solitário.No entanto, Laureano tornou-se amigo de pessoas que admirava. Lagoa Henriques, Óscar Lopes, Costa Gomes, que foi seu colega de faculdade. O general era visita regular da Quinta da Fonte da Cova, até quando foi Presidente da República (Laureano chegou a enviar-lhe uma carta criticando-o pelas cedências aos comunistas), e o mesmo acontecia com vários intelectuais e artistas, alguns bem pouco convencionais, como Luís Pacheco ou Eugénio de Andrade. Nestes, o austero e rígido Laureano apreciava a liberdade e a capacidade de surpreender. Mas mais tarde ou mais cedo a tolerância levava à colisão.Eugénio passava grandes temporadas na quinta. Sentia-se em casa e dava largas às suas muitas próprias jovialidade e loucura. Mas quando a mãe de Laureano morreu, não mostrou grande consternação, explicando simplesmente que não gostava de funerais.Uma vez, numa festa, Laureano apresentou-lhe uma personalidade de Ponte da Barca, um sujeito baixo e gordo que sorria de deferência para com o poeta. Eugénio apertou-lhe a mão - "Muito prazer!" - mas ao mesmo tempo disse para o lado, alto e bom som: "Isto é um homem ou é um cagalhão?"Foi de mais. Laureano cortou com ele relações, que só viria a reatar, décadas depois, pouco antes da morte do amigo.

A vida na quinta
Em Ponte da Barca, Laureano era amado e odiado, e retribuía ambos os sentimentos. As eminências locais tinham a noção de ter ali uma personalidade de craveira nacional, e tentavam aproveitar-se, oferecendo-lhe cargos e medalhas. Laureano nunca aceitou, alegando que nada fizera pela terra, o que não podia ser mais verdade.Limitava-se a ser um exemplo, o que nem sempre era devidamente apreciado. Para desconforto de muita gente, a legalidade fiscal era uma das obsessões de Laureano. Quase uma doença. Pagava tudo antes do tempo e até mais do que devia, para não correr o risco de errar. Não admitia a mínima batota. Nas transacções de propriedades, era comum assinar-se a escritura por um valor inferior ao real, para pagar menos imposto. Laureano recusava-se, o que lhe impediu alguns negócios. Mas não cedia. Uma vez, quis vender uma das terras da família por 100 mil euros. O comprador aceitava o preço, desde que se fizesse escritura por 10 mil. Laureano fez um acordo: pagaria ele próprio o montante do imposto de transacção correspondente a 90 mil euros, que era devido ao outro. Foi aceite e o negócio fez-se.Intransigente em relação à dignidade das pessoas, Laureando comia com os seus trabalhadores à mesma mesa, o que muitos consideravam esquisito.Foi também o primeiro, na região, a fazer descontos para a reforma e segurança social dos trabalhadores. Os outros agricultores sentiram-se prejudicados com este precedente e nomearam um representante para interceder junto de Laureano. Quando aquele chegou à quinta sugerindo, com falinhas mansas, que o "senhor doutor", pelo menos, descontasse para a segurança social apenas um dia ou dois, e não a semana inteira, foi corrido com insultos. A Quinta da Fonte da Cova era um oásis de legalidade. E de alguma loucura também.

Os "meninos"
O patrão achava que devia iniciar os empregados no mundo da bibliofilia e da cultura. Lia para eles, convocava-os para sessões temáticas nos aposentos por onde se distribuía a biblioteca: a sala, a salinha, o quartinho ou mesmo a saleta. Por vezes, anunciava-lhes que iam dar um passeio. Chamava então Arlindo, o seu taxista de serviço, e partiam para um tour literário pelas aldeias do Gerês. No fim, jantavam todos no Restaurante Elevador, no Bom Jesus de Braga. Previamente informado, o gerente reservava uma mesa num recanto discreto, para que o grupo (de "secretários", como Laureano os apresentava) não assustasse os clientes normais do luxuoso restaurante. E lá iam, o Nelinho, o Carlos, o Nuno, o Gi e todos os jornaleiros da quinta, incluindo o lenhador José Corga, que carecia de uma indicação especial à cozinha do restaurante. Corga era um fenómeno: só comia batatas (em dias de festa, com bacalhau - era a sua única concessão), mas não em doses normais. Precisava de um prato especial, de Viana, onde coubesse "meia quarta" (o equivalente a três quilos) de batatas cozidas. Repudiava, aliás, a ideia de que alguém conseguisse comer mais do que ele.Laureano, que se maravilhava com os prodígios da Natureza, gostava de encorajar e exibir este apanágio do empregado. Por isso, no Elevador, o senhor Corga tinha direito ao seu prato especial de batatas.O "senhor" Corga. Laureano tratava toda a gente por "senhor". Até um pobre que ia lá a casa levar a carne do talho merecia sempre um "Obrigado, senhor Manuel". Para o Nelinho, isto era pura magia. Nunca tinha visto nada assim. Laureano tinha o estranho poder de elevar as pessoas. De transformar um zé-ninguém num senhor. "O doutor foi a pessoa mais honesta e culta que conheci à face da terra", diz Manuel Rocha, a quem Laureano chamava Nelo, ou Nelinho, que hoje tem 36 anos, mas está na quinta desde criança. "Ele para mim era tudo. Sempre pensei: com este homem, não preciso de mais nada."Nelo era uma das várias crianças que trabalhavam ou habitavam na Quinta da Fonte da Cova, tais como o seu irmão, Carlos, o Nuno Leitão ou o Moisés Cerqueira (conhecido como o "Gi"), ou os sobrinhos mulatos de Laureano (filhos dos seus meios-irmãos de Angola), que lá iam passar férias.
O pai de Nelo fora jornaleiro na quinta. Levava-o para lá na época da apanha da maçã, trabalho que requeria gente pequena e leve. Mas um dia emigrou para França e deixou com o "doutor" os filhos, Nelo e Carlos. O "doutor Manuel" e o "engenheiro Carlos", como Laureano passou a designá-los, celebrando o talento para a conversa de um e o jeito de mãos do outro.Carlos, com efeito, acabaria por arranjar emprego como mecânico de máquinas, e passou a ir à quinta apenas às quartas-feiras, almoçar. Nelo continuou a viver lá, até à morte de Laureano, no ano passado. Encarregava-se de vários trabalhos na quinta, mas também tomava conta da biblioteca e, acima de tudo, tornou-se discípulo, amigo e confidente do patrão. "Nelinho, hoje o dia já está ganho, vamos conversar", chamava Laureano. "Nelinho, comprei um livro novo, vamos vê-lo". E Nelo interrompia o trabalho na quinta, sentava-se na salinha. "Isto, Nelinho, fica só entre nós. Não sai daqui", dizia-lhe Laureano, depois de contar uma visita a um alfarrabista ou a um leilão para adquirir um certo livro raro.Nelo percebera que a biblioteca se tornara muito valiosa, e não convinha que isso constasse. Era um segredo que guardava. "Nelinho, hoje vamos tirar os livros daquela prateleira. Vamos vê-los." Ou então: "Vai ali à saleta, à segunda prateleira da estante do meio, encostada à janela, tira o terceiro livro a contar do lado norte para sul. Abre na página 153..."Nelo abria e Laureano, da outra sala, começava a dizer o texto de cor, excertos enormes de Camilo ou Pessoa. Conhecia ao pormenor cada um dos seus livros e sabia exactamente onde se encontrava.
Um dia, Nuno Leitão, que trabalhou na quinta mas depois estudou Informática de Gestão, ofereceu-se para catalogar toda a biblioteca em computador. Laureano agradeceu, mas não precisava: tinha os ficheiros todos na cabeça. Nuno chegou a viver na Fonte da Cova, mas acabou por ir estudar, encorajado por Laureano. O "Gi", que foi criado na quinta, sairia para casar e arranjar emprego como serralheiro. A família dele, muito pobre, vivia numa casa em frente. Eram oito irmãos, que cedo se fizeram aos caminhos do fracasso ou do crime. Para lhe dar um futuro alternativo, a mãe de "Gi" pô-lo a viver na quinta, aos seis anos. Ele e o Nelo, bem como o Carlos e o Nuno, eram como filhos de Laureano. Os seus "meninos", dizia ele. Todos falam do "doutor", hoje, com incondicional afecto e uma orgulhosa emoção. A exaltação quase fanática, possessiva, de quem sente ter tocado uma esfera superior da existência. "Faço questão de ser como ele, na minha vida", diz o Nelinho. "Em cada situação, penso: se o senhor doutor fosse vivo, faria assim. E tento fazer igual."Não é fácil entender que tipo de influência Laureano exerceu sobre os espíritos destes jovens. Mas basta falar um pouco com eles para perceber que ainda lhe estão submetidos. Têm uma transparência comovente no olhar, que nos faria confiar-lhes a própria vida, sem hesitação.Não que Laureano tenha sido condescendente com eles. Mas talvez por isso mesmo. "Gi" não teve uma relação fácil com o "doutor", que se zangava, e lhe batia, se ele chegava tarde a casa. Para o punir, mandava a Mariquinhas cozinhar favas com carne, o prato que "Gi" detestava. Uma vez, por ele ter ido ver as cheias do rio e não comparecer a horas no trabalho, deu-lhe uma bofetada. "Gi" fugiu para casa dos pais. No dia seguinte, Laureano telefonou-lhe a pedir que voltasse.Acima de tudo, irritava-se por o seu "menino" não levar os estudos a sério. Ele ia, no entanto, concluir com êxito o secundário, não tivesse Laureano, que era na altura director da escola, irrompido pela reunião de professores, expressamente para não os deixar aprovar o "Gi". "Eu estou com ele em casa e vejo que ele não estuda", garantiu o director. "Gi" chumbou e foi trabalhar como serralheiro. Mas não ganhava o suficiente e teve de emigrar para Andorra, porque o "doutor", com os seus rígidos princípios, se recusou a meter uma cunha para lhe arranjar um emprego.
Já o Nelo não quis continuar os estudos, nem empregar-se, para ficar com Laureano. "No meu íntimo, eu sentia que não podia deixar o doutor. Achava que ele precisava de mim", explica o Nelo, que ainda continua na quinta, sem saber que ela vai ser vendida. "A minha filosofia de vida era: enquanto o doutor for vivo, eu fico com ele."Parece que os dois competem pela maior dedicação a Laureano. "Gi" conta que passou muitos Natais sozinho com ele, quando nem os filhos o vinham visitar. E que, pouco antes da sua morte, era ele quem lhe dava banho.Nelo e "Gi" contam cheios de vaidade estas compassivas intimidades, como se defendessem um fundamental património humano.
Laureano dissera à empregada: "Maria, se eu morrer, chama os meninos, para virem ajudar." Foi nessa altura que escreveu a lista de quem deveria ser avisado e as regras para o funeral, que incluíam ser enterrado sem caixão, sem discursos e sem cerimónia religiosa, de preferência na quinta (vontade que, obviamente, não pôde ser cumprida).Nos últimos tempos de vida, aliás, depois de ter ficado doente, Laureano começou a preocupar-se com a posteridade. Não teve nenhuma fraqueza religiosa - manteve-se agnóstico até ao fim - mas passou a tomar disposições. Uma delas fora o divórcio com Maria José Caleijo, para não causar aos filhos problemas com a herança. Margarida, aliás, que só soube pelos jornais do casamento do pai, foi convidada formalmente para um almoço de divórcio.Depois, Laureano doou todos os bens aos filhos. Quis poupá-los a burocracias e eventuais contendas. Organizado e precavido como era, passou os últimos anos a preparar o seu desaparecimento. Distribuiu as casas e os terrenos pelos três filhos, mas a sua grande preocupação eram, obviamente, os livros."Este ficará para a minha filha", ia dizendo ao Nelinho, "esta colecção para o Carlos...", mas à medida que se aproximava do fim, e ia perdendo o interesse por tudo excepto pelos livros, apercebia-se também de que os filhos não queriam a biblioteca. Pensou em várias soluções - doar as obras a uma instituição, criar uma fundação (ideia do filho Carlos). Mas nenhuma lhe agradou. Por fim, deixou de pensar no assunto. Mergulhou numa estranha apatia, uma inconsciência meticulosa e desesperada, que apenas aos seus "meninos" era visível. E os fazia sofrer.Como pôde aquele homem que tudo calculava e tudo prevenia ter cometido um erro tão grosseiro? No seu afã de tudo medir pela beleza dos livros, de sublimar neles os seus dias e o seu futuro, nunca lhe passou pela cabeça que a biblioteca pudesse não ser eterna.Mas não deixou, mesmo sabendo (e decerto aceitando) que em breve tudo aquilo seria vendido em leilão, de folhear, tratar e acariciar os seus livros, com a leveza confiante com que uma criança diz adeus a quem ama. A mesma com que, pouco depois, as mãos grossas e calejadas do "Gi" lhe seguraram o rosto que partia.

quinta-feira, 2 de julho de 2009

Não morreu Pina bausch.(2009-(...))