terça-feira, 30 de junho de 2009


Arco de S.Jorge, Madeira, 29.06.2009



Arco de S.Jorge, Madeira, 29.06.2009

sexta-feira, 26 de junho de 2009

Don't Stop 'til You Get Enough de "Off the Wall"

Wanna Be Startin' Somethin' de "Thriller"

As duas primeiras canções destes dois discos são das mais perfeitas de Michael Jackson. As duas anunciam algo que começa, que desencadeamos, e não vamos conseguir parar, porque queremos sempre mais, e o nosso corpo transforma-se num alucinante e frenético ritmo de vida, e a vida numa insondável viagem de transformação e transfiguração.

quarta-feira, 24 de junho de 2009

A todos os que me acompanham aqui, amigos em especial, confesso que não tenho tido muito tempo para escrever, e alguns acontecimentos, fizeram-me mais prudente no meu envolvimento emocional neste espaço. Entretanto, a vida inunda-me de beleza e encantamento: o meu amor.

segunda-feira, 22 de junho de 2009

Sous le regard du poète, toute chose pour en devenir un symbole doit entrer dans le drame du bien et du mal. Les pierres se vengent, comme la femme, d'une infidélité, d'une inattention à leur vertu symbolique. Il suffit qu'une vertu soit intense pour révéler un abîme. La pierre est un intermédiaire de passion. Tous les objects, dés qu'on en dégagé le sens symbolique, deviennent les miroirs grossissants de la sensibilité! Plus rien dans l'univers n'est indifférent dés qu'on donne à toute chose sa profondeur.

"Une personalité, c'est la sonorité propre d'une personne." V.-E. Michelet

em Gaston Bachelard, Le droit de rêver, PUF 1970

sexta-feira, 19 de junho de 2009

Moscavide, 2 de Janeiro de 2009

terça-feira, 16 de junho de 2009

Soneto de Fidelidade

De tudo ao meu amor serei atento
Antes, e com tal zelo, e sempre, e tanto
Que mesmo em face do maior encanto
Dele se encante mais meu pensamento.

Quero vivê-lo em cada vão momento
E em seu louvor hei de espalhar meu canto
E rir meu riso e derramar meu pranto
Ao seu pesar ou seu contentamento

E assim, quando mais tarde me procure
Quem sabe a morte, angústia de quem vive
Quem sabe a solidão, fim de quem ama

Eu possa me dizer do amor (que tive):
Que não seja imortal, posto que é chama
Mas que seja infinito enquanto dure.

Vinicius de Moraes

segunda-feira, 15 de junho de 2009


O amor tem raízes.
Raízes aéreas: de voos de pássaros, de flores ternas, encantadas pelo sorriso lunar.
Raízes aquáticas: mergulhadas em beijos, acariciadas por peixes, purificadas e doces.
Raízes subterrâneas: de pulsar constante, de magma e desejo. Misteriosas e secretas.
Raízes tubérculas: que alimentam a alegria, e a loucura voraz de entranhar o outro.

sexta-feira, 12 de junho de 2009

Esta sinfonia é um algarismo de perfil.
A noite alegra-se por eu começar a escrever. É necessário que a minha escrita seja um começo. Não pressuponho qualquer interrupção embrionária, apesar de imaginar coisas fora do seu contexto. Falta admitir que um concerto bem estudado, em que o executante desnivela a promiscuidade onde o cambalear dos gestos resulte, afinal, numa metáfora. Rodeia, talvez, um certo encanto no meu quarto. Sempre nos haverá de preocupar o determinismo e o acaso da vida, desde que a física descobriu ser a nossa sensibilidade uma verdade cosmológica. 21.11.1985

terça-feira, 9 de junho de 2009

Mais um texto de Agustina, não que eu seja um leitor assim tão devoto, nem cheguei sequer a ler um livro seu. Mas estes textos são elixires que nos purificam. Este com 25 anos, pretende comemorar o dia 10 de Junho. Confesso que é um dia que me passa completamente ao lado, Camões também não o li, talvez seja preciso viver fora de Portugal para sentir determinados factos e personalidades da nossa história, daí também ser dia das comunidades portuguesas.
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A ALMA ESCRITA
Quando eu comecei a ler os Contos Venezuelanos, distingui-os dos outros, e direi porquê. Eram escritos como se a Natureza os contasse, palavra por palavra, duma maneira contrariada: como se a Natureza estivesse fechada ao conhecimento dos escritores. Como se a beleza e as duras penas que ela significa não servisse para pôr nos livros.
Eu penso que viver as coisas é uma história; e falar do padecimento ou da alegria, é outra: Por muito que acertemos as contas com a realidade do mundo, ele sai sempre credor. Só às vezes percebemos isso; mas é tarde para corrigir o que ficou escrito e que afinal, também consola, como tudo o que parece verdade e não o é, mas podia ser verdade.
Pediram-me, ou pedi eu em pensamento, para vir aqui falar de Portugal, no dia de hoje, o das Comunidades também. Estranho acontecimento como sempre que tenho de conhecer um público e interrogar-me sobre ele. Porque, de mim, sabem que escrevo livros e que represento conceitos de instrução e de sabedoria; mas dos que me ouvem não sei senão que estão movidos pelo interesse de verificar se vale a pena confiarem no juízo do literato, e sobretudo se o literato é uma mulher.
O dilema é este: nós, as mulheres, somos prosaicas, sobretudo quando somos naturais. É próprio daqueles que são delicados e frágeis o serem terra-à-terra, porque isso lhes dá a impressão de estarem mais protegidos. A realidade protege mais do que os sonhos, do que as coisas imaginárias.
Ora, sendo eu prosaica, como mulher que sou, sempre me intitulam poética. Além disso, encarregaram-me, com ingenuidade assombrosa, de fazer o retrato dos poetas, de lhes construir altares e tronos ou tecer-lhes coroas de louros para substituir as que traziam e que não estavam já verdes e viçosas. É o caso de Camões, o nosso vate oficial, o mais alto monumento das nossas letras. Não digo que ele está mal entregue nas minhas mãos; digo que não posso ajustar nele o espírito da poesia, porque eu não sou poética. Isto deixa correr um arrepio pelo meu público, bem intencionado perante o enigma que eu personifico. E têm o direito de perguntar:”Que se pode esperar duma mulher? Não vem ela comprometer a solenidade deste dia que se quer inesquecível e brilhante e único?” Eu apresso-me a responder: “Nada está perdido. Se eu não sou poética, apesar de dizerem que sou, cada vez com mais veemência e singular teimosia sei descobrir nas coisas comuns uma directa via que as leva ao coração, que as torna capazes de serem mais doces do que a lírica mais melodiosa” Afinal, não sei o que será melhor: se andar no sobressalto deste mundo, a endeusar as experiências e acabando com melancólicos pensamentos, ou se, sem nunca perder de vista a realidade, ver nela a extensão do espírito, que em tudo se manifesta, e não só no ideal que foge à evidência e é engenho e arte: É inevitável que aquele que muito inventa e vagueia nas suas invenções, dá com os ossos no cepticismo e termina cansado de ter mentido, ainda que a mentira se chame inspiração. Mas quem acredita no diálogo decorrido no seio da humildade, vendo e contemplando o que é igual em todos os dias da vida, esse não morre nunca, nem é preciso até comemorá-lo.
Digamos que Camões foi sobretudo esta pessoa; e não o poeta endomingado em mil habilidades de letrado. Interessa mais descobrir nele a prosa do que os versos; ou ver nestes o idílio com a pequena história, com os dias passados em obscura festa no mais profundo ermo da voz humana.
Quando eu li, há muitos anos, os Contos Venezuelanos de Rómulo Gallegos, que foi célebre na sua moral a ponto de o povo o fazer primeiro magistrado desta nação, eu encontrei neles o significado do que é ser prosaico. É sentir-se gente vulnerável e portanto próximo de tudo que é real e tocável: como as árvores, as pedras, o fio de água em que reduz o oiro como um veio de aproximação com o que chamamos felicidade.
Quando Camões fazia versos para uma dama, em geral estava a tentar trocar a sua fantasia por um bom almoço. Quando compunha Os Lusíadas, servia-se decerto mais do dicionário mitológico do que dum estado de puro êxtase e devaneio poético. A poesia tem materiais estranhos, quase ferozes. Quer dizer: tem prosaicas garras que a prendem À terra. Isto de uma pessoa ser prosaica ou ser poética leva-nos a longas meditações. Uma vez, estava eu em lugares do continente americano, como este é, e o meu encargo era o de fazer o comentário a um discurso universitário sobre o génio da poesia portuguesa. O doutor ilustre que falava, em tudo via inspiração dos deuses e tratava os poetas como se eles fossem imateriais e mais infelizes do que os outros que não são poetas. Na minha frente estavam duas mulheres idosas; tinham um ar distraído e até um pouco malicioso; como ser aquilo que estavam a ouvir as enchesse de pacientes sentimentos, como se fosse uma brincadeira de gente culta. Eu pensei nas palavras finais de Camões, que compara a experiência e as palavras que descrevem com “água do mar em tão pequeno vaso”. Pensei no que é uma vida humana e nas vãs memórias dela que depois dizemos ser poesia. Mas poesia é outra coisa. Tem que ver com o concreto do nosso dia-a-dia, só que suspenso no coração por uma espécie de registo que o modela, sem explicação. Mas tem que ver com a alma, mesmo quando a alma é ausente ou cativa.
Quando foi a minha vez de falar, eu disse, voltando-me para as duas mulheres, decerto amigas e vizinhas de muitos anos: “A poesia, não acredito que seja esse estado nervoso tão doente e agitado. Alguns poetas parece que lhes arrancam os dentes ou deliram numa meditação assombrosa com coisas que nos descrevem o amor e a morte, mas não sabemos se se lhes parecem. A poesia, vou dizer-vos o que é: eu tinha uma avó velhíssima, de quase cem anos, que perdera já a memória do presente. Não reconhecia as filhas, que a não deixavam nunca só e a serviam continuamente. Não reconhecia os lugares da casa, a porta chapeada de zinco que abria para o caminho, a outra porta pequena que abria para o quinteiro. Mas, às vezes (eu fixo-me num dia em que assisti a isso), ficava atenta à chuva que caía, e ordenava, levantado a mão tão branca e ociosa, ela que trabalhara tanto e amassara a farinha e carregara tantas abadas de legumes e de feijão, e carregara ao colo os filhos também. Ela disse, olhando para a janela a eira inundada: “Vem ali o vosso pai e não tem casaco. Leva-lhe um casaco para que a chuva o não molhe”. Era uma cena que ela reproduzira fielmente passados mais de quarenta anos, e isso era poesia. Lembro-me daquela mão branca e descarnada, como um aceno para além da memória. O velho coração cansado batia ainda como um relógio onde uma e outra chave servia dos antigos pensamentos. E vede as palavras de Camões se aqui se ajustam quando ele diz: “ E a lembrança da longa saudade/ então fosse maior contentamento,/ vendo a conversação leda e suave/ onde uma e outra chave/ esteve de meu novo pensamento”.
Tratava-se de mulheres prosaicas; mas quem sabe onde a poesia nasce senão das verdades pela gente passadas? Reparem que Luís de Camões não deixa de sublinhar esse contrato sério entre a realidade das coisas e a poesia: “Nem eu delicadezas vou cantando/ Co’o gosto do louvor, mas explicando/ Puras verdades já por mim passadas”.
O que é a prosa, tão atribuída ao viver das mulheres? Elas vivem em parte em trânsito nos seus cuidados, porque entre vivê-los e socorrê-los não têm tempo de sobra. E até têm um pouco de medo de parar muito em meditações, porque, se o fazem, o lume apaga-se, os filhos gritam, a sopa vai por fora. A poesia tem assim que ser a conta-corrente das obrigações que cansam e não inspiram. Mas é poesia na mesma.
Eu venho aqui dar uma demão às glórias passadas e pô-las reluzentes neste célebre dia. Mas não deixo também de encarnar o comum das gentes, que é a glória sem hinos e a História sem reinados. De certa maneira quero que a homenagem deste dia recaia na mulher, que é pouco favorecida, excepto na imaginação dos homens. Aí ela é toda boniteza e poder do mundo; Camões, mesmo quando ela vai para a fonte, veste-a de duquesa e nunca de saiote remendado e chinela cambada. Nunca de cabelos ripados, mas enfeitados de pérolas e fitas. E, no entanto, a mulher que não compreende, porque não compreende quanto é bela quem de tão pouco está contente, essa mulher é o símbolo melhor da poesia. “Triste quem de tão pouco está contente!” – diz Camões, como se falasse das mulheres. É dele que fala, porque das mulheres não se fala assim. Há outro poeta grande da nossa literatura, Bernadim Ribeiro, que pensou no assunto e resolveu que “só a mulher é triste”. Mas não é tristeza o que ela sente, porque, quando sente, tudo se tornou noutros cuidados e até na distracção deles.
Uma vez, eu viajava entre Lisboa e Porto e encontrei um conservador obstinado, desses que, à força de nos fazerem merecer os escrúpulos de contrariá-los, acabam por impor as suas opiniões. Ele achava estranho que a mulher dele não se comovesse com as terríveis cenas da fome na Índia ou dos massacres terroristas; porém, quando se tratava de absurdas situações da telenovela, ela chorava como uma fonte. Os poetas quase reparam nestas coisas quando referem as “lágrimas e suspiros infinitos,/ iguais ao mal que dentro na alma mora”.
O mal que dentro na alma mora. Não é o mal de amor nem injustiça, nem de nada. É um sentimento de ter cometido um erro, de cair numa irreparável condição humana que não há maneira de alterar, por maior dignidade que tenha uma vida. A mulher sabe, duma maneira rápida e sem drama, o que é aceitar o mundo; é perder o direito à inocência. Em certos momentos, quando chora sem motivo, arrastada por imagens de felicidade que ela não pretende, com a qual não se consola, a mulher percebe quanto é irreal tudo – tanto o que prometem as mudanças, como a fortuna, como a glória. Mas há momentos escolhidos para comemorar isso, quero dizer, as coisas alcançadas e prometidas. Só não há momentos para consagrar “o mal que dentro na alma mora”. A saudade, digamos assim, traduz esse mal. Mas saudade de quê? Da pátria e da história? Uma e outra são mais símbolos do que realidades permanentes. Servem para equilibrarmos a nossa luta, a desistência e a perseverança, o que se arrisca e o que se evita, o pão e a fome, a virtude e a paixão, que é a virtude ameaçada e o conhecimento disso mesmo.
Camões é um símbolo e funciona como tal quando, num dia como o de hoje, ao pronunciarmos o seu nome. Não o poeta d’Os Lusíadas, não o artista dos sonetos; não misterioso soldado mutilado, não também o náufrago e o exilado. Não o amigo de aventureiros, de fidalgos avarentos ou generosos, de mulheres, belas, menos belas, maldosas, ternas, confidentes, traidoras, leais, indiferentes, mortas. É um símbolo. Não importa se nasceu no Porto, numa casa da antiga Rua de S.Miguel, perto da Porta do Olival; ou se nasceu noutro lugar qualquer e se foi filho de judia, criado de nobres, amante de princesas, vagabundo, folião, sem telha que o abrigasse e sem azeite para a candeia, sem gibão da Flandres e sem luva de Córdova. É um símbolo. Quando se fala de Camões, diz-se Portugal. E, de repente, cada um de nós vê um território banhado de mar agitado e frio, com manhãs verdes de nevoeiro e com campos onde os nomes das mais pequenas ervas nos fazem humedecer os olhos. Um dia eu disse a um russo, que conheci na Itália, que a Rússia era para mim um campo coberto de neve espessa e nele aquelas árvores de tronco manchado de branco a que chamam vidoeiros. E os olhos dele encheram-se de lágrimas. A Rússia brotara-lhe do coração inteira, só com lembrar o nome duma árvore conhecida. Penso em Ferreira de Castro, que foi grande visitante de todos os continentes, e lembro-me de ele me ter contado o seguinte: andara ele por muitas terras durante longos meses e começava a sentir a nostalgia que, mais cedo ou mais tarde, ataca o mais experimentado dos viajantes. Era pelo fim da tarde, estava perto da cidade de Dalath, na Índia, e fazia um calor abrasante. De repente, ao aproximar-se de Dalath, viu um pinheiro igual ao pinheiro de Portugal, e que se recortava no céu como uma sentinela protectora e vigilante. Isto bastou para que recobrasse forças e a sensação de desânimo o deixasse. Bastou o encontro com a árvore familiar da paisagem portuguesa, para que Ferreira de Castro se sentisse em casa. Assim, Dalath foi, a muitos quilómetros de distância, um canto da pátria, simbolizado por aquele pinheiro isolado no caminho.
Também Camões tem muitos destes momentos e nunca os deixa escapar. Depois de muito andar e provar de favores e desenganos do mundo, ele exclama: “Quem tão baixa tivesse a fantasia/que nunca em mores coisas se metesse/que em só seu gado à fonte fria/ e mungir-lhe do leite que bebesse!/ Veria erguer do sol a roxa face,/veria correr sempre a clara fonte,/sem imaginar a água donde nasce/ nem quem a luz oculta no horizonte./Tangendo a frauta donde o gado pace,/conheceria as ervas do alto monte”.
Será que as conhecia Camões, as ervas do monte? Talvez não. E os seus símbolos são assim mais pobres, e mais pobre fica quando recorda e não nomeia o serpão ou o rosmaninho, o alecrim, a segurelha, a arruda; e só o loureiro sabe que é a coroa dos poetas.
Conhece-se, no entanto, que Camões não viveu no campo, como outros viveram e disso tiraram os motivos dos seus versos. Nunca esclarece o nome das plantas e das árvores, senão as mais usadas como exemplo de poesia. Vê-se que não privou com os costumes simples, nem com a natureza; não saiu das bordas do Tejo senão para embarcar em aventura ou em desterro. Quando fala nos freixos verdes, já é grande saber de botânica. Como todos os palacianos, desde o escudeiro ao mestre de latim, não se aproxima demasiado da província, e perde assim a ocasião de ouvir respirar o pulmão da pátria. Mas o coração, em que remove os cuidados, como se fossem as pedras dum brejo; corta saudades como se fossem a flor do trevo; e se desfaz das tristezas, que são silvas e tojo bravo, trata-o Camões, ao coração, como ao mais belo horto. A sua quinta, a sua ramada, o seu pomar é o coração. Disso ele sabe tudo e dedica-lhe a alma escrita que são os versos, os pensamentos, a arte de rimar e de viver. Porque também nos que são desgraçados há arte de viver. Não só os que juntam riqueza e criam filhos têm essa arte. Os que pousam um momento o fardo da vida para dar ouvidos à memória, esses são parentes da alma escrita e nela se recolhem e protegem, ainda que nada escrevam e nada deixem em caderno ou livro para a posteridade.
Camões é a alma escrita dum povo inteiro. Não importa se fala de amores e de engenhocas coisas complicadas. Ele representa um momento da nossa História que se repete de tempos a tempos. Representa o desgosto severo do mundo ambicionado; das duras lutas, desejadas ou não. Essa disposição produz o estilo pastoril, o gosto de falar de mil maneiras delicadas do que até não se conhece: o campo de lentas estações visitado, os frutos e os pastores, o prado de flores brancas e vermelhas que eu diria serem a margaça e a papoula, em Maio, nas estevas. Porque nos deixa comovidos Camões, um erudito, separado dos simples por tantos costumes, até o da guerra? Era recebedor de impostos, ao que dizem, o que não tem nada de ofício poético. Porém, é o nosso ouvido aberto à alma escrita que dá aos poetas as imagens. “Enquanto os peixes húmidos tiverem/ as areosas covas deste rio,/ e, correndo, estas águas conhecerem/ Do lago mar o antigo senhorio:/ E enquanto estas ervinhas pasto derem/ às petulantes cabras, eu te fio/ Que, em virtudes dos versos que cataste,/ Sempre viva o pastor que tanto amaste”.
Quer dizer que não há vida sem aquele que a canta e dela faz memória.
Eu sempre amei os escritores sul-americanos. Não só Gallegos, que é venezuelano; mas também Donoso e Garcia Marquez e muitos outros. Admiro neles o espírito florido e anti-heróico, que se integra na natureza para despertar para o reino deste mundo. Camões fala dos deuses e das deusas que foram um dia companheiros dos homens e os serviam nas suas grandes desesperações. Os escritores de Sud-América têm como suporte da imaginação a obscura lenda e a realidade tão estranha quanto a lenda. Estão no princípio da tempestade e no eixo de forças desconhecidas. Não são símbolos, são pessoas.
Camões é um símbolo. Não pertence à casta dos autores que fazem o retrato dum acontecimento tal como foi vivido; não é um historiador, é um poeta. Um poeta habita na paixão e, como num verso diz, “deixa um certo temor à mortal gente”. Quem escreve uma história e retrata pessoas com movimento grande da inteligência, pode comover-nos, pode causar-nos admiração, pode, inclusivamente, levar-nos a querer imitá-lo. O poeta não. Ele deixa “um certo temor à mortal gente”, e esse temor é a alma que se sobressalta e que se dá a conhecer.
O dia de hoje não seria capaz de comemoração e de simpatia que dá sentido à comunidade dos portugueses, se nele não houvesse o sobressalto da alma. Interrogamo-nos, sentimos, até choramos um pouco. E porquê? Há sempre um momento em que se nos formula a experiência da separação como aquele que resume todos os problemas do mundo. Separação do ventre materno que é simbolizado pela terra-mãe; separação das coisas que primeiro vimos, ou ouvimos – um raio de sol, um som duma língua para sempre familiar. Mesmo quando passam séculos, não digo anos, sobre essa primeira experiência que se fez consciência dum povo, nós sentimos o sobressalto ao reconhecer alguma coisa numa linguagem que já nem sequer sabemos traduzir.
É como naquela história contada por um naturalista, uma história sobre as águias fabulosas mas reconhecidas no seu espaço histórico que construíam o ninho com pedras. Levadas para muito longe, renunciavam a esse costume, ao fim de muito tempo, e transformavam-se noutra espécie de águias. Mas, um dia, águias ainda por nascer eram desembarcadas num lugar distante da sua origem, um lugar onde não havia pedras; e elas, uma vez nascidas, continuaram a procurar as pedras para fazer o ninho, mesmo quando pedras não havia.
Assim vemos no interior do Brasil monumentos de granito, talha e esculturas de granito, torres e casas desse material construídas. Assombramo-nos das suas proporções e do trabalho que significou serem para ali transportadas. Uma a uma, no porão das caravelas, as pedras foram embarcadas; e depois descarregadas uma a uma, levadas rio acima nas jangadas, para servirem não só para fazer uma escada, ou um pátio, mas uma cidade inteira. Tal a força íntima das águias, que construíam o ninho com pedras.
Os portugueses são assim. Parecem muitas vezes pequenas aves que fracamente se adaptam e que trazem nas asas o tenro e calcário vestígio do ovo donde nasceram, a terra breve onde tiveram casa pobre, a capela onde rezaram, o terreiro onde jogaram a malha e onde fumaram o primeiro cigarro. Parecem pequenas aves e são águias. Deus sabe que o digo com convicção e paixão imensa de o fazer acreditar. Pois olhem para mim: que mais pequena ave represento, senão mulher, tímida e vulgar? Mas a formosura do mundo é meu tesouro, pois dela faço torres de pensamento. E a grandeza do mundo não me tolhe, porque maior que tudo é a realidade dum coração que ama e sente.
Deixo-vos, não me despeço. E comigo os poetas, que são a gente inesquecível, porque quando mortos mais nos acompanham. Camões vos dirá. Melhor do que eu, melhor do que ninguém, soube compor saudades e imaginações de penas e tristezas que são sobressaltos de alma, mais do que penas e tristezas concretas.
“Ó fugitivas ondas, esperai!/ Que pois me não levais em companhia?” – diz Camões. E porque amor e saudade são sustento mais do que são castigo, ele encontra neles bom abrigo no auge das suas horas infelizes. “Se quero em tanto mal desesperar-me,/ Não posso, porque Amor e Saudade/ Nem licença me dão para matar-me.”
Qual outra gente teve na Saudade aliança e no Amor auxílio? Mesmo osmais rudes conhecem esta verdade, que às próprias águias dá terna natureza e não natureza de rapina.
E agora que acaba o tempo deste meu discurso, digamos que haja pedras, e o mundo, a casa, a ponte – tão larga ponte como o mundo precisa – serão levantados e construídos.

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Caracas, 10 de Junho de 1984


Em Agustina Bessa-Luís, Contemplação Carinhosa da Angústia, Guimarães Editores, 2000

sexta-feira, 5 de junho de 2009

Werner Herzog, Encounters at the end of the world, 2007

quarta-feira, 3 de junho de 2009


Bill Viola, Five Angels for the millenium, 2001
Continuo a escrever, mas agora as palavras não precisam de ter um papel,
representam o invisível, o intransmissível, a intemporalidade, a totalidade.
Actuam para um público restrito: sinapses, leucócitos, eritrócitos, plaquetas.

terça-feira, 2 de junho de 2009



Coração alimentado. Coração iluminado.