terça-feira, 26 de outubro de 2010

O que me atrai na música: o silêncio ou um eco, talvez seja uma vibração, que soa dentro nós, imperceptível conscientemente. A energia vital e animal da natureza. A energia cósmica que nos alimenta a alma. A capacidade de despertar o desconhecido em nós e está para além da compreensão inteligente.
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...Tocar o íntimo do Cosmos.

segunda-feira, 25 de outubro de 2010

Messa in Si min BWV 232 J. S. Bach - Sanctus

Quem diria que esta missa seja um hino à sensualidade e ao erotismo! Sanctus-Amour!

quinta-feira, 21 de outubro de 2010

segunda-feira, 18 de outubro de 2010

Solamente
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ya comprendo la verdad
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estalla en mis deseos
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y mis desdichas
en mis desencuentros
en mis desequilibrios
en mis delirios
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ya comprendo la verdad
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ahora
a buscar la vida
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Alejandra Pizarnik

quinta-feira, 14 de outubro de 2010

Esta bela versão da música dos Joy Division aparece no fim do filme de Andrea Arnold, Red Road(2006), assim como a imagem acima do começo. Existe um desalento permanente em relação a tudo, mas também são as pequenas coisas comuns, engraçadas ou perigosas, onde procuramos alguma felicidade, sempre fugaz e sem alma. Os sentimentos são turvos e difusos. Um filme triste, e que nos toca como um focinho húmido de um cão a quem damos uma festa.
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Love will tears us apart (Ian Curtis)
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When routine bites hard,
And ambitions are low,
And resentment rides high,
But emotions won't grow,
And we're changing our ways,
Taking different roads.
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Then love, love will tear us apart again.
Love, love will tear us apart again.
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Why is the bedroom so cold?
You've turned away on your side.
Is my timing that flawed?
Our respect runs so dry.
Yet there's still this appeal
That we've kept through our lives.
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But love, love will tear us apart again.
Love, love will tear us apart again.
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You cry out in your sleep,
All my failings exposed.
And there's a taste in my mouth,
As desperation takes hold.
Just that something so good
Just can't function no more.
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But love, love will tear us apart again.
Love, love will tear us apart again.
Love, love will tear us apart again.
Love, love will tear us apart again.

quarta-feira, 13 de outubro de 2010

A escrita para piano de Brahms.

Somos levados nessa cadência,
semelhante ao colo materno;
um delicado toque das mãos:
de total aconchego tonal.

e os nossos olhos fixos,
nesse permanente flutuar,
nesse navegar musical.
Meu sorriso-farol.

Um respirar profundo,
que se prolonga
serenamente,
que perdura, infinito.

Algo permanece intocável:
Não o silêncio,
esse beija-nos docemente.
Talvez o mar, longínquo…
... uma melodia no olhar ...

De melancolia é feita a nossa felicidade:
de encontros dissonantes,
de sílabas e palavras,
que se acariciam, e esperam escutar:
o batimento, o pulsar.
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O ambiente poético do primeiro intermezzo op.119 é vago e melancólico. Numa carta de Maio de 1893, Brahms conta a Clara Schumann:

"Estou tentado a copiar uma pequena peça de piano para ti, para saber se estás de acordo com o que vou dizer. Está cheia de dissonancias! Poderiam ser corrigidas e melhor explicadas -mas talvez elas não sejam do teu gosto, por isso, desejava corrigi-las só um pouco, para se tornarem mais apetitozas e agradáveis ao teu gosto. A pequena peça é extremamente melancólica e deve ser tocada muito devagar, não que isso seja uma obrigação. Cada compasso e cada nota devem soar como "ritardando", como se quisessem exprimir intensamente melancolia em cada nota, e cada uma, em luxúria e grande prazer, para além dessas dissonancias todas! Meu Deus, esta descrição deverá certamente despertar o teu desejo!"

sexta-feira, 1 de outubro de 2010

Praia de Galapos, 1967
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Dia mundial da música. Dia pessoal da morte da musa. Musa mãe.
Estaria aqui ainda se a sua paixão descontrolada,
Não sei se pela vida, se pela sobrevivência dos sonhos,
Sonhos que permitissem o amor intenso sem dor, sem desilusão…

Se a sua solitária busca de serenidade,
não estivesse sempre colocada do outro lado do abismo.
Se a sua aparente extroversão não contivesse em si,
O charme cínico do abandono, da reclusão, da invisibilidade.

O coração comandava um querer desprovido de escuta, de luar,
De paisagens onde o corpo pudesse descansar de mais uma batalha,
Pela descoberta de si própria, no corpo, ou na alma de alguém.

Perdeu-se da vida,
Por querer demasiado,
algo desnecessário:

A vida com amor para si.
Como se estivéssemos sempre separados de tudo.
Como se pudéssemos viver protegidos do que nos dilacera por dentro:

O medo de não nos amarmos o suficiente.
De não aceitarmos a vida em toda a sua dimensão involuntária.
De não sermos completamente livres. De espelhos...
Do que o mundo e os outros pensam de nós.

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Como diz Krishnamurti:
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Concentrarmo-nos só em nós mesmos, ou observarmo-nos separadamente do mundo, leva-nos ao isolamento e a todas as formas de indiossincrasia, de neurose, de medos, etc. Mas se observarmos o mundo e acompanharmos o seu movimento, e nos deixarmos levar por esse movimento quando se dirige para o “interior”, então não há divisão entre nós e o mundo; não somos então um “indivíduo” oposto ao colectivo.
E deve existir este sentido de observação que simultaneamente, explora e observa, escuta e compreende. É neste sentido que estou a usar a palavra observar. O próprio acto de observar é um acto de exploração. Mas não podemos explorar se não somos livres. Portanto, para explorar, para observar, tem de haver lucidez; para explorar profundamente em nós mesmos, temos de o fazer sempre como se fosse pela primeira vez. Isto é, nessa exploração nunca “alcançamos um resultado”, nunca “subimos degraus” e nunca dizemos, “Agora sei!”. Não há degraus para subir. E se “subimos”, temos de descer imediatamente, para que a mente permaneça extremamente sensível para observar, para ver, para escutar.
E desse observar, desse escutar, desse ver, desse vigiar, nasce aquela extraordinária beleza da integridade. Não há outra virtude senão a que vem da compreensão de nós mesmos. Essa integridade é então cheia de vitalidade, vigorosa, activa – e não uma coisa morta, que se cultiva.”


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A PAIXÃO QUE TRANSFORMA
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Um dos maiores problemas com que se confronta cada um de nós é, parece-me, uma total falta de intensidade no sentir. Temos uma certa agitação emocional constante, relativamente às nossas actividades – o que se deve fazer ou o que não se deve fazer. Entusiasmamo-nos com coisas que, na realidade, não têm qualquer importância. Mas, segundo me parece, há falta de paixão – não por um determinado fim a atingir, não por algum objectivo a alcançar; refiro-me à capacidade de sentir com intensidade e força.
Geralmente, temos mentes muito superficiais – mentes limitadas, estreitas, presas a uma rotina fútil – que vão funcionando sem problemas, a não ser que aconteça um acidente qualquer; há então perturbação, mas depois dela, as nossas mentes voltam ao estado anterior, submetendo-se a uma nova rotina. A mente superficial não é capaz de encarar problemas. Tem problemas inumeráveis, todo o problema da existência. Mas invariavelmente traduz esses problemas extraordinariamente significativos, que são os problemas da vida, de acordo com o seu entendimento superficial, estreito, limitado, e procura desviar esta cautelosa corrente da vida para os seus acanhados, estreitos canais. E é com isso que estamos confrontados agora – e talvez sempre tenhamos estado. Mas muito mais agora, dado que o desafio é muito mais forte, e exige uma resposta igualmente intensa, igualmente enérgica, igualmente viva.
Esta paixão a que nos referimos não é coisa que se possa cultivar facilmente, tomando determinada droga, ficando hipnotizado por certos ideais, etc. Ela vem naturalmente – tem de vir. Estou a usar propositadamente a palavra paixão. Em geral, só empregamos esta palavra em relação ao sexo, ou quando se sofre intensamente, “apaixonadamente”, tentando-se então terminar esse sofrimento. Mas estou a usar a palavra paixão no sentido de um estado da mente, um estado de ser, um estado da nossa íntima essência – se tal coisa existe – que sente intensamente, que é altamente sensível – igualmente sensível à sujidade, à sordidez, à pobreza, às enormes fortunas e à corrupção, à beleza de uma árvore, de um pássaro, ao correr da água, ao lago que reflecte o céu crepuscular. É necessário sentir tudo isso fortemente, intensamente. Porque sem paixão a vida torna-se vazia, superficial e sem muito sentido. Se somos incapazes de ver a beleza de uma árvore e de sentir intensa afeição e interesse por ela, não estamos vivos.
Se não somos sensíveis a essa extraordinária beleza da vida, à beleza de um rosto, às linhas de um edifício, à forma de uma árvore, ao voo de um pássaro, à canção da manhã – se não estamos atentos a tudo isso, se não sentimos intensamente tudo isso, então obviamente, a vida, que é cooperação e relação, não tem nenhum sentido, estamos então a funcionar mecanicamente.
Esta paixão não é devoção, não é sentimentalismo, e nada tem em comum com sensualidade. Se a paixão tem algum motivo, ou se é inspirada por algum motivo, ou se é paixão por alguma coisa, torna-se prazer e dor. Por favor compreendamos bem isto. Se a paixão é estimulada sexualmente, ou tem uma causa, se tem um fim em vista, então, nessa chamada paixão há frustração, há dor, há a exigência da continuação do prazer e, portanto, o medo de não ter esse prazer, a preocupação de evitar a dor. Assim, a paixão com um motivo, ou a paixão que é estimulada, acaba invariavelmente em desespero, dor, frustração, ansiedade.
Estamos a referirmo-nos a uma paixão sem motivo.
Essa paixão existe. Não tem nenhuma relação com qualquer ganho ou perda pessoal, nem com as mesquinhas exigências de um determinado prazer, ou a preocupação de evitar a dor. Sem essa paixão não há possibilidade de se cooperar verdadeiramente, e cooperação é vida, que é relação. Tal cooperação não é a favor de uma ideia; coopera-se, não porque se é levado a isso pelo Estado, nem porque se quer ter uma recompensa ou evitar uma punição, nem porque se trabalha por um certo ideal económico, por uma utopia; coopera-se, mas não no sentido de trabalhar em comum por algum ideal – tudo isso, para nós, não leva à verdadeira cooperação.
Estou a referir-me ao espírito de cooperação. Se não cooperamos, não pode haver autêntico relacionamento. A vida exige que vós e eu cooperemos, façamos coisas juntos, trabalhemos juntos, sintamos juntos, vivamos juntos, compreendamos coisas juntos. E este “sentido de união” tem de ser ao mesmo tempo, tem de ter a mesma intensidade e estar ao mesmo nível, de outro modo não existe união. Se observarmos bem este mundo tão triste e destrutivo, vemos que a mente se está a tornar mecânica, rotineira e, no aspecto tecnológico, está a ser mantida num estreito canal. E portanto, o sentido de intensidade, a capacidade de sentir intensamente em relação a alguma coisa desaparece gradualmente. E se não somos capazes de sentir intensamente, é óbvio que a mente está insensibilizada, está entorpecida, está com medo, etc.
Assim, a paixão de que estamos a falar é um estado de ser. É realmente um estado sem mancha de sofrimento, sem autocompaixão, sem medo. E para o compreender, temos de compreender o desejo. Especialmente os que foram criados com ideias e sanções religiosas de uma dada sociedade, pensam que para “realizar” o que chamam Deus, a mente tem de estar sem desejo, é uma das primeiras e mais importantes condições. Conseguimos matar toda a paixão, excepto num único aspecto – sexualmente. E conseguimos dominar o desejo. A sociedade, a religião, a vida em comum – de tudo isso fizemos uma coisa sem vitalidade, porque temos a ideia de que um homem, um ser humano que sente de modo muito forte, muito próximo de um desejo intenso, não tem possibilidade de compreender aquilo a que se chama Deus.
Que mal há no desejo? Todos o temos, o sentimos, muito intensamente ou de maneira vaga, todos sentem desejo, de uma ou de outra espécie. Que mal há nele? Por que aceitamos tão facilmente subjugar, destruir, perverter, reprimir o desejo? Porque, evidentemente, o desejo traz conflito – o desejo de riqueza, posição, fama, etc. É só isso que procuramos essencialmente, profundamente – não ser perturbados. E quando nos vemos perturbados tentamos encontrar uma saída dessa situação e voltar a instalar-nos num estado reconfortante, onde nada nos venha perturbar.
Assim, o desejo é olhado por nós como uma perturbação. Reparemos nisto, por favor. Estamos a apontar factos psicológicos – não se trata de uma questão de aceitar ou não aceitar, de concordar ou discordar. São factos, e não opiniões minhas. O desejo torna-se assim uma coisa que é preciso controlar, reprimir, e portanto esforçamo-nos nesse sentido – custe o que custar, não vamos deixar-nos perturbar, e tudo o que possa perturbar deve ser reprimido, “sublimado” ou posto de lado.
Como dissemos outro dia e de novo dizemos em cada palestra, o que é importante não é ouvir as palavras, mas escutar realmente. Há grande beleza no escutar. Esta tarde, vimos da janela um pássaro, um alcião. Tinha um bico comprido e penas brilhantes, de cor intensamente azul. Estava a chamar, com seu canto, e outra ave da mesma espécie, outro alcião, respondia ao longe. Ficar apenas a escutá-lo – sem dizer, “É um alcião. Como é belo!”, ou “Como é feio!”, “Quem me dera que aquela espécie de corvo, parasse de grasnar!” – não sei se já alguma vez escutaram com esse estado de espírito. Escutar, simplesmente – quando não há nada a lucrar, quando não há qualquer objectivo utilitário, escutar, quando não se está a tentar alcançar, ou evitar, alguma coisa. Ou olhar o sol poente, aquele pequeno retalho de lua crescente – olhar, apenas, e sentir intensamente tudo isso.
Se escutarmos, de facto, nessa feliz disposição, tranquilamente, sem qualquer tensão, então o próprio acto de escutar é um verdadeiro milagre. Milagre, porque nessa acção, nesse momento, compreendemos tudo o que está contido no acto de escutar, de perceber, de ver; foram eliminadas todas as barreiras, e há espaço, entre nós e o mundo, e aquilo que estamos a escutar.
Precisamos de ter esse espaço para observar, ver escutar, quanto mais amplo, quanto mais profundo ele for, mais beleza e profundidade haverá. E algo de qualidade diferente surge quando há esse espaço entre nós e aquilo que estamos a escutar.
Não estou a ser poético, sentimental ou romântico. Mas, na realidade, não sabemos escutar, escutar simplesmente – escutar a nossa mulher, ou o nosso marido, que está a implicar, a questionar, a zangar-se ou a arreliar-nos. Quando apenas escutamos, compreendemos muito; e os céus abrem-se-nos largamente. Façamos isso, de quando em quando; não o tentemos apenas – façamo-lo, e descobriremos por nós mesmos.
Espero que estejais a escutar-me dessa maneira. Porque aquilo de que estamos a falar é algo que está além da mera palavra. A palavra não é a coisa. A palavra “paixão” não é paixão. Sentir aquilo que transcende a palavra, e deixar-se “captar” por isso, sem qualquer volição, sem directiva ou objectivo, escutar aquilo a que se chama desejo, escutar os nossos próprios desejos – e temos tantos, vagos ou intensos – então, quando os escutarmos, veremos o enorme mal que fazemos quando reprimimos o desejo, quando o distorcemos, quando queremos satisfazê-lo, quando queremos fazer alguma coisa em relação a ele, quando temos uma opinião a seu respeito.
A maior parte das pessoas perdeu o sentir apaixonado. Talvez o tenha tido outrora, na juventude – talvez apenas num vago murmúrio – tornar-se rico, alcançar a fama, e viver uma vida burguesa, respeitável…A sociedade – que é o que nós somos – reprime o sentir. E, assim, cada um é levado a ajustar-se àqueles que estão “mortos”, que são “respeitáveis”, que não têm sequer uma centelha de paixão; e passa então a fazer parte deles, perdendo assim o sentir apaixonado.
Para compreender todo este problema do desejo, temos de compreender o esforço. Porque, desde o momento em que vamos para a escola até morrermos, vivemos num constante esforço; a nossa mente, a nossa psique, é um campo de batalha. Nunca há um momento de quietude, de descompressão, de liberdade; estamos sempre a batalhar, a lutar, a esforçar-nos, a adquirir, a evitar, a acumular – é isto a nossa vida! Não estou a descrever uma coisa que não existe. A nossa vida é esforço constante. Não sei se já notastes que quando não fazemos qualquer esforço – o que não quer dizer estagnar ou dormir – quando todo o nosso ser está tranquilo, sem esforço, então vemos as coisas com muita clareza e penetração, com vitalidade, energia, paixão.
Fazemos esforço, porque somos impelidos por dois ou mais desejos contrários. Estamos sempre a opor um desejo a outro desejo, o desejo de ter e o desejo de não ter – se temos realmente este problema…(…)Quando nasce em nós qualquer desejo, temos também consciência do desejo de o reprimir – desejo este inculcado pela tradição, e que está profundamente enraizado nas pessoas. Mas quando um desejo nasce, temos de dar-lhe atenção, de o compreender, de escutar todos os indícios e sinais. Temos de o escutar – em vez de o negar, de o reprimir, de o pôr de lado ou de fugir-lhe. Não é possível fugir dos desejos.
Os “santos” e “yoguis” são impelidos, dilacerados pelo desejo. Quando se vestem como ascetas e se cobrem de cinzas, pensam que levam uma vida simples. Nada disso. Interiormente estão em ebulição, tendo, ou não, consciência disso – e não sabem o que hão-de fazer. E assim tornam a sua vida e a sua congregação de “santos” uma coisa feia, desumana, envenenada, cheia de ressentimentos. Porque quando não se compreende o desejo, cria-se inimizade e antagonismo. E por mais que se pregue a fraternidade isso não terá qualquer significado se não se compreender essa coisa tão simples chamada desejo. Se negarmos o desejo, se dizemos, por exemplo, “Já passei por uma provação com esse desejo e não devo tê-lo mais”, então estamos meramente a comparar o desejo presente com uma experiência que já tivemos e se tornou uma lembrança que irá controlar o desejo. E assim ficamos de novo enredados na batalha.
Mas, ao nascer cada desejo – mesmo que da coisa mais simples – temos de observá-lo, de vê-lo nascer, viver, florescer, ganhar vitalidade. E se não o reprimirmos, se não o compararmos, se ele não for dominado pela lembrança daquela passada experiência, e se pudermos observá-lo com aquele espaço de que falámos, veremos então que esse desejo se vai transformando num sentir intenso e sem objecto, se vai transformando apenas num sentir. Mas para quase todos nós, a vontade é que é importante, necessária, ou pelo menos pensamos que o é. A vontade é uma corda tecida de muitos desejos. E no momento em que existe vontade, vontade de levar até ao fim, ou vontade de negar, está-se num estado de resistência. E portanto regressa-se outra vez a um estado de conflito.
Estamos a falar de uma mente amadurecida, que compreende o conflito. A mente que compreende o conflito, que compreende toda esta questão do desejo, com todos os seus problemas, está amadurecida – e só essa mente pode compreender o que é real, o que é verdadeiro. Só ela, e não a mente que reprime o desejo, pode compreender a realidade. Porque, para compreender o que é verdadeiro, precisamos de paixão. A paixão é uma energia extraordinária que nos impele e que não é estimulada, nem movida pelo desejo. É uma chama, e sem ela nenhuma transformação podemos criar ao mundo, porque o mundo está cheio de problemas.
(…)Como podemos então encontrar a Realidade se não temos essa sensibilidade, esse sentir profundo?
Temos, assim, de compreender o desejo. E para compreender cada incitamento do desejo, temos de ter espaço, e de não tentar preencher esse espaço com os nossos pensamentos ou lembranças, ou com a preocupação de como satisfazer ou destruir esse desejo. Dessa compreensão nasce, então o amor. Geralmente, não temos amor, não sabemos o que ele significa. Conhecemos o prazer, conhecemos a dor. Conhecemos a inconsistência do prazer e, provavelmente, a continuidade da dor. E conhecemos o prazer sexual e também o prazer de alcançar fama, posição, prestígio, e o prazer de exercer um enorme domínio sobre o próprio corpo, como os ascetas, de manter um “record”… - conhecemos todas estas coisas. Falamos interminavelmente acerca do amor, mas não sabemos o que ele significa, porque não compreendemos o desejo, que é o começo do amor.
Sem amor não há verdadeira moralidade; o que há é ajustamento a um padrão, social ou supostamente religioso. Sem amor não há virtude, integridade. O amor é espontâneo, real, vivo. E a bondade não é uma coisa que se possa criar pelo exercício constante; é espontânea, como o amor. A virtude não é uma lembrança de acordo com a qual funcionamos como ser humano “virtuoso”. Se não temos amor, não somos bondosos. Podemos frequentar templos, levar uma vida familiar extremamente respeitável, seguir as regras da moral social, mas não somos bondosos. O nosso coração é estéril, vazio, está embotado, entorpecido, por não compreendermos o desejo. A vida, portanto, torna-se um constante campo de batalha e o esforço só termina com a morte. Só termina com a morte, porque só sabemos viver com esforço.
Assim, para compreender o desejo precisamos de compreender, de escutar, cada movimento da mente e do coração, cada alteração, cada mudança do pensamento e do sentir, precisamos de observar o desejo, de nos tornarmos sensíveis, despertos a ele. Não podemos tornar-nos sensíveis ao desejo se o condenarmos ou se o compararmos. Temos de estar muito atentos ao desejo, porque ele nos dará uma compreensão imensa. E dessa compreensão nasce a sensibilidade. Somos então sensíveis – e não só fisicamente sensíveis – à beleza, à sujidade, às estrelas, ao sorriso ou às lágrimas, e sensíveis também a todos os murmúrios, a todos os sussurros que nos povoam a mente, aos secretos medos e esperanças.
E deste escutar, desse observar, vem a paixão, esta paixão igual ao amor. Só neste estado se é capaz de cooperar. E, porque se é capaz de cooperar, também só neste estado se pode saber quando não se deve cooperar. Assim, com esta profunda compreensão e vigilância, a mente torna-se eficiente, lúcida, cheia de vitalidade e de vigor; e só uma mente assim pode viajar para muito longe.
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22 de Janeiro de 1964
Em, O despertar da sensibilidade, Krishnamurti, editorial estampa,1992