sexta-feira, 29 de maio de 2009

Um dia, já não sei em que livro, vinha citada a última página deste primeiro romance de Clarice Lispector. Aqui, no último excerto. Fiquei assim como que paralisado, que forma de escrita poética, indomável, em busca constante, humanamente animal, que força invisível. Li o livro de um fôlego, é assim que deverá ser lido, tal o abismo, a cadência, os gestos, a ansiedade.
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(…)...Descobri em cima da chuva um milagre – pensava Joana -, um milagre partido em estrelas grossas, sérias e brilhantes, como um aviso parado: como um farol. O que tentam dizer? Nelas pressinto o segredo, esse brilho é o mistério impassível que ouço fluir dentro de mim, chorar em notas largas, desesperadas e românticas. Meu Deus, pelo menos comunicai-me com elas, fazei realidade meu desejo de beijá-las. De sentir nos lábios a sua luz, senti-la fulgurar dentro do meu corpo, deixando-o faiscante e transparente, fresco e húmido como os minutos que antecedem a madrugada. Por que surgem em mim essas sedes estranhas? A chuva e as estrelas, essa mistura fria e densa me acordou, abriu as portas de meu bosque verde e sombrio, desse bosque com cheiro de abismo onde corre água. E uniu-o à noite. Aqui, junto à janela, o ar é mais calmo. Estrelas, estrelas, zero. A palavra estala entre meus dentes em estilhaços frágeis. Porque não vem a chuva dentro de mim, eu quero ser estrela. Purificai-me um pouco e terei a massa desses seres que se guardam atrás da chuva. Nesse momento minha inspiração dói em todo o meu corpo. Mais um instante e ela precisará ser mais do que uma inspiração. E em vez dessa felicidade asfixiante, como um excesso de ar, sentirei nítida a impotência de ter mais do que uma inspiração, de ultrapassá-la, de possuir a própria coisa – e ser realmente uma estrela.
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(…)…Não sinto loucura no desejo de morder estrelas, mas ainda existe a terra. E porque a primeira verdade está na terra e no corpo. Se o brilho das estrelas dói em mim, se é possível essa comunicação distante, é que alguma coisa quase semelhante a uma estrela tremula dentro de mim. Eis-me de volta ao corpo. Voltar ao meu corpo. Quando me surpreendo ao fundo do espelho assusto-me. Mal posso acreditar que tenho limites, que sou recortada e definida. Sinto-me espalhada no ar, pensando dentro das criaturas, vivendo nas coisas além de mim mesma. Quando me surpreendo ao espelho não me assusto porque me acho feia ou bonita. É que me descubro de outra qualidade. Depois de não me ver há muito quase esqueço que sou humana, esqueço meu passado e sou com a mesma libertação de fim e de consciência quanto uma coisa apenas viva. Também me surpreendo, os olhos abertos para o espelho pálido, de que haja tanta coisa em mim além do conhecido, tanta coisa sempre silenciosa. Por que calada? Essas curvas sob a blusa vivem impunemente? Por que caladas? Minha boca, meio infantil, tão certa de seu destino, continua igual a si mesma apesar de minha distracção total. Às vezes, à minha descoberta, segue-se o amor por mim mesma, um olhar constante ao espelho, um sorriso de compreensão para os que me fitam. Período de interrogação ao meu corpo, de gula, de sono, de amplos passeios ao ar livre. Até que uma frase, um olhar – como o espelho – relembram-me surpresa outros segredos, os que me tornam ilimitada. Fascinada mergulho o corpo no fundo do poço, calo todas as suas fontes e sonâmbula sigo outro caminho. – Analisar instante por instante, perceber o núcleo de cada coisa feita de tempo ou de espaço. Possuir cada momento, ligar a consciência a eles, como pequenos filamentos quase imperceptíveis mas fortes.
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(…)…E um dia virá, sim um dia virá em mim a capacidade tão vermelha e afirmativa quanto clara e suave, um dia o que eu fizer será cegamente seguramente inconsciente, pisando em mim, na minha verdade, tão integralmente lançada no que fizer que serei incapaz de falar, sobretudo um dia virá em que todo meu movimento será criação, nascimento, eu romperei todos os nãos que existem dentro de mim, provarei a mim mesma que nada há a temer, que tudo o que for será sempre onde haja uma mulher com meu princípio, erguerei dentro de mim o que sou um dia, a um gesto meu minhas vagas se levantarão poderosas, água pura submergindo a dúvida, a consciência, eu serei forte como a alma de um animal e quando eu falar serão palavras não pensadas e lentas, não levemente sentidas, não cheias de vontade de humanidade, não o passado corroendo o futuro! o que eu disser soará fatal e inteiro! não haverá nenhum espaço dentro de mim para eu saber que existe o tempo, os homens, as dimensões, não haverá nenhum espaço dentro de mim para notar sequer que estarei criando instante por instante, não instante por instante: sempre fundido, porque então viverei, só então viverei maior do que na infância, serei brutal e malfeita como uma pedra, serei leve e vaga como o que se sente e não se entende, me ultrapassarei em ondas, ah, Deus, e que tudo venha e caia sobre mim, até a incompreensão de mim mesma em certos momentos brancos porque basta me cumprir e então nada impedirá meu caminho até a morte-sem-medo, de qualquer luta ou descanso me levantarei forte e bela como um cavalo novo.
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Clarice Lispector, Perto do coração selvagem, 1944, Relógio d’água Editores 2000

quinta-feira, 28 de maio de 2009







segunda-feira, 25 de maio de 2009

Digamos que faço uma pausa. Uma pausa, para respirar fundo. Pausa no falar de amor. O amor também vive de pausas e silêncios. Na música as pausas também são importantes. Ocorreu-me então, falar do silêncio e do inexprimível. Na música o silêncio é uma outra voz do sentir, dentro da polifonia, pode ser algo tão intenso, que não podendo ser escrita por notas, nem captado pela audição, entra directamente no cérebro e no coração, transmitindo uma partitura singular, encriptada e secreta.
J.S.Bach mantém em quase toda a sua obra essa complexidade virtuosística no cruzamento de várias vozes, e mais do que a matemática precisa, sobressai o ser humano na sua diversidade do pensar, do sentir, do existir. Bach não tem medo da contradição, foge ao discurso autoritário, gosta de nos oferecer múltiplos caminhos de descoberta, para a vida, para o amor, com certeza aqui, transfigurados em música. A sua música busca a perfeição no infinito. Ora, sabemos que uma das coisas mais audazes para exprimir o infinito, é o silêncio. Porque o silêncio é algo que em nós, só pode ser captado pelo sentir do coração, qualquer coisa parecida com um encantamento: somos transportados para um lugar sem coordenadas, de emoções novas, um lugar onde a vida se encontra suspensa. Diz-se que o orgasmo é a pequena morte, esse silêncio, essa suspensão do real. O silêncio faz do acaso, um lugar para a alma. Deixamos de existir, pela intensidade do sentir.
Bach descobriu que o silêncio, o que queremos dizer a outro sem ser por palavras, que o sentimento amoroso, mais do que uma afirmação exagerada, histérica e doentia, característica do período romântico, é algo extremamente delicado e subtil, quase imperceptível mesmo a nós próprios. E esse silêncio é um sentimento que perdura em nós para além de qualquer realidade existente. Ele viverá, inalienável, dentro do nosso coração. Esse silêncio é a nota mágica da alma, aquela que toca bem lá no fundo.
Nas várias vozes da sua música, existem palavras que ficam por dizer, outras que resultam de encontros inesperados, outras que só fazem sentido em conjunto com outras. O individual é sempre resultado de uma envolvência, vivência, com o plural. Digamos que o romantismo em Bach aspira a muito mais que à paixão e à fusão. Ele assume que todos somos seres infinitos e em constante evolução, que a nossa complexidade de sentimentos não permite que nos afirmemos de uma maneira simplista e unívoca. Para os românticos, a perfeição no amor e na vida, seria a completa osmose entre espírito e natureza, os suas emoções extravazam descontroladas e caóticas. Bach sabe que isso equivale a uma fuga de si próprio, a uma recusa em assumir qualquer fraqueza, qualquer dissonância, qualquer silêncio. A tal perfeição seria uma espécie de travão à verdadeira descoberta do ser interior, feito a várias vozes, e que se encontra em contínua expansão e construção. O ser desiste de si, porque entretanto encontrou um salvador, alguém que o compreende. Atingiu a felicidade. Ora a Bach interessa-lhe a multiplicidade do ser, e para ele a felicidade é algo de impermanente, por isso não idealizável, algo que se constrói com o infinito.
Para o romântico encontrar a alma gémea é o que importa, mas Bach olha antes as estrelas, sente o seu impulso criador como uma dádiva, faz da sua música uma escuta da interioridade, procura unir os homens das mais diversas naturezas numa oração de louvor místico, e que essa força sagrada os faça expandir para além dos limites do conhecimento. Bach quer que os homens sejam dignos do amor de Deus.
Existe outro compositor que nos trouxe até nós das mais belas e intensas paisagens polifónicas da interioridade, Johannes Brahms. Os seus Intermezzi são das páginas mais singulares da literatura pianística da história da música ocidental, em que o silêncio tem uma presença nuclear na comunicação de emoções, como catalizador espiritual e emocional da interioridade. A interpretação de Glenn Gould é a todos os títulos notável, e não será coincidência que a seguir às Goldberg de 55 e 81, seja este disco um dos seus mais incontornáveis, juntamente com o de William Byrd e Orlando Gibbons, de igual filigrana polifónica. Glenn Gould consegue transmitir toda a complexidade e subtileza da música de Brahms, e não conheço outro pianista que se aproxime dessa mestria. Claro que existem vários compositores em que a obra de Bach é uma presença constante, como Shostacovich, Busoni, Reger, e outros, muitos, não tão camaleónicos, mas Brahms dá-se ao luxo de ser o próprio Bach na criação destas obras, não um imitador, ou um simplesmente inspirado por. Imagino como Bach ficaria maravilhado com estas peças.
Brahms precisa do silêncio para exprimir a tensão do indizível, a tensão de um coração que parou com a imensa alegria, a tensão da espera, na ausência do ente amado. Mais do que a complexidade e multiplicidade do ser, na polifonia de Bach, Brahms trouxe para música, através do silêncio, uma polifonia da ternura e do acto amoroso. As várias vozes continuam a existir como em Bach, mas Brahms descobriu como dar um beijo e um abraço prolongado em música, como transmitir um sentimento infinito e incondicional. Esses momentos prolongam-se em nós como um extâse. Não conheço nenhum compositor que o tenha conseguido, sem ser de uma maneira descritiva do sentir, como Chopin, Rachmaninoff, Schumann, por exemplo. Brahms deixa-nos suspensos, para que mergulhemos e interiorizemos o infinito, sintamos o nosso coração a bater, vivamos o amor na sua dimensão sagrada, em constante expansão e mutação. Como Bach, ele não pretende dotar a sua música de afirmações viris, prefere a delicadeza e a envolvência, não receia ouvir as várias vozes do seu sentir, do seu pensar. Elas estão lá sempre, a brilhar, como estrelas.

domingo, 24 de maio de 2009

sexta-feira, 22 de maio de 2009




Tenho que começar a pôr aqui uns desenhos meus, variações vangoguianas e animales.


quinta-feira, 21 de maio de 2009



ANJOS URBANOS de José Cabral
INAUGURAÇÃO dia 21 de Maio às 19 horas
Galeria P4 PhotographyRua dos Navegantes 16 r/c (Lapa/Estrela)1200-731 Lisboa
De 21 de Maio até 24 de Setembro (encerrado em Agosto)
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36 fotografias, 1979-2002."Anjos Urbanos são crianças de Moçambique. Os meus filhos e os filhos dos outros".
Nascido em 1952 em Lourenço Marques/Maputo, José Cabral é um dos grandes fotógrafos de Maputo. O primeiro a passar da tradição do fotojornalismo documental iniciada em Moçambique, ainda em tempos coloniais, por Ricardo Rangel e Kok Nam a uma fotografia mais pessoal e criativa, perseguida como um apaixonado desafio de vida. “Anjos Urbanos” é também uma antologia temática duma obra já longa, iniciada na década de 70, nas difíceis condições de construção do novo país.
A exposição é acompanhada pela edição de um catálogo, com três poemas inéditos de Luís Carlos Patraquim e um texto de Alexandre Pomar
Como toda a gente fala na crise, aqui vai um texto da Agustina Bessa-Luís desconfortávelmente actual. Para se ter uma percepção do contexto, optei por transcrevê-lo na íntegra.
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CONTEMPLAÇÃO CARINHOSA DA ANGÚSTIA (Roma 7.3.1975)
Comunicação no Congresso da Asssociação Internacional para a cultura ocidental sob o tema “cultura do pós-comunismo”

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Face à crise tão emocionalmente tratada e que toca hoje todos os campos, desde ciências humanas às ciências económicas, é aconselhável observar, com Aristófanes, que “os sábios aprendem muitas coisas com os seus inimigos”. Um certo humanismo que condensa múltiplos problemas no único problema, este formulado por uma nova e actuante consciência do universo, está em causa. Dispostos a combater o que nos parece inaceitável, não somos capazes de nos debruçar sobre o que nos desagrada e de aprender alguma coisa na provável confirmação que pode estar no ponto de vista que não adoptamos. Deponhamos a nossa cólera, pois a justiça depende da explicação em que cabe o que se aprova e o que se contesta.
A experiência interior, factor desacreditado, é ainda, na civilização ocidental, uma medida de revelação dos fenómenos que são, ao mesmo tempo, os factos que a razão examina e que o espírito resgata ao mistério. O mundo parece estar hoje centrado numa realidade intransponível de que fazem parte mesmo as ideologias consideradas revolucionárias. Em detrimento da vida, que é força de realizar, o mundo consome os seus conhecimentos e aquisições com estranha voracidade. A cultura, como corpo duma ideia, desmorona-se. A linguagem adormece na sua simplificação e volta ao pobre balbucio da infância. E quando se valoriza a consciência, ela parece agir mais como uma inibição, do que como o mecanismo da cultura possível.
Nenhuma forma de humanismo nasce duma prova. Dum golpe de vista, talvez. E sempre desliza como uma torrente de vida ao encontro das suas contradições. A cultura é o trajecto a percorrer entre o viver e o conhecer, entre a certeza e a interrogação que a segue de perto. E também as ficções são inefável presença duma cultura. Quando se diz que Deus é ficção do nosso espírito, temos que concluir que não é menos verdadeiro por isso.
Ambição metafísica, ambição económica, ambição de identidade e consequente ambição de solidão, são as exigências em que o homem forja o seu manifesto de direitos. Quanto mais inseguro, mais doutrinário. Contudo, a vida não é uma punição nem uma justificação: é uma acção momentânea de amor e desamor. A inteligência intuitiva e a inteligência urbana foram progressivamente atingindo o estado de escolaridade e de conceitualização, desenraizando-se do seu próprio espaço que é a relação com um destino. Tornaram-se em vibrações, ainda tutelares, mas às quais falta o sentimento da sua força. O espírito de vingança, que é o primeiro indício da decadência, tanto no ser humano como numa civilização, altera toda a expansão de energias. O amor, alado anelo da plenitude, transforma-se em patético efeito duma senilidade em defensiva. O desamor, que se abre no coração para preservar nele a semente da liberdade, torna-se em pressão de grupos ou em violência desajustada até do próprio egoísmo. Aparece o culto dos grandes dirigentes quando terminou a era da harmonia quotidiana.
Um novo humanismo não poderia nascer duma consciência de solidão e de angústia. Quando Jesus, prestes a expirar, interroga a impassibilidade do Pai, não cria ali a Igreja. Só a ressurreição a cria. De certo modo o homem tende para a sua infalibilidade, para o contrário dum devir. O drama do nosso tempo, ou um dos dramas, está em que a consciência não é uma causa, mas um meio de dinamização. Se o espírito decide antes de a ideia se produzir, a consciência reflecte o terreno em que as possibilidades se desenham, mas que nem sempre denuncia as realidades que pressionam um grupo ou um indivíduo. Portanto, a consciência é espelho de aspirações e necessidades inviáveis que são representadas pela direcção possível. Uma forma de expressão que seja fruto duma consciência garantida mas sem a cintilação duma intimidade espiritual, é uma lei, um dogma, uma moral, mas não uma cultura.
Dizemos com frequência que a nossa época sofre duma crise de confiança. Isto significa que as pessoas, à força de se registarem como indivíduos ao nível das suas insignificâncias e da sua natureza secundária, se tornaram incapazes de actuar arrojadamente à altura das circunstâncias. Procedem sem honra, porque não têm destino como virtude superior.
Um escritor alemão da última promoção literária escreveu isto: que hoje se vive sem honra. Quis dizer que se vive sem nenhum contacto com a interioridade dos factos e que eles não significam um pathos, mas uma consumação de atitudes tanto mais estéreis quanto obcecadas. Eles acontecem, são usados até ao limite, mas não estão de acordo com uma importância histórica. São a-históricos e servem apenas para moldar uma obra desnecessária e nula. Viver sem honra é assunto que não diz respeito aqui a certo espírito voltairiano adoptado pela viabilidade burguesa. É algo mais. É a miserabilidade de todo o conflito. É a anulação da experiência humana, pelo desfrute dum poder que não vai ao encontro da resistência das coisas, mas as liquida. Poder feito de siglas, de símbolos a que se liga um terror passivo, uma conformidade senil.
A criatura humana parte em estado de fracasso. L’envieux part perdant diz Sartre. A sua crise de confiança é de origem, a sua insatisfação supera a possibilidade de ser satisfeita. Não se trata propriamente de desconfiança, mas da natureza invejosa do homem do Ocidente, corrompido pela oportunidade dos seus objectivos, tanto como pela artificialidade das suas preocupações. Uma sociedade pode estar contaminada de inveja, tal como uma pessoa. Tal como aconteceu com Caim, todo um povo pode ser eletrizado pelo fracasso, e uma cultura minada por um desejo de usurpação, de faminta incursão noutras culturas. O invejoso não é habitado pelo desejo; é só movido por uma paixão: a paixão de obter um dom, um carisma, uma prova que não interessam à sua natureza. O drama consiste em que o invejoso não é recuperável. De tudo faz terra seca e salgada; ele não precisa de êxito, basta-lhe a sua insaciedade. Ele terá sempre ciúme de qualquer objectivação, e sempre haverá de trair toda a luta em que se empenhe. A inveja acorrenta-o ao fracasso, não é o espírito que o liga à necessidade. É um homem impuro, traduz uma cultura impura. Quando cobre a terra com a sua avidez, não quer livremente, somente se obstina.
A graça, o que mais se parece com a gratidão, tornou-se intolerável. Há uma agressividade oficial que a impede de sobreviver. O homem é treinado para actualizar a sua servidão, e não para assumir o seu sacrifício. Sacrifício maravilhoso, dádiva em que as margensdo tempo se confundem e em que a vida e a morte se tocam quase ternamente. Damos demasiado significado a nós próprios, mergulhamos cada vez mais num abismo confidencial. Instauramos a solidão, embora estejamos aturdidos pelo número. Medimos a extensão das catástrofes e aproveitamos nelas o paralelo com o nosso fracasso. Isto doura a solidão, prodigaliza à inveja consolos inestimáveis. A guerra nuclear substitui hoje a fornalha do inferno, ambas ideias apadrinhadas pelo inconsciente colectivo de natureza apocalíptica. A pequena história do quotidiano, isso que fazia o fermento da mais bela literatura, é tomado como ofício da pobreza envergonhada. Ser escritor tornou-se, como tudo, uma maneira de suportar a mediocridade. Primeiro, o poeta era sábio; depois as letras foram um mester, um talento aparentado com o funambulismo; e agora tornaram-se numa complicada tentativa para seduzir e influenciar. Não há hoje praticamente ninguém que não esteja possuído da intenção pueril de ganhar a simpatia dum público. É a atitude que tomam as crianças por traumatismo da sua debilidade. O escritor quer agradar, o político precisa de agradar, o metafísico aspira a agradar. Esta subserviência que se instala numa fraude de desafectação, de impune demagogia, acaba por institucionalizar-se na pura superficialidade. E marca a agonia duma cultura. A graça, contrário da exibição, alma sincera que persuade, desaparece. A civilização torna-se num método unicamente concebido para sobreviver.
Ao mesmo tempo que se nivela a inteligência - coisa que se não reparte senão fazendo - a produzir de maneira ilimitada -, faz-se da timidez uma esperança. A cultura tornou-se matreira e o espírito, em vez de vigilante, fez-se opinioso.
Eu sou uma escritora, testemunha sensível dos costumes, circunstâncias e discursos da minha época. A minha tarefa é compreendê-los, tentando arrancá-los à circularidade das verdades que a angústia e o tédio autorizam num tempo medido entre a vida e a morte. Para além da duração vegetativa e do caminho aberto às transformações que cada profissão admite, ha´alguma coisa mais. Há uma revelação reflexiva e uma refvelação também da nossa presença imaginária que inclui forças inumanas e poderes que ultrapassam o real. São estas, sobretudo, que actuam nos leitores, pois de certa maneira eles esperam um destino singular na vulnerabilidade da sua própria vida. Um escritor é uma espécie de xamã que sacraliza a relação do mundo de cada um com todos os mundos. Um pouco como o actor, e por isso é caso bastante corrente o homem de letras ter primeiramente conhecido a vocação do teatro. Ele deseja comover uma multidão, não tanto no intuito de se tranquilizar através da aceitação dumgrande número, mas sobretudo pela necessidade de se representar na alma colectiva. O homem parece comportar a trágica sensualidade de se perder no cosmos sem contudo se desfigurar. Ama-se no convencimento dos outros, e é para isso que às vezes, no seu regime humano, comete todos os crimes.
Ensinar as pessoas a ser livres implica amá-las de uma maneira perfeita. Mas a perfeição traz com ela uma estranha companheira, que é a humilhação da espécie humana. Assistimos hoje, talvez como nunca, à condenação formal de todo o elitismo, ao rebaixamento de valores e ao descrédito da cátedra. Isto acontece porque o número naturalmente descobre na excepção, na exigência, na superioridade criadora, uma ameaça ao desfrute das suas tendências niveladas à altura do habitável e do sentido comum das coisas. Mas se a inteligência desobrigada não sofresse a pressão das ideias extraordinárias, o mundo recaía depressa na barbárie. E para que essa moção da vigilância não signifique uma violação dos direitos da mediania - a tão agradável mediania que situa o homem na dimensão atingível e digna de se viver a curto prazo -, é preciso que a cólera seja deposta.
Um novo humanismo então se esboça, um acontecimento frágil e incerto. Um delicado afecto envolve a massa de razão em que o mundo gira, e é por isso que ela não se estilhaça ao contacto com a irritável norma do convívio humano. Amor e desamor são simultâneos, não se excluem, não se destroem, não se isolam.
Deponhamos a nossa cólera. É esta uma atitude que não espera nada da mística, é apenas uma ausência de tentação. É um efeito da interioridade que se adquire vivendo o exterior da fábula humana. O exterior das coisas é o seu conflito. Quando seguimos o trajecto da interioridade, vai sendo suprimida a desordem e o medo, até se encontrar o rosto eterno que cada ser humano tem consigo. Amor e desamor se chama o caminho. Sem escolha, porque é indivisível. Rápidas como a lua numa noite de vento, passam no coração a vontade de ganhar e a obrigação de perder. Pois tudo se perde e ganha ao mesmo tempo e na mesma hora.
A linguagem do pensador, desprestigiada pela linguagem ritual do partido político ou da fracção religiosa, continua, no entanto, a ser tomada como residência do querer humano. Digamos que a constante alteração das condições de vida na terra levanta problemas novos e actividade nova do espírito. Isto contraria o regime das equipas sociais que só vagarosamente vão assimilando uma verdade; elas não podem, senão com o risco de se desagregarem, transpor as barreiras da inteligibilidade das ideias, antes de elas estarem capazes de actuar como sistemas. E quando actuam é com mais abundância de energias físicas, do que energias psíquicas.
Há uma medida de tempo a respeitar ou a iludir, entre o que se cria e o que se divulga. Entre o que é revelação e o que se faz programa. Mas a pessoa que pensa tem o dever de exigir do seu labor intelectual o máximo de isenção e até de prevaricação frente à verdade estabelecida. Aquele que calcula a administração dos grupos humanos tem que observar as suas necessidades sociais do momento, e por isso não confia nos valores da liberdade como tentativa e experiência intelectual.
A esquizofrenia dos grandes grupos, as suas neuroses específicas são o que conduz a História. Mas resta saber como são infectados esses grupos humanos, e se não é o indivíduo de certo modo imobilizado na sua obsessão profunda quem transmite o rastilho duma energia que, a ser violenta, pode subverter o mundo. Podemos supor, por exemplo, que um conjunto de homens, sem treino de qualquer exercício moral e possuindo um excedente de força física, se é submetido a uma inatividade prolongada, se vai deteriorando no sentido de se tornar psiquicamente muito vulnerável. E entre esses homens pode estar um outro cuja relação com a realidade é densa e cultivada por uma apaixonada experiência. Então desncadeiam-se efeitos como que mágicos e imprevisíveis.
A vida é sustentada por uma paixão que só muito raramente envolve o homem na sua totalidade. Em geral, essa paixão tutela as suas contradições, sugere-lhe a inclinação para amar e para agir, modela enfim uma alma indecisa e branda. Mas acontece às vezes que todo o ser é comprometido no sentido terrível de viver uma situação como se a força cega da matéria explodisse dentro do seu pequeno mundo. Tentemos imaginar o que essa energia despertada tem como poder. É um poder em que o bem e o mal se equilibram em difícil e rigorosa estabilidade, pelo próprio dinamismo da sua ambivalência. Porém, esta imunidade perder-se-ia ao actuar ampliando-se sobre um grupo humano.
O isolado, o que aventura a sua própria experiência, é marcado pela hostilidade da multidão. É certo. Às vezes a virtude fáustica que se desprende da sua alquimia é nefasta, e a consciência colectiva receia cair no seu círculo mágico. Todavia, um laço obscuro persiste entre o homem solitário e a massa que o expulsa. Contrataram entre si as suas forças, ainda que mutuamente se tenham por loucos, pois as suas ideias são parciais e como tal as devem preservar. Uma contemplação carinhosa da loucura sempre nos ensina a fraternidade, que é uma espécie de estrato comum em que convivem a candura provinciana e a intimidação da era planetária.
Quando o homem rezava, a forte demarcação traçada nos horizontes do tédio e do azar poupava-o a grandes percalços da sua viagem intelectual. Deu-se depois uma inflação da erótica em que tudo é vivido e comunicado. Os homens duvidam do mérito da sua cultura, as pessoas em geral não acreditam na sua participação nos grandes problemas. Os grandes problemas parecem-lhes ser culpabilidades úteis para uso dos líderes que infestam todos os terrenos da competição.
Na realidade, não adianta agora que o filósofo se distancie e tome a visão dos acontecimentos para os converter numa síntese hábil e irresponsável. As pessoas amam as suas loucuras por motivos mais sábios do que se julga. Consideremos que a inteligência tem muitas aptidões e até diversas culturas a instaurar; ou seja, tem a tendência a sistematizar uma ou outra espécie de eficácia. Em dado momento essa eficácia falha, e dizemos que está em risco uma civilização. Mas os ciclos da História são como a psique do indivíduo-oscilam entre a astenia e a ciclotimia.
O importante seria talvez que o homem, esmagado pela responsabilidade da sua humanidade, guardasse uma atitude inocente perante o tráfego da cultura. Se ele amar o que deseja saber, está capaz de ultrapassar aquilo de que desespera. E provavelmente actuará de maneira certa no mundo das probalidades. O que encoleriza as pessoas em geral – e mais ou menos todos se comportam com cólera ou com adiamento dessa cólera – é sentirem que são escusadas na construção da Pirâmides ou da Grande Muralha; ou então que, se são necessárias, isto não as pode iludir quanto à sua desapaixonante viabilidade.
Mais trágico do que os conflitos das doutrinas económicas ou o recenseamento na mediocridade, é a atitude da mulher, a sua emancipação ainda tão enigmática. Não há dúvida que a igualdade dos sexos destrói a erótica que envolve todo o comportamento humano, desde a procriação até ao orgulho próprio da condição dos seres em progresso. O próprio curso da vida interior, com todas as suas premissas e consequências, tem que ver com a relação homem-mulher. A famosa causa da emancipação feminina começou com o primeiro desenlace do seu estado maternal. Já ao converter-se em educadora, um fio histórico de persuasão que alcança toda a corrente da vida do homem foi truncado. Depois, a mecanização da maternidade e da própria função sexual acabou por rebaixar o sentimento trágico da vida.
Quando se fala em crise, quando se assiste à sua concreta evidência, não nos ocorre que a irreconciliável atitude homem-mulher pesa hoje mais nas grandes mudanças operadas, do que a falência das estruturas económicas e hierárquicas. Talvez porque a divulgação e a escolha dos problemas-guia partem ainda dos homens, tal assunto é fechado e não desfruta da intensidade comunicativa de outros assuntos. É porque há uma angústia indescritível, que se descreve tão insistentemente o comportamento das pessoas na sua natureza física. Esta, cientizada e elevada à categoria de obsessão protectora, não admite o azar.
O pauperismo do pacto homem-mulher está instalado, embora os convénios humanos se afirmem em todos os sectores da vida social. Uma inquietação, modulada pelas exigências do crescimento intelectual e pelo desenvolvimento da imagem técnica da vida, cria uma atitude de defesa que pode concluir-se em impulsos destruidores. A mulher, disponível para o saber da vida por razão da sua esterilidade controlada, transforma-se num objecto de ódio, pois escapa ao mundo formal e incorpora-se na consciência que pondera e vigia. Pela primeira vez na História das civilizações, ela foge ao princípio da ordenação; contudo, está ainda profundamente defendida do terror cósmico pela lei que nela perdura, o acto de dar à luz, ou seja, o acto de morrer através do que pode criar.
É impossível que uma cultura superior não venha a ter origem numa nova inteligência do sentimento da vida. Quando tudo parece medido e consumado, quando as causas e os efeitos estão determinados e, por assim dizer, vencidos, incorporados ao espaço, o drama do conhecimento avança num novo caminho. Homem e mulher, desarticulados do conceito que representavam, estão espiritualmente vivos e movidos a conceber o inconcebível. Não por acto de amor, mas acção para além do amor, eles admitem o inquietante. Desde o começo dos tempos, o terror ameaça e define o homem.. Eis agora que a única dimensão humana a ser vivida é a desdramatização do sentido oculto da existência. A pessoa, como Job na alternada esfera da felicidade e da desgraça, tem direito à inocência. A inocência é a descaracterização do imaginável. O homem tende a esta descaracterização que já foi manifesta noutras culturas e que atinge agora todas as dimensões do presente pessoal, incluindo a sua projecção no presente colectivo. Ocorre-me que o livro que me tornou conhecida se chamou A Sibila. E as sibilas, diferente do que se pode pensar, não prediziam o futuro. Com mais ou menos punição convocada nas palavras que se proferem em público, elas resolviam o caso do momento, denunciavam uma verdade capaz de agir no presente. O escritor, como os oráculos e as sibilas, não ordenam o mundo e talvez não tenham solicitude para ele. Há hoje demasiada solicitude para com tudo e preocupações titânicas. O ser humano não pode com o futuro, e, honestamente, tem que o confessar. É um fardo demasiado pesado para ele. Por isso tenta destruir a ordenação e, mesmo à custa do caos, obter o controlo do seu dia de criação, e usá-lo sem hipóteses, inocentemente.
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em Comtemplação Carinhosa da Angústia, Guimarães Editores, 2000

terça-feira, 19 de maio de 2009

Aos pensamentos, aos sentimentos tento chegar-lhes com a segurança e convicção de um trapezista. Por tentativas.
O apaixonado, extremamente inquieto, com o coração aos saltos, sem saber o que fazer, agarra no amor, e em desespero, leva-o, a toda a velocidade, até a um sítio que diz em letras grandes e luminosas, de um vermelho vivo: URGÊNCIA. Pelo caminho, atropelou várias vezes a realidade.

segunda-feira, 18 de maio de 2009

"But how can you live for just what you want?"
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"We are the choices that we have made, Robert."
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Um mandarim estava apaixonado por uma cortesã. “ Serei vossa, diz ela, quando tiverdes passado 100 noites à minha espera, sentado num tamborete, no meu jardim, debaixo da minha janela.” Mas, à nonagésima nona noite, o mandarim levantou-se, pôs o tamborete debaixo do braço e foi-se embora. Esta história do livro de Roland Barthes, Fragmentos de um discurso amoroso, Edições 70, incluída no capítulo da Espera, ficou-me na memória. Mais do que uma espera, o que é exigido é uma prova de amor. Mas seria necessária essa prova de amor? Se existe a dúvida da parte da cortesã, então ao mandarim não lhe resta outra alternativa que não a satisfazer, mas agora mais do que defender a sua honra, os seus sentimentos verdadeiros, ele tem que desfazer todas as dúvidas. Ou seja, a prova, para ele absurda, de amor, terá de ser a última. Até quando teria ele de se submeter a provas de amor? Ou seja, se é exigido, no amor, algo que deveria transparecer e ser claro para o outro sem a menor dúvida, uma demonstração racional, científica, exacta do amor que se sente, então, quem exige não ama verdadeiramente. O amor vive da recíprocidade, não se negoceia. Daí o mandarim se ter ido embora. Esta história fez me lembrar o filme Pontes de Madison County e aquele momento dentro do carro, em que Francesca agarra no manípulo da porta e pensa se vai ter com Robert, o que significava uma rotura definitiva com o seu marido, ou ficava. São segundos de uma tensão fascinante, em que todas as emoções estão concentradas, segundos para a decisão mais importante da sua vida: ficar com o marido e que a ama e ela também, ou ir com o amor da sua vida. Aqui ninguém exigiu nada de ninguém, daí existir o amor, a decisão é unicamente individual. Sim, o amor é sempre isso, ou tudo ou nada, mas também a luz da paz e do carinho que partilhamos sem nada exigir em troca.

domingo, 17 de maio de 2009

New Opera House, Oslo
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Deparo-me com este belo projecto do Atelier Norueguês Snoetta. Não é todos os dias que aparecem projectos destes. (http://www.snoarc.no/#/main/)
Ver também jornal Público P2 de 17.5.2009

sábado, 16 de maio de 2009


Ilha do Pico
Às vezes, muitas vezes, fico farto dos livros, da cultura, das palavras. Quero sentir a vida no seu estado mais puro, e é para aí que caminho. Há muito a aprender com o que já somos, com a natureza, com a nossa natureza. É preciso coragem para por vezes reconhecermos as nossas cobardias, a nossa conduta menos leal, a nossa incapacidade em nos revelarmos. O amor exige o despojamento total, a humildade mais sincera (ficamos nus de corpo e alma), não se pode transformar em algo dependente do querer, estático, adorável. O amor não se dá, nem se recebe, respira-se, bebe-se, alimenta-se, transforma-se, sonha-se. O amor não tem qualquer objectivo ou objecto, é um caminho, o caminho da Luz. A Luz é a nova consciência, o ser humano integral e cósmico.
A vida quotidiana é caracterizada pelo desapontamento. Temos sempre muitas coisas para fazer: algumas de que gostamos; outras, a grande maioria, que nos são pedidas. (…)A ordem das coisas não nos tem como centro, não faz de nós o seu princípio inspirador; é o resultado das pressões que sobre nós se exercem. Aquilo que desejamos verdadeiramente não o realizamos nunca e, a dada altura, acabamos por não saber tão pouco o que queremos. Na vida quotidiana o nosso desejo apresenta-se-nos sob forma de fantasias (“como seria belo se…”), mas sucede sempre qualquer coisa que no-lo impede. O nosso companheiro ou a nossa companheira tem sempre algo diferente para fazer, ou não sente vontade, ou não a tem quando nós a temos, ou vice-versa. Se dizemos que não, que tenha paciência, ofende-se, e a nós passa-nos a vontade, assim como lhe passa a ele. Tudo isto é o desapontamento, a impressão de que há algo de desejável, mas que nos escapa porque somos obrigados sempre a fazer algo diferente. Na vida quotidiana acabamos por ser absorvidos por este contínuo “fazer algo diferente e para alguém diferente”; a nossa vida reduz-se a isso. Nunca nos sentimos compreendidos até ao fundo, nunca nos é dada uma profunda satisfação, jamais os nossos desejos e os dos outros se encontram completamente. É um estado que parece estar sempre para acabar, que julgamos impossível que continue assim, de modo tão estúpido, rancoroso, mas pelo contrário, subsiste durante meses, durante anos; anos opacos, à espera de não se sabe bem do quê, de desapontamento contínuo; anos sem história, sem felicidade verdadeira, em que “vamos andando”.
A profunda atracção que o enamoramento suscita em cada um de nós é devida ao facto de introduzir nesta opacidade uma luz deslumbrante e um perigo total. O enamoramento liberta o nosso desejo, coloca-o no centro de todas as coisas: nós desejamos, queremos absolutamente algo para nós. Tudo o que fazemos pela pessoa amada não significa realizar algo diferente e para alguém diferente, é para nós, para sermos felizes, e toda a nossa vida é dirigida para uma meta cujo prémio é a felicidade. Os nossos desejos e os do amado encontram-se, o enamoramento transporta-nos a uma esfera de vida superior onde se obtém tudo ou se perde tudo. A vida quotidiana é caracterizada pela obrigação de fazer sempre algo diferente, pelo dever de escolher entre coisas que interessam a outros, opção entre um desapontamento maior e um mais leve; no enamoramento, estamos entre o tudo ou nada, é o como se todos os dias obtivéssemos quanto na vida quotidiana é impensável: um reino, o poder, a felicidade, a glória. Contudo, este reino pode ser sempre perdido numa única batalha. A polaridade da vida quotidiana é entre a tranquilidade e o desapontamento; a do enamoramento, entre o extâse e o tormento. A vida quotidiana é um eterno purgatório; no enamoramento há só ou paraíso ou inferno, ou somos salvos ou condenados.
(…)Por outro lado, no enamoramento – quando tudo em nós é paixão, felicidade, mas também tormento, espasmo, desejo – queremos prolongar o estado feliz, desejamos que pare, que se torne serenidade, tranquilidade, desejamos que não seja atraiçoado por tudo aquilo que o acompanha. Há pessoas que não suportam a tensão do enamoramento, quereriam antes refreá-la, torná-la quotidiana, doméstica, controlável, e eis que assim do enamoramento nasce o desejo de paz, de tranquilidade, de serenidade.
A verdade é que quem vive na vida quotidiana não pode alcançar esta intensidade espasmódica do desejo e da vontade que produz a felicidade. Para o fazer tem de romper com a vida quotidiana, atravessar o rio proibido da transgressão, e isto não é coisa que se possa decidir a bel-prazer. O enamoramento é um “evento” que se nos impõe, tal como quando estamos enamorados não podemos alcançar e ter o estado de tranquilidade serena. O nosso amor não está nas nossas mãos, transcende-nos, arrasta-nos e obriga-nos a mudar. Para conseguir transformar este sentimento em serenidade quotidiana é preciso destruí-la. E repito, muitas pessoas, homens e mulheres, não têm paz enquanto não transformarem o ser resplandecente do seu amor em algo de controlável, circunscrito, definido, enquanto não o transmudarem num animal doméstico. O preço, porém, é o fim do enamoramento e o desaparecimento do extãse, o que lhes fica é a banalidade quotidiana, a tranquila serenidade continuamente interrompida pelo aborrecimento, pelo rancor, pelo “desapontamento”.
No quotidiano deseja-se, pois, o extraordinário, no extraordinário o quotidiano; neste quer-se o extâse, no extraordinário a tranquilidade. Estes dois desejos, ambos irrealizáveis, somam-se para constituírem aquele “viveram felizes e contentes (para sempre)”, que substituiu, na nossa época, os mitos do elixir da eterna juventude e da pedra filosofal.
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Francesco Alberoni, Enamoramento e amor, Livraria Bertrand, 1983

quinta-feira, 14 de maio de 2009

A maioria das pessoas encara o problema do amor como sendo uma questão de se ser amado, e não de amar, da capacidade de amar. Daí que, para elas, o problema consista em como ser amado, como ser agradável. (…)Uma segunda premissa por trás da atitude que defende que não há nada a aprender sobre o amor é a suposição de que o problema do amor é o problema de um objecto, e não um problema de uma faculdade. As pessoas pensam que amar é simples, mas que encontrar o objecto de amor certo – ou ser amado pela pessoa certa – é o mais difícil. (...)ter consciência de que o amor é uma arte, tal como a vida é uma arte; se queremos aprender a amar temos de fazer o que faríamos se quiséssemos aprender qualquer outra arte, como a música, a pintura, a carpintaria, ou a arte da medicina e da engenharia.
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O amor só é possível se as duas pessoas comunicarem a partir do centro das suas existências, ou seja, se cada um viver centrado na sua existência. A realidade humana não existe senão nesta “experiência central”; é nela que está a vida, é nela que está a base do amor. O amor, vivido desta forma, é um desafio constante: não é um refúgio mas antes um movimento, um crescimento, um trabalho em conjunto. A questão de haver conflito ou harmonia, tristeza ou alegria, é irrelevante em relação ao facto fundamental de duas pessoas viverem a partir da essência das suas existências, estarem unidas consigo mesmas e uma com a outra, e não estarem alienadas de si mesmas. Há apenas uma prova da existência do amor: a profundidade da relação e a vivacidade e a força de cada pessoa – é este o fruto através do qual se reconhece o amor.
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Ter fé requer coragem, a capacidade de correr riscos e de aceitar a dor e a desilusão. Quem insiste na segurança e na cautela como condições primárias para viver, é incapaz de ter fé; quem se isola num sistema de defesa, na segurança da possessividade e da distância, transforma-se num prisioneiro. Amar e ser amado requer coragem, a coragem de acreditar em certos valores – e de arriscar e apostar tudo nesses valores.
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A prática da fé e da coragem começa com os pequenos pormenores da vida quotidiana. O primeiro passo consiste em reparar onde e quando se perde a fé em algo ou em alguém, examinar as justificações que encobrem esta perda de fé, reconhecer quando se age com cobardia e reconhecer as formas como justificamos essas cobardias. (…)Só assim poderemos reconhecer que embora tenhamos, a nível consciente, medo de não ser amados, aquilo de que temos realmente medo, embora inconscientemente, é de amar.
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Hoje em dia, a maior parte das pessoas vive numa situação paradoxal: quando estão acordadas estão meio a dormir, estão meio acordadas. Estar totalmente acordado é a condição necessária para não estar, nem ser, aborrecido - e esta é uma das condições básicas para se amar. Ser activo ao longo do dia, em pensamentos e em sentimentos, com todos os sentidos e evitar a preguiça interior, quer seja uma preguiça receptiva, egoísta ou simplesmente uma perda de tempo, são condições indispensáveis para a prática da arte de amar. É uma ilusão pensar que se pode ser produtivo na esfera do amor e improdutivo em todos os outros domínios.
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O amor é uma actividade e não um afecto passivo; é um “estar” e não um “tornar-se”.
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Eric Fromm, A Arte de Amar, Pergaminho 2002

quarta-feira, 13 de maio de 2009

Jardim da Estrela, 3 de Abril 2009
A vida é luz e sombra, natureza e humano, movimento e repouso, razão e coração...entretanto o nosso espírito tenta juntar os milhares de fragmentos, estilhaços, átomos, vibrações, estrelas, beijos, que emanam da nossa existência, a uma velocidade estonteante. A velocidade cinética do ser. O que somos? Será que muda assim tanto o que somos e deixamos de ser a cada momento? Somos infinitamente mais ricos e complexos do que alguma vez poderemos captar, sentir, compreender. Nada é estático, eterno, intransponível. A vida só tem sentido como uma revelação constante e renovada do que somos. O coração poderá ser, também, o fotógrafo da alma.
Quand on n'a que l'amour
A s'offrir en partage
Au jour du grand voyage
Qu'est notre grand amour .

Quand on n'a que l'amour
Mon amour toi et moi
Pour qu'éclatent de joie
Chaque heure et chaque jour .

Quand on n'a que l'amour
Pour vivre nos promesses
Sans nulle autre richesse
Que d'y croire toujours .

Quand on n'a que l'amour
Pour meubler de merveilles
Et couvrir de soleil
La laideur des faubourgs .

Quand on n'a que l'amour
Pour unique raison
Pour unique chanson
Et unique secours .

Quand on n'a que l'amour
Pour habiller matin
Pauvres et malandrins
De manteaux de velours .

Quand on n'a que l'amour
A offrir en prière
Pour les maux de la terre
En simple troubadour .

Quand on n'a que l'amour
A offrir à ceux-là
Dont l'unique combat
Est de chercher le jour .

Quand on n'a que l'amour
Pour tracer un chemin
Et forcer le destin
A chaque carrefour .

Quand on n'a que l'amour
Pour parler aux canons
Et rien qu'une chanson
Pour convaincre un tambour .

Alors sans avoir rien
Que la force d'aimer
Nous aurons dans nos mains
Amis le monde entier

Jacques Brel

domingo, 10 de maio de 2009


Frida Kahlo, Viva la Vida,1954


Este quadro de Frida Kalho sempre me impressionou. A sua beleza está muito para além da pintura em si. Viva la Vida! E no entanto, é o seu último quadro! Como é isto possível, e sabendo nós, a vida de sofrimento que ela passou, pelas dores atrozes, pela necessidade de permanecer imóvel na sua cama. Mesmo assim ela continuou a pintar, a escrever...mais importante que tudo: ela nunca parou de amar e de ser amada. Sempre lutou contra todas as adversidades. O seu coração era enorme, sumarento de vida como estas melancias. Viva la Vida diz-nos ela, à beira da morte. As melancias são corações, o vermelho o sangue, a forma, a da terra, do mundo. Ninguém pode apagar aquilo que gravamos no nosso coração, porque ele está feito para Amar a Vida. A Vida é Amor, o Amor é Vida.

Por isso podem me matar, mas não o amor que trago no coração, ele vai sobreviver.

sexta-feira, 8 de maio de 2009

Eu não devia falar disto aqui mas aqui vai. Por causa de uma mulher, fui ameaçado de morte pelo namorado marital. Eu mato-te seu...! foram as palavras. No desenvolvimento da situação, eis-me a ter que prometer que a vou esquecer, e que não vai acontecer nada entre nós. Dava jeito ter um GPS do amor para não andarmos por ruas perigosas, com delinquentes ou irmos parar a becos sem saída, e para encontrarmos o nosso príncipe encantado, ou princesa. Mas suspeito que esse GPS a ser inventado, levará uma empresa à falência, pelo número de reclamações acumuladas, devido a defeitos de fabrico, e às desilusões causadas pelas garantias do produto. Ideal seria um GPS para a vida, diriam uns. Mas isto é tudo um absurdo, porque aí teríamos que ter um GPS para o espermatozóide, e não estou a ver os outros espermatozóides a aceitarem que um deles tivesse GPS e os outros não. Se todos tivessem GPS era a mesma coisa que ninguém ter, a confusão era a mesma. Isto tudo para dizer, que não há lei, vacina, garantia, perfeição, timing para o amor! Mas será que as pessoas não conseguem perceber isto! Se é uma flecha, se é um relâmpago, se é uma bomba, não telefonam antes a dizer o lugar e a hora. O amor é coisa de terroristas sem piedade, em que o cenário da mais insuportável violência não os demove, além de serem extremamente profissionais. Penso que cúpido foi o primeiro terrorista da história! E ele que tem um ar tão patusco e divertido. Se existe o crime perfeito, é no amor. Digam-me lá se já prenderam algum culpado! Não prenderam por uma razão muito simples: o culpado está no corpo humano! Mas qual artéria, qual órgão, qual neurónio? Não dá para saber, todos têm álibis perfeitos! Tínhamos que prender o corpo humano no seu todo, tínhamos que acusar todos os seres humanos! Voltamos a cair no absurdo! Digam se isto não dá vontade de rir! Transformar o amor num brinquedo que se desmonta à descoberta de como funciona, transformar esse brinquedo num comando da televisão com não sei quantos canais, tentando quebrar o tédio, ligar e desligar o brinquedo quando nos apraz! Não brinquemos ao amor, apesar de ele ter muitas funções hilariantes. Exigem do amor algo que não está na sua natureza: ser obediente, ser propriedade de alguém. O amor é Luz, só existe em plena liberdade e naturalidade. O que fazer? Existem muitas coisas dentro de nós, sem que tenhamos controlo sobre elas, e ainda por cima são elas o fio condutor da nossa vida; a única coisa a fazer é tornarmo-nos aptos em as desvendar, mas outras incompreensíveis surgirão. A vida regenera-se, o amor também, além do seu poder curativo e fracturante. Se nos tentarem enfiar um GPS no crâneo, a golpes de catanada ou com um tiro certeiro, só nos resta a esperança de nos surgir um sorriso nos lábios, por mais este absurdo desenrolar dos acontecimentos.

quinta-feira, 7 de maio de 2009

O meu Pai faz hoje 75 anos. Tenho pena não ter estado mais próximo dele neste últimos, digamos, 30 anos. Admiro imenso a sua sensibilidade, que esconde muitas vezes por detrás da sua arguta inteligência. Ele é extremamente ponderado e justo, procura ir ao fundo das questões, tenta que as acções dos seus filhos sejam o mais lúcidas e claras possíveis. Às vezes exige de nós, e dele, o ideal, pela sua natureza perfeccionista, mas como se sabe, o ideal depende de muitos factores. Isso por vezes tornou a nossa relação um pouco tensa, e para mim uma frustação de não conseguir chegar aos patamares pretendidos por ele. Mas cada vez mais ouço os seus conselhos de uma forma construtiva, e vou tentando melhorar o que pode ser melhorado. Ele acha que eu continuo a não ouvi-lo, eu como pai também tenho dificuldade em saber o que chega e de que forma à minha filha, mas temos que ter uma certa serenidade. Serenidade, deve ser o que se aspira a ter com a idade, consciência do que somos e para o que somos. Eu sinto orgulho no Pai que tenho, por isso ele devia descontrair mais, saborear as coisas boas que ele conseguiu por mérito, empenho ou simples devaneio. A vida é festa, e Luz! Bem hajas!

terça-feira, 5 de maio de 2009

O amor é um sentimento? Eu creio que não. O amor é um extâse. Até mesmo Deus, para poder amar o mundo profundamente, mesmo a sua parte inacabada, como um deus artista, terá de estar permanentemente em extâse.

Robert Musil, L'Homme sans qualités Tome 2, pág 647, tradução Philippe Jaccottet, Éditions Du Seuil

segunda-feira, 4 de maio de 2009

Quando somos tocados por uma súbita tristeza e uma súbita alegria simultâneas, não conseguimos exprimir por palavras o nosso sentir. Ficamos meios parados, absortos do nosso sentir, até que algo seja filtrado e se torne visível. Alguém que de repente queremos que faça parte da nossa vida, que tocou a nossa alma, e bateu levemente as suas asas, trazendo a Luz. Por esse alguém, temos de que abdicar de sentir outros, que nos amam. Não que o Amor seja um canal único que saia de nós, não o poderá ser se o queremos sentir na sua dimensão imensa. Viver o Amor com alguém pressupõe que se percorra em conjunto um caminho iniciático. A gnose só pode ser entendida depois da abolição do eu, depois de nos libertarmos de qualquer desejo em possuir seja o que for em nós, mesmo o amor do outro, e aí iniciarmos um verdadeiro conhecimento do que somos. Para saber o que somos temos que esquecer quem somos. Aí o amor é uma Luz intensa que nos ajuda nessa transcendência. O amor devolve-nos o ser cósmico, o pulsar do mundo. Nós não amamos uma pessoa, no amor buscamos beijar as estrelas com essa pessoa, sentir a órbita dos planetas, a primavera a subir no caule das flores, a água que nos envolve no ventre materno. O amor é um processo xamânico.

domingo, 3 de maio de 2009

Morre lentamente quem se transforma em escravo do hábito, repetindo todos os dias os mesmos trajetos,
quem não muda de marca, não se arrisca a vestir uma nova cor ou não conversa com quem não conhece.
Morre lentamente quem faz da televisão o seu guru.
Morre lentamente quem evita uma paixão,
quem prefere o preto no branco e os pingos sobre os "is"
em detrimento de um redemoinho de emoções,
justamente as que resgatam o brilho dos olhos,
sorrisos dos bocejos, corações aos tropeços e sentimentos.
Morre lentamente quem não vira a mesa quando está infeliz com o seu trabalho,
quem não arrisca o certo pelo incerto para ir atrás de um sonho,
quem não se permite, pelo menos uma vez na vida, a fugir de conselhos sensatos.
Morre lentamente quem não viaja, quem não lê, quem não ouve música,
quem não encontra graça em si mesmo.
Morre lentamente quem destrói o seu amor-próprio,
quem não se deixa ajudar.
Morre lentamente, quem passa os dias queixando-se da sua má sorte ou da chuva incessante.
Morre lentamente, quem abandona um projeto antes de iniciá-lo,
não pergunta sobre um assunto que desconhece
ou não responde quando lhe indagam sobre algo que sabe.

Evitemos a morte em doses suaves,
recordando sempre que estar vivo exige um esforço muito maior que o simples facto de respirar.
Somente a perseverança fará com que conquistemos um estágio esplêndido de felicidade.

Pablo Neruda

sexta-feira, 1 de maio de 2009

galaxy M87 (NASA/ESA Hubble Space Telescope image)

Com os teus olhos eu vou aqui. Agora sei que há vida extraterrestre.


fonte:pvastro0612.blogspot.com/2007/04/galaxies.html