segunda-feira, 25 de maio de 2009

Digamos que faço uma pausa. Uma pausa, para respirar fundo. Pausa no falar de amor. O amor também vive de pausas e silêncios. Na música as pausas também são importantes. Ocorreu-me então, falar do silêncio e do inexprimível. Na música o silêncio é uma outra voz do sentir, dentro da polifonia, pode ser algo tão intenso, que não podendo ser escrita por notas, nem captado pela audição, entra directamente no cérebro e no coração, transmitindo uma partitura singular, encriptada e secreta.
J.S.Bach mantém em quase toda a sua obra essa complexidade virtuosística no cruzamento de várias vozes, e mais do que a matemática precisa, sobressai o ser humano na sua diversidade do pensar, do sentir, do existir. Bach não tem medo da contradição, foge ao discurso autoritário, gosta de nos oferecer múltiplos caminhos de descoberta, para a vida, para o amor, com certeza aqui, transfigurados em música. A sua música busca a perfeição no infinito. Ora, sabemos que uma das coisas mais audazes para exprimir o infinito, é o silêncio. Porque o silêncio é algo que em nós, só pode ser captado pelo sentir do coração, qualquer coisa parecida com um encantamento: somos transportados para um lugar sem coordenadas, de emoções novas, um lugar onde a vida se encontra suspensa. Diz-se que o orgasmo é a pequena morte, esse silêncio, essa suspensão do real. O silêncio faz do acaso, um lugar para a alma. Deixamos de existir, pela intensidade do sentir.
Bach descobriu que o silêncio, o que queremos dizer a outro sem ser por palavras, que o sentimento amoroso, mais do que uma afirmação exagerada, histérica e doentia, característica do período romântico, é algo extremamente delicado e subtil, quase imperceptível mesmo a nós próprios. E esse silêncio é um sentimento que perdura em nós para além de qualquer realidade existente. Ele viverá, inalienável, dentro do nosso coração. Esse silêncio é a nota mágica da alma, aquela que toca bem lá no fundo.
Nas várias vozes da sua música, existem palavras que ficam por dizer, outras que resultam de encontros inesperados, outras que só fazem sentido em conjunto com outras. O individual é sempre resultado de uma envolvência, vivência, com o plural. Digamos que o romantismo em Bach aspira a muito mais que à paixão e à fusão. Ele assume que todos somos seres infinitos e em constante evolução, que a nossa complexidade de sentimentos não permite que nos afirmemos de uma maneira simplista e unívoca. Para os românticos, a perfeição no amor e na vida, seria a completa osmose entre espírito e natureza, os suas emoções extravazam descontroladas e caóticas. Bach sabe que isso equivale a uma fuga de si próprio, a uma recusa em assumir qualquer fraqueza, qualquer dissonância, qualquer silêncio. A tal perfeição seria uma espécie de travão à verdadeira descoberta do ser interior, feito a várias vozes, e que se encontra em contínua expansão e construção. O ser desiste de si, porque entretanto encontrou um salvador, alguém que o compreende. Atingiu a felicidade. Ora a Bach interessa-lhe a multiplicidade do ser, e para ele a felicidade é algo de impermanente, por isso não idealizável, algo que se constrói com o infinito.
Para o romântico encontrar a alma gémea é o que importa, mas Bach olha antes as estrelas, sente o seu impulso criador como uma dádiva, faz da sua música uma escuta da interioridade, procura unir os homens das mais diversas naturezas numa oração de louvor místico, e que essa força sagrada os faça expandir para além dos limites do conhecimento. Bach quer que os homens sejam dignos do amor de Deus.
Existe outro compositor que nos trouxe até nós das mais belas e intensas paisagens polifónicas da interioridade, Johannes Brahms. Os seus Intermezzi são das páginas mais singulares da literatura pianística da história da música ocidental, em que o silêncio tem uma presença nuclear na comunicação de emoções, como catalizador espiritual e emocional da interioridade. A interpretação de Glenn Gould é a todos os títulos notável, e não será coincidência que a seguir às Goldberg de 55 e 81, seja este disco um dos seus mais incontornáveis, juntamente com o de William Byrd e Orlando Gibbons, de igual filigrana polifónica. Glenn Gould consegue transmitir toda a complexidade e subtileza da música de Brahms, e não conheço outro pianista que se aproxime dessa mestria. Claro que existem vários compositores em que a obra de Bach é uma presença constante, como Shostacovich, Busoni, Reger, e outros, muitos, não tão camaleónicos, mas Brahms dá-se ao luxo de ser o próprio Bach na criação destas obras, não um imitador, ou um simplesmente inspirado por. Imagino como Bach ficaria maravilhado com estas peças.
Brahms precisa do silêncio para exprimir a tensão do indizível, a tensão de um coração que parou com a imensa alegria, a tensão da espera, na ausência do ente amado. Mais do que a complexidade e multiplicidade do ser, na polifonia de Bach, Brahms trouxe para música, através do silêncio, uma polifonia da ternura e do acto amoroso. As várias vozes continuam a existir como em Bach, mas Brahms descobriu como dar um beijo e um abraço prolongado em música, como transmitir um sentimento infinito e incondicional. Esses momentos prolongam-se em nós como um extâse. Não conheço nenhum compositor que o tenha conseguido, sem ser de uma maneira descritiva do sentir, como Chopin, Rachmaninoff, Schumann, por exemplo. Brahms deixa-nos suspensos, para que mergulhemos e interiorizemos o infinito, sintamos o nosso coração a bater, vivamos o amor na sua dimensão sagrada, em constante expansão e mutação. Como Bach, ele não pretende dotar a sua música de afirmações viris, prefere a delicadeza e a envolvência, não receia ouvir as várias vozes do seu sentir, do seu pensar. Elas estão lá sempre, a brilhar, como estrelas.

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