sábado, 16 de maio de 2009

A vida quotidiana é caracterizada pelo desapontamento. Temos sempre muitas coisas para fazer: algumas de que gostamos; outras, a grande maioria, que nos são pedidas. (…)A ordem das coisas não nos tem como centro, não faz de nós o seu princípio inspirador; é o resultado das pressões que sobre nós se exercem. Aquilo que desejamos verdadeiramente não o realizamos nunca e, a dada altura, acabamos por não saber tão pouco o que queremos. Na vida quotidiana o nosso desejo apresenta-se-nos sob forma de fantasias (“como seria belo se…”), mas sucede sempre qualquer coisa que no-lo impede. O nosso companheiro ou a nossa companheira tem sempre algo diferente para fazer, ou não sente vontade, ou não a tem quando nós a temos, ou vice-versa. Se dizemos que não, que tenha paciência, ofende-se, e a nós passa-nos a vontade, assim como lhe passa a ele. Tudo isto é o desapontamento, a impressão de que há algo de desejável, mas que nos escapa porque somos obrigados sempre a fazer algo diferente. Na vida quotidiana acabamos por ser absorvidos por este contínuo “fazer algo diferente e para alguém diferente”; a nossa vida reduz-se a isso. Nunca nos sentimos compreendidos até ao fundo, nunca nos é dada uma profunda satisfação, jamais os nossos desejos e os dos outros se encontram completamente. É um estado que parece estar sempre para acabar, que julgamos impossível que continue assim, de modo tão estúpido, rancoroso, mas pelo contrário, subsiste durante meses, durante anos; anos opacos, à espera de não se sabe bem do quê, de desapontamento contínuo; anos sem história, sem felicidade verdadeira, em que “vamos andando”.
A profunda atracção que o enamoramento suscita em cada um de nós é devida ao facto de introduzir nesta opacidade uma luz deslumbrante e um perigo total. O enamoramento liberta o nosso desejo, coloca-o no centro de todas as coisas: nós desejamos, queremos absolutamente algo para nós. Tudo o que fazemos pela pessoa amada não significa realizar algo diferente e para alguém diferente, é para nós, para sermos felizes, e toda a nossa vida é dirigida para uma meta cujo prémio é a felicidade. Os nossos desejos e os do amado encontram-se, o enamoramento transporta-nos a uma esfera de vida superior onde se obtém tudo ou se perde tudo. A vida quotidiana é caracterizada pela obrigação de fazer sempre algo diferente, pelo dever de escolher entre coisas que interessam a outros, opção entre um desapontamento maior e um mais leve; no enamoramento, estamos entre o tudo ou nada, é o como se todos os dias obtivéssemos quanto na vida quotidiana é impensável: um reino, o poder, a felicidade, a glória. Contudo, este reino pode ser sempre perdido numa única batalha. A polaridade da vida quotidiana é entre a tranquilidade e o desapontamento; a do enamoramento, entre o extâse e o tormento. A vida quotidiana é um eterno purgatório; no enamoramento há só ou paraíso ou inferno, ou somos salvos ou condenados.
(…)Por outro lado, no enamoramento – quando tudo em nós é paixão, felicidade, mas também tormento, espasmo, desejo – queremos prolongar o estado feliz, desejamos que pare, que se torne serenidade, tranquilidade, desejamos que não seja atraiçoado por tudo aquilo que o acompanha. Há pessoas que não suportam a tensão do enamoramento, quereriam antes refreá-la, torná-la quotidiana, doméstica, controlável, e eis que assim do enamoramento nasce o desejo de paz, de tranquilidade, de serenidade.
A verdade é que quem vive na vida quotidiana não pode alcançar esta intensidade espasmódica do desejo e da vontade que produz a felicidade. Para o fazer tem de romper com a vida quotidiana, atravessar o rio proibido da transgressão, e isto não é coisa que se possa decidir a bel-prazer. O enamoramento é um “evento” que se nos impõe, tal como quando estamos enamorados não podemos alcançar e ter o estado de tranquilidade serena. O nosso amor não está nas nossas mãos, transcende-nos, arrasta-nos e obriga-nos a mudar. Para conseguir transformar este sentimento em serenidade quotidiana é preciso destruí-la. E repito, muitas pessoas, homens e mulheres, não têm paz enquanto não transformarem o ser resplandecente do seu amor em algo de controlável, circunscrito, definido, enquanto não o transmudarem num animal doméstico. O preço, porém, é o fim do enamoramento e o desaparecimento do extãse, o que lhes fica é a banalidade quotidiana, a tranquila serenidade continuamente interrompida pelo aborrecimento, pelo rancor, pelo “desapontamento”.
No quotidiano deseja-se, pois, o extraordinário, no extraordinário o quotidiano; neste quer-se o extâse, no extraordinário a tranquilidade. Estes dois desejos, ambos irrealizáveis, somam-se para constituírem aquele “viveram felizes e contentes (para sempre)”, que substituiu, na nossa época, os mitos do elixir da eterna juventude e da pedra filosofal.
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Francesco Alberoni, Enamoramento e amor, Livraria Bertrand, 1983

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