quinta-feira, 21 de maio de 2009

Como toda a gente fala na crise, aqui vai um texto da Agustina Bessa-Luís desconfortávelmente actual. Para se ter uma percepção do contexto, optei por transcrevê-lo na íntegra.
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CONTEMPLAÇÃO CARINHOSA DA ANGÚSTIA (Roma 7.3.1975)
Comunicação no Congresso da Asssociação Internacional para a cultura ocidental sob o tema “cultura do pós-comunismo”

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Face à crise tão emocionalmente tratada e que toca hoje todos os campos, desde ciências humanas às ciências económicas, é aconselhável observar, com Aristófanes, que “os sábios aprendem muitas coisas com os seus inimigos”. Um certo humanismo que condensa múltiplos problemas no único problema, este formulado por uma nova e actuante consciência do universo, está em causa. Dispostos a combater o que nos parece inaceitável, não somos capazes de nos debruçar sobre o que nos desagrada e de aprender alguma coisa na provável confirmação que pode estar no ponto de vista que não adoptamos. Deponhamos a nossa cólera, pois a justiça depende da explicação em que cabe o que se aprova e o que se contesta.
A experiência interior, factor desacreditado, é ainda, na civilização ocidental, uma medida de revelação dos fenómenos que são, ao mesmo tempo, os factos que a razão examina e que o espírito resgata ao mistério. O mundo parece estar hoje centrado numa realidade intransponível de que fazem parte mesmo as ideologias consideradas revolucionárias. Em detrimento da vida, que é força de realizar, o mundo consome os seus conhecimentos e aquisições com estranha voracidade. A cultura, como corpo duma ideia, desmorona-se. A linguagem adormece na sua simplificação e volta ao pobre balbucio da infância. E quando se valoriza a consciência, ela parece agir mais como uma inibição, do que como o mecanismo da cultura possível.
Nenhuma forma de humanismo nasce duma prova. Dum golpe de vista, talvez. E sempre desliza como uma torrente de vida ao encontro das suas contradições. A cultura é o trajecto a percorrer entre o viver e o conhecer, entre a certeza e a interrogação que a segue de perto. E também as ficções são inefável presença duma cultura. Quando se diz que Deus é ficção do nosso espírito, temos que concluir que não é menos verdadeiro por isso.
Ambição metafísica, ambição económica, ambição de identidade e consequente ambição de solidão, são as exigências em que o homem forja o seu manifesto de direitos. Quanto mais inseguro, mais doutrinário. Contudo, a vida não é uma punição nem uma justificação: é uma acção momentânea de amor e desamor. A inteligência intuitiva e a inteligência urbana foram progressivamente atingindo o estado de escolaridade e de conceitualização, desenraizando-se do seu próprio espaço que é a relação com um destino. Tornaram-se em vibrações, ainda tutelares, mas às quais falta o sentimento da sua força. O espírito de vingança, que é o primeiro indício da decadência, tanto no ser humano como numa civilização, altera toda a expansão de energias. O amor, alado anelo da plenitude, transforma-se em patético efeito duma senilidade em defensiva. O desamor, que se abre no coração para preservar nele a semente da liberdade, torna-se em pressão de grupos ou em violência desajustada até do próprio egoísmo. Aparece o culto dos grandes dirigentes quando terminou a era da harmonia quotidiana.
Um novo humanismo não poderia nascer duma consciência de solidão e de angústia. Quando Jesus, prestes a expirar, interroga a impassibilidade do Pai, não cria ali a Igreja. Só a ressurreição a cria. De certo modo o homem tende para a sua infalibilidade, para o contrário dum devir. O drama do nosso tempo, ou um dos dramas, está em que a consciência não é uma causa, mas um meio de dinamização. Se o espírito decide antes de a ideia se produzir, a consciência reflecte o terreno em que as possibilidades se desenham, mas que nem sempre denuncia as realidades que pressionam um grupo ou um indivíduo. Portanto, a consciência é espelho de aspirações e necessidades inviáveis que são representadas pela direcção possível. Uma forma de expressão que seja fruto duma consciência garantida mas sem a cintilação duma intimidade espiritual, é uma lei, um dogma, uma moral, mas não uma cultura.
Dizemos com frequência que a nossa época sofre duma crise de confiança. Isto significa que as pessoas, à força de se registarem como indivíduos ao nível das suas insignificâncias e da sua natureza secundária, se tornaram incapazes de actuar arrojadamente à altura das circunstâncias. Procedem sem honra, porque não têm destino como virtude superior.
Um escritor alemão da última promoção literária escreveu isto: que hoje se vive sem honra. Quis dizer que se vive sem nenhum contacto com a interioridade dos factos e que eles não significam um pathos, mas uma consumação de atitudes tanto mais estéreis quanto obcecadas. Eles acontecem, são usados até ao limite, mas não estão de acordo com uma importância histórica. São a-históricos e servem apenas para moldar uma obra desnecessária e nula. Viver sem honra é assunto que não diz respeito aqui a certo espírito voltairiano adoptado pela viabilidade burguesa. É algo mais. É a miserabilidade de todo o conflito. É a anulação da experiência humana, pelo desfrute dum poder que não vai ao encontro da resistência das coisas, mas as liquida. Poder feito de siglas, de símbolos a que se liga um terror passivo, uma conformidade senil.
A criatura humana parte em estado de fracasso. L’envieux part perdant diz Sartre. A sua crise de confiança é de origem, a sua insatisfação supera a possibilidade de ser satisfeita. Não se trata propriamente de desconfiança, mas da natureza invejosa do homem do Ocidente, corrompido pela oportunidade dos seus objectivos, tanto como pela artificialidade das suas preocupações. Uma sociedade pode estar contaminada de inveja, tal como uma pessoa. Tal como aconteceu com Caim, todo um povo pode ser eletrizado pelo fracasso, e uma cultura minada por um desejo de usurpação, de faminta incursão noutras culturas. O invejoso não é habitado pelo desejo; é só movido por uma paixão: a paixão de obter um dom, um carisma, uma prova que não interessam à sua natureza. O drama consiste em que o invejoso não é recuperável. De tudo faz terra seca e salgada; ele não precisa de êxito, basta-lhe a sua insaciedade. Ele terá sempre ciúme de qualquer objectivação, e sempre haverá de trair toda a luta em que se empenhe. A inveja acorrenta-o ao fracasso, não é o espírito que o liga à necessidade. É um homem impuro, traduz uma cultura impura. Quando cobre a terra com a sua avidez, não quer livremente, somente se obstina.
A graça, o que mais se parece com a gratidão, tornou-se intolerável. Há uma agressividade oficial que a impede de sobreviver. O homem é treinado para actualizar a sua servidão, e não para assumir o seu sacrifício. Sacrifício maravilhoso, dádiva em que as margensdo tempo se confundem e em que a vida e a morte se tocam quase ternamente. Damos demasiado significado a nós próprios, mergulhamos cada vez mais num abismo confidencial. Instauramos a solidão, embora estejamos aturdidos pelo número. Medimos a extensão das catástrofes e aproveitamos nelas o paralelo com o nosso fracasso. Isto doura a solidão, prodigaliza à inveja consolos inestimáveis. A guerra nuclear substitui hoje a fornalha do inferno, ambas ideias apadrinhadas pelo inconsciente colectivo de natureza apocalíptica. A pequena história do quotidiano, isso que fazia o fermento da mais bela literatura, é tomado como ofício da pobreza envergonhada. Ser escritor tornou-se, como tudo, uma maneira de suportar a mediocridade. Primeiro, o poeta era sábio; depois as letras foram um mester, um talento aparentado com o funambulismo; e agora tornaram-se numa complicada tentativa para seduzir e influenciar. Não há hoje praticamente ninguém que não esteja possuído da intenção pueril de ganhar a simpatia dum público. É a atitude que tomam as crianças por traumatismo da sua debilidade. O escritor quer agradar, o político precisa de agradar, o metafísico aspira a agradar. Esta subserviência que se instala numa fraude de desafectação, de impune demagogia, acaba por institucionalizar-se na pura superficialidade. E marca a agonia duma cultura. A graça, contrário da exibição, alma sincera que persuade, desaparece. A civilização torna-se num método unicamente concebido para sobreviver.
Ao mesmo tempo que se nivela a inteligência - coisa que se não reparte senão fazendo - a produzir de maneira ilimitada -, faz-se da timidez uma esperança. A cultura tornou-se matreira e o espírito, em vez de vigilante, fez-se opinioso.
Eu sou uma escritora, testemunha sensível dos costumes, circunstâncias e discursos da minha época. A minha tarefa é compreendê-los, tentando arrancá-los à circularidade das verdades que a angústia e o tédio autorizam num tempo medido entre a vida e a morte. Para além da duração vegetativa e do caminho aberto às transformações que cada profissão admite, ha´alguma coisa mais. Há uma revelação reflexiva e uma refvelação também da nossa presença imaginária que inclui forças inumanas e poderes que ultrapassam o real. São estas, sobretudo, que actuam nos leitores, pois de certa maneira eles esperam um destino singular na vulnerabilidade da sua própria vida. Um escritor é uma espécie de xamã que sacraliza a relação do mundo de cada um com todos os mundos. Um pouco como o actor, e por isso é caso bastante corrente o homem de letras ter primeiramente conhecido a vocação do teatro. Ele deseja comover uma multidão, não tanto no intuito de se tranquilizar através da aceitação dumgrande número, mas sobretudo pela necessidade de se representar na alma colectiva. O homem parece comportar a trágica sensualidade de se perder no cosmos sem contudo se desfigurar. Ama-se no convencimento dos outros, e é para isso que às vezes, no seu regime humano, comete todos os crimes.
Ensinar as pessoas a ser livres implica amá-las de uma maneira perfeita. Mas a perfeição traz com ela uma estranha companheira, que é a humilhação da espécie humana. Assistimos hoje, talvez como nunca, à condenação formal de todo o elitismo, ao rebaixamento de valores e ao descrédito da cátedra. Isto acontece porque o número naturalmente descobre na excepção, na exigência, na superioridade criadora, uma ameaça ao desfrute das suas tendências niveladas à altura do habitável e do sentido comum das coisas. Mas se a inteligência desobrigada não sofresse a pressão das ideias extraordinárias, o mundo recaía depressa na barbárie. E para que essa moção da vigilância não signifique uma violação dos direitos da mediania - a tão agradável mediania que situa o homem na dimensão atingível e digna de se viver a curto prazo -, é preciso que a cólera seja deposta.
Um novo humanismo então se esboça, um acontecimento frágil e incerto. Um delicado afecto envolve a massa de razão em que o mundo gira, e é por isso que ela não se estilhaça ao contacto com a irritável norma do convívio humano. Amor e desamor são simultâneos, não se excluem, não se destroem, não se isolam.
Deponhamos a nossa cólera. É esta uma atitude que não espera nada da mística, é apenas uma ausência de tentação. É um efeito da interioridade que se adquire vivendo o exterior da fábula humana. O exterior das coisas é o seu conflito. Quando seguimos o trajecto da interioridade, vai sendo suprimida a desordem e o medo, até se encontrar o rosto eterno que cada ser humano tem consigo. Amor e desamor se chama o caminho. Sem escolha, porque é indivisível. Rápidas como a lua numa noite de vento, passam no coração a vontade de ganhar e a obrigação de perder. Pois tudo se perde e ganha ao mesmo tempo e na mesma hora.
A linguagem do pensador, desprestigiada pela linguagem ritual do partido político ou da fracção religiosa, continua, no entanto, a ser tomada como residência do querer humano. Digamos que a constante alteração das condições de vida na terra levanta problemas novos e actividade nova do espírito. Isto contraria o regime das equipas sociais que só vagarosamente vão assimilando uma verdade; elas não podem, senão com o risco de se desagregarem, transpor as barreiras da inteligibilidade das ideias, antes de elas estarem capazes de actuar como sistemas. E quando actuam é com mais abundância de energias físicas, do que energias psíquicas.
Há uma medida de tempo a respeitar ou a iludir, entre o que se cria e o que se divulga. Entre o que é revelação e o que se faz programa. Mas a pessoa que pensa tem o dever de exigir do seu labor intelectual o máximo de isenção e até de prevaricação frente à verdade estabelecida. Aquele que calcula a administração dos grupos humanos tem que observar as suas necessidades sociais do momento, e por isso não confia nos valores da liberdade como tentativa e experiência intelectual.
A esquizofrenia dos grandes grupos, as suas neuroses específicas são o que conduz a História. Mas resta saber como são infectados esses grupos humanos, e se não é o indivíduo de certo modo imobilizado na sua obsessão profunda quem transmite o rastilho duma energia que, a ser violenta, pode subverter o mundo. Podemos supor, por exemplo, que um conjunto de homens, sem treino de qualquer exercício moral e possuindo um excedente de força física, se é submetido a uma inatividade prolongada, se vai deteriorando no sentido de se tornar psiquicamente muito vulnerável. E entre esses homens pode estar um outro cuja relação com a realidade é densa e cultivada por uma apaixonada experiência. Então desncadeiam-se efeitos como que mágicos e imprevisíveis.
A vida é sustentada por uma paixão que só muito raramente envolve o homem na sua totalidade. Em geral, essa paixão tutela as suas contradições, sugere-lhe a inclinação para amar e para agir, modela enfim uma alma indecisa e branda. Mas acontece às vezes que todo o ser é comprometido no sentido terrível de viver uma situação como se a força cega da matéria explodisse dentro do seu pequeno mundo. Tentemos imaginar o que essa energia despertada tem como poder. É um poder em que o bem e o mal se equilibram em difícil e rigorosa estabilidade, pelo próprio dinamismo da sua ambivalência. Porém, esta imunidade perder-se-ia ao actuar ampliando-se sobre um grupo humano.
O isolado, o que aventura a sua própria experiência, é marcado pela hostilidade da multidão. É certo. Às vezes a virtude fáustica que se desprende da sua alquimia é nefasta, e a consciência colectiva receia cair no seu círculo mágico. Todavia, um laço obscuro persiste entre o homem solitário e a massa que o expulsa. Contrataram entre si as suas forças, ainda que mutuamente se tenham por loucos, pois as suas ideias são parciais e como tal as devem preservar. Uma contemplação carinhosa da loucura sempre nos ensina a fraternidade, que é uma espécie de estrato comum em que convivem a candura provinciana e a intimidação da era planetária.
Quando o homem rezava, a forte demarcação traçada nos horizontes do tédio e do azar poupava-o a grandes percalços da sua viagem intelectual. Deu-se depois uma inflação da erótica em que tudo é vivido e comunicado. Os homens duvidam do mérito da sua cultura, as pessoas em geral não acreditam na sua participação nos grandes problemas. Os grandes problemas parecem-lhes ser culpabilidades úteis para uso dos líderes que infestam todos os terrenos da competição.
Na realidade, não adianta agora que o filósofo se distancie e tome a visão dos acontecimentos para os converter numa síntese hábil e irresponsável. As pessoas amam as suas loucuras por motivos mais sábios do que se julga. Consideremos que a inteligência tem muitas aptidões e até diversas culturas a instaurar; ou seja, tem a tendência a sistematizar uma ou outra espécie de eficácia. Em dado momento essa eficácia falha, e dizemos que está em risco uma civilização. Mas os ciclos da História são como a psique do indivíduo-oscilam entre a astenia e a ciclotimia.
O importante seria talvez que o homem, esmagado pela responsabilidade da sua humanidade, guardasse uma atitude inocente perante o tráfego da cultura. Se ele amar o que deseja saber, está capaz de ultrapassar aquilo de que desespera. E provavelmente actuará de maneira certa no mundo das probalidades. O que encoleriza as pessoas em geral – e mais ou menos todos se comportam com cólera ou com adiamento dessa cólera – é sentirem que são escusadas na construção da Pirâmides ou da Grande Muralha; ou então que, se são necessárias, isto não as pode iludir quanto à sua desapaixonante viabilidade.
Mais trágico do que os conflitos das doutrinas económicas ou o recenseamento na mediocridade, é a atitude da mulher, a sua emancipação ainda tão enigmática. Não há dúvida que a igualdade dos sexos destrói a erótica que envolve todo o comportamento humano, desde a procriação até ao orgulho próprio da condição dos seres em progresso. O próprio curso da vida interior, com todas as suas premissas e consequências, tem que ver com a relação homem-mulher. A famosa causa da emancipação feminina começou com o primeiro desenlace do seu estado maternal. Já ao converter-se em educadora, um fio histórico de persuasão que alcança toda a corrente da vida do homem foi truncado. Depois, a mecanização da maternidade e da própria função sexual acabou por rebaixar o sentimento trágico da vida.
Quando se fala em crise, quando se assiste à sua concreta evidência, não nos ocorre que a irreconciliável atitude homem-mulher pesa hoje mais nas grandes mudanças operadas, do que a falência das estruturas económicas e hierárquicas. Talvez porque a divulgação e a escolha dos problemas-guia partem ainda dos homens, tal assunto é fechado e não desfruta da intensidade comunicativa de outros assuntos. É porque há uma angústia indescritível, que se descreve tão insistentemente o comportamento das pessoas na sua natureza física. Esta, cientizada e elevada à categoria de obsessão protectora, não admite o azar.
O pauperismo do pacto homem-mulher está instalado, embora os convénios humanos se afirmem em todos os sectores da vida social. Uma inquietação, modulada pelas exigências do crescimento intelectual e pelo desenvolvimento da imagem técnica da vida, cria uma atitude de defesa que pode concluir-se em impulsos destruidores. A mulher, disponível para o saber da vida por razão da sua esterilidade controlada, transforma-se num objecto de ódio, pois escapa ao mundo formal e incorpora-se na consciência que pondera e vigia. Pela primeira vez na História das civilizações, ela foge ao princípio da ordenação; contudo, está ainda profundamente defendida do terror cósmico pela lei que nela perdura, o acto de dar à luz, ou seja, o acto de morrer através do que pode criar.
É impossível que uma cultura superior não venha a ter origem numa nova inteligência do sentimento da vida. Quando tudo parece medido e consumado, quando as causas e os efeitos estão determinados e, por assim dizer, vencidos, incorporados ao espaço, o drama do conhecimento avança num novo caminho. Homem e mulher, desarticulados do conceito que representavam, estão espiritualmente vivos e movidos a conceber o inconcebível. Não por acto de amor, mas acção para além do amor, eles admitem o inquietante. Desde o começo dos tempos, o terror ameaça e define o homem.. Eis agora que a única dimensão humana a ser vivida é a desdramatização do sentido oculto da existência. A pessoa, como Job na alternada esfera da felicidade e da desgraça, tem direito à inocência. A inocência é a descaracterização do imaginável. O homem tende a esta descaracterização que já foi manifesta noutras culturas e que atinge agora todas as dimensões do presente pessoal, incluindo a sua projecção no presente colectivo. Ocorre-me que o livro que me tornou conhecida se chamou A Sibila. E as sibilas, diferente do que se pode pensar, não prediziam o futuro. Com mais ou menos punição convocada nas palavras que se proferem em público, elas resolviam o caso do momento, denunciavam uma verdade capaz de agir no presente. O escritor, como os oráculos e as sibilas, não ordenam o mundo e talvez não tenham solicitude para ele. Há hoje demasiada solicitude para com tudo e preocupações titânicas. O ser humano não pode com o futuro, e, honestamente, tem que o confessar. É um fardo demasiado pesado para ele. Por isso tenta destruir a ordenação e, mesmo à custa do caos, obter o controlo do seu dia de criação, e usá-lo sem hipóteses, inocentemente.
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em Comtemplação Carinhosa da Angústia, Guimarães Editores, 2000

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