sexta-feira, 29 de janeiro de 2010

O ser humano, no verdadeiro sentido da palavra o animal falante, é o único que também precisa de diálogo para se reproduzir. E não é apenas por falar que o faz nessa ocasião, mas sim porque, ao que parece, a sua disposição para o amor e para a fala estão essencialmente ligadas, de uma forma tão profunda e misteriosa que quase faz lembrar os Antigos, cuja filosofia considerava que Deus, os homens e as coisas nasceram do “logos”, que para eles significava tanto o Espírito Santo como a razão ou o discurso.

L’homme, propement l’animal doué de parole, est le seul être qui ait le besoin de perpétuer aussi ses conversations, et cela non pas simplement comme une conséquence secondaire de ce don: apparement, son goût de l’amour est lié essentiellement à sa loquacité, et si mystérieusement qu’on pense aux philosophes antiques selon qui Dieu, les hommes et les choses sont nés du “Logos”, par quoi ils entendaient tantôt le Sainte-Esprit, tantôt la Raison, tantôt la Parole.

O homem, propriamente, o animal dotado de palavra, é o único ser que tem necessidade de perpetuar as suas conversas, e isto, não como consequência secundária desse dom: aparentemente, o seu gosto pelo amor está ligado essencialmente à sua loquacidade, e tão misteriosamente, que nos lembramos que segundo os filósofos antigos, Deus, os homens e as coisas nasceram do “Logos”, através do qual, eles entendiam tanto o Espírito Santo, como a Razão, como a Palavra.

segunda-feira, 25 de janeiro de 2010

A verdade é que a nova tradução do Homem sem Qualidades, orientada pelo conceituado tradutor do alemão, João Barrento, é no mínimo, pouco conseguida. No fundo, trata-se de uma versão, não de uma tradução, como todas as traduções o são, mas esta não teve qualquer preocupação em ser fiel ao estilo, parece que foi escrita por outra pessoa que não o Robert Musil. A prosa desta versão é uma espécie de navegação à vista, sem rumo, nem parece que estamos na posse de uma das escritas mais elegantes que conheço. Em termos gerais, o conteúdo está lá, o estilo não, as imagens poéticas perdem-se. Ora, a prosa de Musil é absolutamente maravilhosa, precisa e elegante, foi isso o que primeiro me atraiu. Era preferível traduzir tudo do francês, e penso que muitas das passagens o foram. Tenho pena de não saber alemão, por isso não posso comparar o trabalho feito com o original alemão, (por isso, até posso estar enganado na crítica às opções tomadas nesta edição), segui a tradução francesa que é considerada muito boa, e supostamente fiel, quanto possível, ao original. A versão do Mário Braga na editora Livros do Brasil, que apesar de traduzida do francês, mantinha uma coerência do princípio ao fim (não digo isenta de imprecisões, mesma a minha abaixo), mas só contemplava os dois primeiros volumes, já editados, e que foram publicados em vida, por Musil. O que se nota nesta tradução da Dom Quixote, é que ela foi feita por várias pessoas: temos capítulos razoáveis alternando com outros de bradar aos céus, e eu nem tive a coragem de comprar os dois primeiros volumes. Tinha comprado o Jovem Torless, outra tradução a evitar, e foi aí que fiquei de pé atrás com esta edição. Nem vou escrutinar todas as arbitrariedades desta tradução, seria um trabalho árduo, ainda agora comecei a ler este 3ºvolume, e já tropecei e me espantei, mas deixo-vos aqui um cheirinho, não lá muito agradável. Como este volume é totalmente inédito em tradução portuguesa de Portugal (existe uma tradução brasileira), era de grande importância termos acesso a uma bela e boa tradução. Quem souber ler francês está safo, (muito mais quem souber alemão) a nova edição de 2004 é incontornável. Resta-me sugerir uma ASAE para a literatura, e a apreensão destes produtos impróprios para consumo! E ainda por cima levam de toda a intelectualidade palmas e elogios pelo seu trabalho! Será possível? Sublinho os desvios mais evidentes.

50.Dificuldades onde ninguém as procura

Quando escuta a mulher, o homem ouve-se a si próprio a partir de um fosso de orquestra encantado, (pág.335)

O homem quando escuta a voz da mulher, escuta-a reproduzida por uma orquestra encantada (maravilhosa orquestra), soando do fundo do seu fosso.

L'homme quand il entend la voix de la femme, s'entend reproduit par un merveilleux orchestre au fond de sa fosse.

A voz dela tinha um tom fundo, com uma claridade inquieta vinda desse fundo, como um fogo.

A voz dela tinha uma sonoridade profunda, e na sua profundidade, uma claridade inquieta como de uma chama(fogo).

Sa voix avait une sonorité profonde, avec dans sa profondeur une clarté inquiète comme d'un feu.

E se falavam do amor, lembrando um ao outro a sua inconstância e as suas máscaras, isso só acontecia porque ele era um dos sentimentos mais impetuosos e precisos, mas ao mesmo tempo um dos mais suspeitos face ao rigor judicativo do conhecimento, que não deixa de vacilar perante ele. (pág. 336)

E se falavam do amor, lembrando um ao outro, a sua mobilidade e a sua arte de transformação, era somente porque o amor era um dos sentimentos mais intensos e definidos que existe; nada comparado ao sentimento (tão) rigoroso do conhecimento, um sentimento dúbio(suspeito), que consegue até enrolar(ludibriar) este último.

S'il était question de l'amour, en quoi ils se rappelaient l'un à l'autre sa mobilité et son art de la transformation, c'était seulement parce que l'amour est l'un des sentiments les plus intenses et les plus définis qui soient, et néanmoins, comparé au sentiment si rigoreux de la connaissance, un sentiment si suspect qu'il parvient même à enbranler ce dernier.

- Todo o amor é sobrevalorizado! O louco que, na sua perturbação, puxa de uma faca e mata um inocente que por acaso está no lugar da sua alucinação, no plano do amor é um indivíduo normal– concluiu Ulrich, rindo.(pág.338)

- É o amor no seu conjunto que é sobrevalorizado! O louco que puxa de uma faca e trespassa um inocente que por acaso se encontra no lugar da sua alucinação, no amor, é ele o normal! - disse Ulrich, rindo.

"C'est l'amour dans son ensemble qui est surestimé! Le fou qui brandit un couteau et en transperce un innocent qui se trouvait juste à la place de son hallucination, en amour, c'est lui le normal! dit Ulrich en riant.

Robert Musil, O Homem sem Qualidades, 3ºvolume, Dom Quixote, 2009, tradução de João Barrento.
Tradução francesa de Philipe Jaccottet e Jean Pierre Cometti, Seuil, 2004

domingo, 24 de janeiro de 2010

Por estes dias, dediquei um pouco do meu tempo a fazer uma compilação musical. Só que isto de fazer uma sequência coerente, em que cada música tem uma ligação subtil com a que se segue, até ao final, que por sua vez se pode ligar de novo ao princípio, não é coisa fácil. Pelo menos uma semana para sentir os sons a encadearem-se dentro de mim, e é necessário fazer um cd teste, porque há sempre retoques a fazer, músicas a pôr, músicas a tirar, etc. Esta saíu bastante ritmada, a minha tendência natural é ir buscar bonito e triste ou sereno, não esta verve complexa de ritmos. Parti de discos de Michael Brook, que em tempos mágicos a minha amiga Sofia me ofereceu Hybrid, guitarrista ligado a vários artistas world, e com produção própria ligada a projectos com Brian Eno e Daniel Lanois entre outros. Foquei-me em Black Rock, que não conhecia, e nesse clarinetista Arménio Djivan Gasparyan. Depois queria pôr o último Wire, Object 47, um disco mesmo enérgico, e de Colin Newman passei para Minimal Compact, grupo israelita produzido por ele, mas não no disco Deadly Weapons. Também queria ter o Kronos Quartet com a cantora Bollywood, Asha Bhosle. O resto foi aparecendo, e dei por mim a fazer uma viagem de volta ao mundo. Ficou mesmo excelente, (não gosto da falsas modéstias). O meu amigo Dantas e a Fernanda gostaram muito, pessoas de gostos subtis, profundos, inteligentes e aéreos. Aqui vai o line-up:

01. Fandango - Christina Pluhar L’Arpeggiata Ensemble . Los Impossibles,2008
02. Freedom –Djivan Gasparyan, Black Rock(with Michael Brook),1998
03. L’Élèphant –Tom Tom Club, Wordy Rappinghood,1981
04. I am - Kid Creole and the Coconuts, 1981
05. Not Knowing – Minimal Compact, Deadly weapons,1984
06. Nienafing – Rokia Traoré,Bowmboi,2003
07. Bul Ma min – Orchestra Baobab, Specialist In All Styles,2002
08. Mekon Headman – Wire, Object 47, 2008
09. The Perfect me – Deerhoof, Friendly Opportunity,2007
10. Peacock Tail-The Boards of Canada,The Camfire Headphase,2005
11. Horse Head – 16 Horsepower, Sackcloth’n’ashes, 1996
12. Je t’emmenne au vent – Louise Ataque,1997
13. Pasare Necunoscuta – Romica Puceanu, 1975
14. Jadwa – Jon Balke (Amina Allaoui), Siwan, 2009
15. Oblivion, Tango – Gidon Kremer, Hommage a Piazzolla, 2005
16. Rishte bante hain – Kronos Quartet(Asha Bhosle),You’ve stolen my heart,2005
17. Diapasíon – Fatima Miranda, Arte Sonado,2000
18. Song for T.Y. – Otomo Yoshihide, Plays the music of Takeo Yamashita, 1999

sexta-feira, 15 de janeiro de 2010

Escrevi esta história quando um beijo me fez sonhar. O amor poderá ser assim?

Era uma vez dois amigos que gostavam muito de brincar juntos.
Um dia, a passear pelos campos,
resolveram trepar, à mais alta árvore da floresta.
Treparam, treparam,
queriam ver o que se via lá bem no alto.
Quando chegaram ao cimo,
olharam em volta.
Estavam admirados por conseguirem ver tantas coisas.
Outras aldeias pequenas existiam perto da sua,
Na realidade eram todas muito parecidas,
com casas baixas, em geral de pedra,
ou caiadas de branco e azul,
ruas estreitas,
cegonhas na torre da igreja,
laranjeiras na praça central.

Os dois amigos eram inseparáveis,
riam por tudo e por nada,
rebolavam na relva,
andavam de bicicleta,
faziam partidas.
Um dia, como todos os outros,
pararam de repente, um frente ao outro
e olharam-se durante muito tempo.
O tempo passava
e eles não queriam deixar de olhar um para o outro.
Até que a menina rodou o corpo,
e agarrando numa flôr,
a encostou à cara do menino e lhe disse:
- és muito delicado, gosto muito de ti.
O menino riu com os olhos e os dentes, e tocou-lhe na cara ao de leve;
nos seus olhos ela viu uma luz.
- Também gosto muito de ti.
Aquilo que estavam a sentir era uma espécie de bailado,
coreografado por alguém brincalhão, porque não sentiam o chão.

Fecharam os dois os olhos,
e quando os abriram estavam, novamente, na sua árvore.
os dois abraçados ao tronco, com as caras coladas e as mãos apertadas.
Acharam que lhes estava a suceder algo fora de comum:
As aldeias que antes viam, agora eram palácios feitos de ouro,
nas ruas passeavam cavalos alados,
uma música suave soava no ar,
as flôres eram enormes e lindas com côres e cheiros encantadores,
a igreja era agora um coração gigante e muito vermelho,
que as pessoas acariciavam.
Os lagos estavam cheios de cisnes brancos,
viam-se unicórnios,
homens e mulheres beijavam-se em cada esquina,
as crianças brincavam,
os animais saltavam de alegria,
até uma vaca deu algodão doce em vez de leite!

Os amigos acharam que estavam num sonho,
e a verdade é essa mesmo:
ao descobrirem o amor,
viram que esse sentimento transforma tudo à sua volta.
Sabes - disse o menino - nunca pensei que o amor fosse assim tão grande a sentir.
Eu sabia, disse a menina.
Um dia, já há algum tempo, estava eu a sonhar,
O quarto foi inundado por uma luz imensa.
Consegui abrir os olhos, e ver, que,
uma estrela tinha entrado pela janela.
Eu muito espantada, mas sem nenhum medo,
Ouvi a sua voz cintilante dizer:
- quando amares alguém de verdade,
vais saber de que são feitas as estrelas.
E com um toque muito leve no meu nariz, ela desapareceu.
Agora sei o que a estrela me queria dizer,
e sinto um brilho em mim imenso.

O menino tocou na sua face e nos seus cabelos e olhou-a nos olhos.
Os seus lábios aproximaram-se e tocaram-se.
Os seus corpos ficaram do tamanho de um céu,
em que cada sarda e sinal eram agora múltiplas estrelas,
nas suas cabeças tudo se movimentava
à estonteante velocidade de uma luz,
e um sol interior despontou nas suas frontes,
e incidiu sobre cada minúscula partícula dos seus corpos,
agora quentes e luminosos como uma estrela.
Abriram novamente os olhos
e olharam um para o outro.
As suas caras estavam com uma luz brilhante e azulada
Uma aura enorme circundava os seus corpos
A da menina em tons rosa e verde claros,
A dele mais azulada e com tons laranja.

Ambos sorriram
Estavam encantados:
Em cada pequeno pedaço dos seus corpos, das suas roupas
havia um brilho de estrelas de várias cores.
Abraçaram-se
E nesse contacto sentiram algo a crescer na sua coluna vertebral:
Eram umas grandes asas que se abriam,
Com uma luz branca e prateada intensa.
Levitaram sem qualquer esforço,
De novo,
aproximaram as suas bocas,
e os seus lábios colaram-se,
Depois os braços, os pés, o peito,
Fundiram-se um no outro.
Não sabiam mais quem era um
e quem era o outro,

E de olhos fechados,
Percorreram lagos de flamingos,
Conheceram mares e ilhas secretas,
Cheiraram flores de perfumes raros,
Beberam da água mais pura,
Escreveram os seus nomes
Numa grande árvore de canela e jasmim,
Ouviram o murmúrio da lava,
mesmo no fundo de um vulcão
Tocaram na Lua com as pestanas e os ombros,
Estiveram dentro de uma medusa gigante,
Com a sua arquitectura de cristais e luzes infinita
Compreendiam as falas dos animais,
E respiravam carinhosamente
a alegria do amor.

Pensavam ser estrelas,
Porque todas as coisas tinham um brilho que antes não conheciam,
E eles próprios eram luz.
Caminharam até suas casas,
de mão dada,
sem sentirem os pés tocarem o chão.
Um céu límpido e macio envolvia-os,
uma brisa fresca acariciava as suas caras,
algo de intenso os unia:
era uma energia possante e mágica
que produziam os seus corações,
faiscantes,
reluzentes,
em expansão.

29.5.2009

quarta-feira, 6 de janeiro de 2010


Poiso, Novembro 2009

Há talvez outras dimensões onde vivemos outras coisas igualmente reais de nós. Não sei mesmo se este espaço interior não será apenas uma nova dimensão do outro. Aquilo a que chamamos Deus é um nosso modo de existência, uma sensação de nós em outra dimensão do ser. Em cada uma dessas sensações sou outro, renovo-me dolorosamente em cada impressão indefinida. Multipliquei-me aprofundando-me. Sentir é buscar.

Reescrevendo Pessoa
Criei-me eco e abismo, pensando. Multipliquei-me aprofundando-me. O mais pequeno episódio — uma alteração saindo da luz, a queda enrolada de uma folha seca, a pétala que se despega amarelecida, a voz do outro lado do muro ou os passos de quem a diz junta aos de quem a deve escutar, o portão entreaberto da quinta velha, o pátio abrindo com um arco das casas aglomeradas ao luar — todas estas coisas, que me não pertencem, prendem-me a meditação sensível com laços de ressonância e de saudade. Em cada uma dessas sensações sou outro, renovo-me dolorosamente em cada impressão indefinida.
Vivo de impressões que me não pertencem, perdulário de renúncias, outro no modo como sou eu.
Penso às vezes com agrado (em bissecção) na possibilidade futura de uma geografia da nossa consciência de nós próprios. A meu ver, o historiador futuro das nossas próprias sensações poderá talvez reduzir a uma ciência precisa a sua atitude para com a sua consciência da sua própria alma. Por enquanto vamos em princípio nesta arte difícil — arte ainda, química de sensações no seu estado alquímico por ora. Esse cientista de depois de amanhã terá um escrúpulo especial pela sua própria vida interior. Criará de si mesmo o instrumento de precisão para a reduzir a analisada. Não vejo dificuldade essencial em construir um instrumento de precisão, para uso auto-analítico, com aços e bronzes só do pensamento. Refiro-me a aços e bronzes realmente aços e bronzes, mas do espírito. E talvez mesmo assim que ele deva ser construído. Será talvez preciso arranjar a ideia de um instrumento de precisão, materialmente vendo essa ideia, para poder proceder a uma rigorosa análise íntima. E naturalmente será necessário reduzir também o espírito a uma espécie de matéria real com uma espécie de espaço em que existe. Depende tudo isso do aguçamento extremo das nossas sensações interiores, que, levadas até onde podem ser, sem dúvida revelarão, ou criarão, em nós um espaço real como o espaço que há onde as coisas da matéria estão, e que, aliás, é irreal como coisa.
Não sei mesmo se este espaço interior não será apenas uma nova dimensão do outro. Talvez a investigação científica do futuro venha a descobrir que tudo são dimensões do mesmo espaço, nem material nem espiritual por isso. Numa dimensão viveremos corpo; na outra viveremos alma. E há talvez outras dimensões onde vivemos outras coisas igualmente reais de nós. Apraz-me às vezes deixar-me possuir pela meditação inútil do ponto até onde esta investigação pode levar.
Talvez se descubra que aquilo a que chamamos Deus, e que tão patentemente está em outro plano que não a lógica e a realidade espacial e temporal, é um nosso modo de existência, uma sensação de nós em outra dimensão do ser. Isto não me parece impossível. Os sonhos também serão talvez ou ainda outra dimensão em que vivemos, ou um cruzamento de duas dimensões; como um corpo vive na altura, na largura e no comprimento, os nossos sonhos, quem sabe, viverão no ideal, no eu e no espaço. No espaço pela sua representação visível; no ideal pela sua apresentação de outro género que a da matéria; no eu pela sua íntima dimensão de nossos. O próprio Eu, o de cada um de nós, é talvez uma dimensão divina. Tudo isto é complexo e a seu tempo, sem dúvida, será determinado. Os sonhadores actuais são talvez os grandes precursores da ciência final do futuro. Não creio, é claro, numa ciência final do futuro. Mas isso nada tem para o caso.
Faço às vezes metafísica destas, com a atenção escrupulosa e respeitosa de quem trabalha deveras e faz ciência. Já disse que chega a ser possível que a esteja realmente fazendo. O essencial é eu não me orgulhar muito com isto, dado que o orgulho é prejudicial à exacta imparcialidade da precisão científica.

Livro do Desassossego por Bernardo Soares. Vol.I. Fernando Pessoa. (Recolha e transcrição dos textos de Maria Aliete Galhoz e Teresa Sobral Cunha. Prefácio e Organização de Jacinto do Prado Coelho.) Lisboa: Ática, 1982.

terça-feira, 5 de janeiro de 2010

A arte é um esquivar-se a agir, ou a viver. A arte é a expressão intelectual da emoção, distinta da vida, que é a expressão volitiva da emoção. O que não temos, ou não ousamos, ou não conseguimos, podemos possuí-lo em sonho, e é com esse sonho que fazemos arte. Outras vezes a emoção é a tal ponto forte que, embora reduzida a acção, a acção, a que se reduziu, não a satisfaz; com a emoção que sobra, que ficou inexpressa na vida, se forma a obra de arte. Assim, há dois tipos de artista: o que exprime o que não tem e o que exprime o que sobrou do que teve.

Livro do Desassossego. Vol.II. Fernando Pessoa. (Organização e fixação de inéditos de Teresa Sobral Cunha.) Lisboa: Presença, 1990. - 500.
Tudo é encontrar qualquer coisa. Mesmo perder é achar o estado de ter essa coisa perdida. Nada se perde; só se encontra qualquer coisa. Há no fundo deste poço, como na fábula, a Verdade.

Sentir é buscar.

Textos Filosóficos . Vol. I. Fernando Pessoa. (Estabelecidos e prefaciados por António de Pina Coelho.) Lisboa: Ática, 1968 (imp. 1993). - 228
Toda a vida da alma humana é um movimento na penumbra. Vivemos, num lusco-fusco de consciência, nunca certos com o que somos ou com o que nos supomos ser. Nos melhores de nós vive a vaidade de qualquer coisa, e há um erro cujo ângulo não sabemos. Somos qualquer coisa que se passa no intervalo de um espectáculo; por vezes, por certas portas, entrevemos o que talvez não seja senão cenário. Todo o mundo é confuso, como vozes na noite.
Estas páginas, em que registo com uma clareza que dura para elas, agora mesmo as reli e me interrogo. Que é isto, e para que é isto? Quem sou quando sinto? Que coisa morro quando sou?
Como alguém que, de muito alto, tente distinguir as vidas do vale, eu assim mesmo me contemplo de um cimo, e sou, com tudo, uma paisagem indistinta e confusa.
É nestas horas de um abismo na alma que o mais pequeno pormenor me oprime como uma carta de adeus.
Sinto-me constantemente numa véspera de despertar, sofro-me o invólucro de mim mesmo, num abafamento de conclusões. De bom grado gritaria se a minha voz chegasse a qualquer parte. Mas há um grande sono comigo, e desloca-se de umas sensações para outras como uma sucessão de nuvens, das que deixam de diversas cores de sol e verde a relva meio ensombrada dos campos prolongados.
Sou como alguém que procura ao acaso, não sabendo onde foi oculto o objecto que lhe não disseram o que é. Jogamos às escondidas com ninguém. Há, algures, um subterfúgio transcendente, unia divindade fluida e ouvida.
Releio, sim, estas páginas que representam horas pobres, pequenos sossegos ou ilusões, grandes esperanças desviadas para a paisagem, mágoas como quartos onde se não entra, certas vozes, um grande cansaço, o evangelho por escrever.
Cada um tem a sua vaidade, e a vaidade de cada um é o seu esquecimento de que há outros com alma igual. A minha vaidade são algumas páginas, uns trechos, certas dúvidas...
Releio? Menti! Não ouso reler. Não posso reler. De que me serve reler? O que está ali é outro. Já não compreendo nada...

Livro do Desassossego por Bernardo Soares. Vol.II. Fernando Pessoa. (Recolha e transcrição dos textos de Maria Aliete Galhoz e Teresa Sobral Cunha. Prefácio e Organização de Jacinto do Prado Coelho.) Lisboa: Ática, 1982. - 427.
L. do D. (Chapter on Indifference or something like that)

Toda a alma digna de si própria deseja viver a vida em Extremo. Contentar-se com o que lhe dão é próprio dos escravos. Pedir mais é próprio das crianças. Conquistar mais é próprio dos loucos, porque toda a conquista é (...)
Viver a vida em Extremo significa vivê-la até ao limite, mas há três maneiras de o fazer, e a cada alma elevada compete escolher uma das maneiras. Pode viver-se a vida em extremo pela posse extrema dela, pela viagem ulisseia através de todas as sensações vividas, através de todas as formas de energia exteriorizada. Raros, porém, são, em todas as épocas do mundo, os que podem fechar os olhos cheios do cansaço soma de todos os cansaços, os que possuíram tudo de todas as maneiras.
Raros podem assim exigir da vida, conseguindo-o, que ela se lhes entregue corpo e alma; sabendo não ser ciumentos dela por saber ter-lhe o amor inteiramente. Mas este deve ser, sem dúvida, o desejo de toda a alma elevada e forte. Quando essa alma, porém, verifica que lhe [é] impossível tal realização, que não tem forças para a conquista de todas as partes do Todo, tem dois outros caminhos que siga — um, a abdicação inteira, a abstenção formal, completa relegando para a esfera da sensibilidade aquilo que não pode possuir integralmente na região da actividade e da energia. Mais vale supremamente não agir que agir inutilmente, fragmentariamente, imbastantemente, como a inúmera supérflua maioria inane dos homens; outro, o caminho do perfeito equilíbrio, a busca do Limite da Proporção Absoluta, por onde a ânsia de Extremo passa da vontade e da emoção para a Inteligência, sendo toda a ambição não de viver toda a vida, não de sentir toda a vida, mas de ordenar toda a vida, de a cumprir em Harmonia e Coordenação inteligente.
A ânsia de compreender, que para tantas almas nobres substitui a de agir, pertence à esfera da sensibilidade. Substituir a Inteligência à energia, quebrar o elo entre a vontade e a emoção, despindo de interesse todos os gestos da vida material, eis o que, conseguido, vale mais que a vida, tão difícil de possuir completa, e tão triste de possuir parcial.
Diziam os argonautas que navegar é preciso, mas que viver não é preciso. Argonautas, nós, da sensibilidade doentia, digamos que sentir é preciso, mas que não é preciso viver.


Livro do Desassossego por Bernardo Soares. Vol.II. Fernando Pessoa. (Recolha e transcrição dos textos de Maria Aliete Galhoz e Teresa Sobral Cunha. Prefácio e Organização de Jacinto do Prado Coelho.) Lisboa: Ática, 1982. - 495.
A liberdade é a possibilidade do isolamento. És livre se podes afastar-te dos homens, sem que te obrigue a procurá-los a necessidade de dinheiro, ou a necessidade gregária, ou o amor, ou a glória, ou a curiosidade, que no silêncio e na solidão não podem ter alimento. Se te é impossível viver só, nasceste escravo. Podes ter todas as grandezas do espírito, todas da alma: és um escravo nobre, ou um servo inteligente: não és livre. E não está contigo a tragédia, porque a tragédia de nasceres assim não é contigo, mas do Destino para si somente. Ai de ti, porém, se a opressão da vida, ela própria, te força a seres escravo. Ai de ti se, tendo nascido liberto, capaz de te bastares e de te separares, a penúria te força a conviveres. Essa, sim, é a tua tragédia, e a que trazes contigo.
Nascer liberto é a maior grandeza do homem, o que faz o ermitão humilde superior aos reis, e aos deuses mesmo, que se bastam pela força, mas não pelo desprezo dela.
A morte é uma libertação porque morrer é não precisar de outrem. O pobre escravo vê-se livre à força dos seus prazeres, das suas mágoas, da sua vida desejada e contínua. Vê-se livre o rei dos seus domínios, que não queria deixar. As que espalharam amor vêem-se livres dos triunfos que adoram. Os que venceram vêem-se livres das vitórias para que a sua vida se fadou.
Por isso a morte enobrece, veste de galas desconhecidas o pobre corpo absurdo. É que ali está um liberto, embora o não quisesse ser. É que ali não está um escravo, embora ele chorando perdesse a servidão. Como um rei cuja maior pompa é o seu nome de rei, e que pode ser risível como homem, mas como rei é superior, assim o morto pode ser disforme, mas é superior, porque a morte o libertou.
Fecho, cansado, as portas das minhas janelas, excluo o mundo e um momento tenho a liberdade. Amanhã voltarei a ser escravo; porém agora, só, sem necessidade de ninguém, receoso apenas que alguma voz ou presença venha interromper-me, tenho a minha pequena liberdade, os meus momentos de excelsis.
Na cadeira, aonde me recosto, esqueço a vida que me oprime. Não me dói senão ter-me doído.

Livro do Desassossego por Bernardo Soares. Vol.II. Fernando Pessoa. (Recolha e transcrição dos textos de Maria Aliete Galhoz e Teresa Sobral Cunha. Prefácio e Organização de Jacinto do Prado Coelho.) Lisboa: Ática, 1982. - 456.
A inacção consola de tudo. Não agir dá-nos tudo. Imaginar é tudo, desde que não tenda para agir. Ninguém pode ser rei do mundo senão em sonho. E cada um de nós, se deveras se conhece, quer ser rei do mundo.
Não ser, pensando, é o trono. Não querer, desejando, é a coroa. Temos o que abdicamos, porque o conservamos, sonhando, intacto eternamente à luz do sol que não há, ou da lua que não pode haver.

Livro do Desassossego. Vol.I. Fernando Pessoa. (Organização e fixação de inéditos de Teresa Sobral Cunha.) Coimbra: Presença, 1990. - 221.