segunda-feira, 25 de janeiro de 2010

A verdade é que a nova tradução do Homem sem Qualidades, orientada pelo conceituado tradutor do alemão, João Barrento, é no mínimo, pouco conseguida. No fundo, trata-se de uma versão, não de uma tradução, como todas as traduções o são, mas esta não teve qualquer preocupação em ser fiel ao estilo, parece que foi escrita por outra pessoa que não o Robert Musil. A prosa desta versão é uma espécie de navegação à vista, sem rumo, nem parece que estamos na posse de uma das escritas mais elegantes que conheço. Em termos gerais, o conteúdo está lá, o estilo não, as imagens poéticas perdem-se. Ora, a prosa de Musil é absolutamente maravilhosa, precisa e elegante, foi isso o que primeiro me atraiu. Era preferível traduzir tudo do francês, e penso que muitas das passagens o foram. Tenho pena de não saber alemão, por isso não posso comparar o trabalho feito com o original alemão, (por isso, até posso estar enganado na crítica às opções tomadas nesta edição), segui a tradução francesa que é considerada muito boa, e supostamente fiel, quanto possível, ao original. A versão do Mário Braga na editora Livros do Brasil, que apesar de traduzida do francês, mantinha uma coerência do princípio ao fim (não digo isenta de imprecisões, mesma a minha abaixo), mas só contemplava os dois primeiros volumes, já editados, e que foram publicados em vida, por Musil. O que se nota nesta tradução da Dom Quixote, é que ela foi feita por várias pessoas: temos capítulos razoáveis alternando com outros de bradar aos céus, e eu nem tive a coragem de comprar os dois primeiros volumes. Tinha comprado o Jovem Torless, outra tradução a evitar, e foi aí que fiquei de pé atrás com esta edição. Nem vou escrutinar todas as arbitrariedades desta tradução, seria um trabalho árduo, ainda agora comecei a ler este 3ºvolume, e já tropecei e me espantei, mas deixo-vos aqui um cheirinho, não lá muito agradável. Como este volume é totalmente inédito em tradução portuguesa de Portugal (existe uma tradução brasileira), era de grande importância termos acesso a uma bela e boa tradução. Quem souber ler francês está safo, (muito mais quem souber alemão) a nova edição de 2004 é incontornável. Resta-me sugerir uma ASAE para a literatura, e a apreensão destes produtos impróprios para consumo! E ainda por cima levam de toda a intelectualidade palmas e elogios pelo seu trabalho! Será possível? Sublinho os desvios mais evidentes.

50.Dificuldades onde ninguém as procura

Quando escuta a mulher, o homem ouve-se a si próprio a partir de um fosso de orquestra encantado, (pág.335)

O homem quando escuta a voz da mulher, escuta-a reproduzida por uma orquestra encantada (maravilhosa orquestra), soando do fundo do seu fosso.

L'homme quand il entend la voix de la femme, s'entend reproduit par un merveilleux orchestre au fond de sa fosse.

A voz dela tinha um tom fundo, com uma claridade inquieta vinda desse fundo, como um fogo.

A voz dela tinha uma sonoridade profunda, e na sua profundidade, uma claridade inquieta como de uma chama(fogo).

Sa voix avait une sonorité profonde, avec dans sa profondeur une clarté inquiète comme d'un feu.

E se falavam do amor, lembrando um ao outro a sua inconstância e as suas máscaras, isso só acontecia porque ele era um dos sentimentos mais impetuosos e precisos, mas ao mesmo tempo um dos mais suspeitos face ao rigor judicativo do conhecimento, que não deixa de vacilar perante ele. (pág. 336)

E se falavam do amor, lembrando um ao outro, a sua mobilidade e a sua arte de transformação, era somente porque o amor era um dos sentimentos mais intensos e definidos que existe; nada comparado ao sentimento (tão) rigoroso do conhecimento, um sentimento dúbio(suspeito), que consegue até enrolar(ludibriar) este último.

S'il était question de l'amour, en quoi ils se rappelaient l'un à l'autre sa mobilité et son art de la transformation, c'était seulement parce que l'amour est l'un des sentiments les plus intenses et les plus définis qui soient, et néanmoins, comparé au sentiment si rigoreux de la connaissance, un sentiment si suspect qu'il parvient même à enbranler ce dernier.

- Todo o amor é sobrevalorizado! O louco que, na sua perturbação, puxa de uma faca e mata um inocente que por acaso está no lugar da sua alucinação, no plano do amor é um indivíduo normal– concluiu Ulrich, rindo.(pág.338)

- É o amor no seu conjunto que é sobrevalorizado! O louco que puxa de uma faca e trespassa um inocente que por acaso se encontra no lugar da sua alucinação, no amor, é ele o normal! - disse Ulrich, rindo.

"C'est l'amour dans son ensemble qui est surestimé! Le fou qui brandit un couteau et en transperce un innocent qui se trouvait juste à la place de son hallucination, en amour, c'est lui le normal! dit Ulrich en riant.

Robert Musil, O Homem sem Qualidades, 3ºvolume, Dom Quixote, 2009, tradução de João Barrento.
Tradução francesa de Philipe Jaccottet e Jean Pierre Cometti, Seuil, 2004

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