sexta-feira, 24 de setembro de 2010

“A vida intensa é contrária ao Tao”, ensina Lao-Tse, o homem mais normal que alguma vez existiu. Mas o vírus cristão corrói-nos: herdeiros dos flagelantes, é refinando os nossos suplícios que tomamos consciência de nós próprios.
(…) A “vida intensa” faz-se à custa tanto do espírito como do corpo. Mestres na arte de pensar contra si próprio, Nietzsche, Baudelaire, Dostoievski ensinaram-nos a apostar nos nossos perigos, a alargar a esfera dos nossos males, a ganhar existência através da divisão interna do nosso ser. E aquilo que aos olhos do grande chinês era símbolo de decadência, exercício de imperfeição, constitui para nós a única modalidade por que nos possuímos, por que entramos em contacto connosco próprios.
“Que o homem nada ame, e será invulnerável” (Tchuang-tsé). Máxima tão profunda como inoperante. Como atingir o apogeu da indiferença quando até a nossa apatia é tensão, conflito, agressividade? Não há nenhum mestre de sabedoria entre os nossos antepassados, mas sim seres insatisfeitos, caprichosos, frenéticos, cujas decepções ou excessos temos, de uma maneira ou de outra, que continuar.
(…) A esfera da consciência reduz-se na acção, por isso ninguém que aja pode aspirar ao universal, porque agir é agarrar-se às propriedades de ser em detrimento do ser, a uma forma de realidade em prejuízo da realidade. O grau da nossa emancipação mede-se pela quantidade das iniciativas de que nos libertámos, bem como pela nossa capacidade de converter em não-objecto todo o objecto. Mas nada significa falar de emancipação a propósito de uma humanidade apressada que se esqueceu de que não é possível reconquistar a vida nem gozá-la sem primeiro a ter abolido.
Respiramos demasiado depressa para sermos capazes de captar as coisas em si próprias ou de denunciar a sua fragilidade. O nosso ofegar postula-as e deforma-as, cria-as e desfigura-as, e amarra-nos a elas.
(…) Empanturrados de sensações e do seu corolário, o devir, somos seres não libertos, por inclinação e por princípio, condenados de eleição, presas da febre do visível, pesquisadores desses enigmas de superfície que estão à altura do nosso desânimo e da nossa trepidação.
Se queremos recuperar a nossa liberdade, devemos pousar o fardo da sensação, deixar de reagir ao mundo através dos sentidos, romper os nossos laços. Ora, toda a sensação é um laço, tanto o prazer como a dor, tanto a alegria como a tristeza. Só se liberta o espírito que, puro de toda a convivência com seres ou com objectos, se aplica à sua vacuidade.
(…) Ao mesmo tempo que remexemos nos nossos males, os dos outros não deixam de nos interpelar. Na época das biografias, ninguém pode encobrir as suas chagas sem que tentemos descobri-las e pô-las à luz do dia; quando não conseguimos fazê-lo, afastamo-nos cheios de decepção. E mesmo aquele que acabou na cruz não é de maneira alguma por ter sofrido por nós que ainda conta aos nossos olhos, mas simplesmente por ter sofrido e soltado alguns gritos tão profundos quanto gratuitos. Porque aquilo que veneramos nos nossos deuses são as nossas derrotas embelezadas.
(…) Mais ainda do que o estilo, o próprio ritmo da nossa vida assenta na honorabilidade da revolta. Repugnando-nos admitir a identidade universal, afirmamos a individuação, a heterogeneidade, como fenómeno primordial. Ora, revoltarmo-nos é postular essa heterogeneidade, concebê-la de algum modo como anterior ao advento dos seres e dos objectos. Se oponho a Unidade, só ela verídica, à multiplicidade, necessariamente enganadora, se, noutros termos, assimilo o outro a um fantasma, a minha revolta torna-se vazia de sentido, essa revolta que, para existir, tem de partir da irredutibilidade dos indivíduos, da sua condição de nómadas, de essências circunscritas. Todo o acto institui e reabilita a pluralidade, e, conferindo à pessoa realidade e autonomia, reconhece implicitamente a degradação, a fragmentação do absoluto. E é dele, do acto, e do culto que lhe é dedicado, que procede a tensão do nosso espírito, bem como essa necessidade de explodirmos e nos destruirmos no cerne da duração. A filosofia moderna, ao instaurar a superstição do Eu, tornou-o a mola real dos nossos dramas e o eixo das nossas inquietações. Chorar o repouso no indistinto, o sonho neutro da existência sem qualidades, de nada serve; quisemo-nos sujeitos, e todo o sujeito é ruptura com a quietude da Unidade. Quem se disponha a atenuar a nossa solidão ou as nossas dilacerações age contra os nossos interesses e contra a nossa vocação. Medimos o valor do indivíduo pela soma dos seus desacordos com as coisas, pela sua incapacidade de ser indiferente, pela sua recusa de tender para o objecto. Daí a depreciação da ideia de Bem, daí a voga do Diabo.
(…) Procurar o sofrimento para evitar a redenção, seguir ao contrário o caminho da libertação, tal é o nosso contributo em matéria de religião: iluminados biliosos, budas e Cristos hostis à salvação, pregando aos miseráveis os encantos da sua desgraça. Raça superficial, se quiserem. Mas não deixa de ser verdade que o nosso primeiro antepassado só nos deixou por herança o horror ao Paraíso. Ao dar um nome às coisas preparava a sua e a nossa queda. Se quisermos remediá-la, teremos de começar por desbaptizar o universo, por retirar a etiqueta que, posta em cada aparência, a eleva e lhe empresta um simulacro de sentido. Entretanto, tudo em nós, até as células nervosas, sente repulsa pelo Paraíso. Sofrer: única modalidade de aquisição da sensação de existir; existir: único modo de salvaguardarmos a nossa perda. E assim será até que uma cura de eternidade nos desintoxique do devir, enquanto não nos aproximarmos desse estado no qual, segundo um budista chinês, “o instante vale dez mil anos”.
Se o absoluto corresponde a um sentido que não soubemos cultivar, entreguemo-nos a todas as rebeliões: elas acabarão por se voltar contra si próprias, contra nós próprios…Talvez recuperemos, então, a nossa supremacia sobre o tempo; a menos que, no extremo oposto, e querendo escapar à calamidade da consciência, nos juntemos aos animais, às plantas e aos objectos, e a essa estupidez primordial de que, por culpa da História, perdemos até mesmo a recordação.

em A tentação de existir, E.M.Cioran, Relógio d’água, 1988

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