quinta-feira, 11 de março de 2010

Como complemento à entrevista de Lourdes Castro, junto passagens do livro Zen e a arte do tiro com arco de Eugen Herrigel, Assírio e Alvim, 2007.
Livro, também para mim, essencial.

Um dos aspectos mais significativos na prática do tiro com arco – e em qualquer outra arte praticada no Japão e provavelmente também noutros países do Extremo Oriente – é o facto de não ter quaisquer propósitos utilitários, nem se destinar à pura fruição estética. Na verdade, representa um exercício da consciência, com o objectivo de a pôr em contacto com a realidade última. Assim, não se pratica o tiro com arco no mero intuito de acertar no alvo, nem se maneja a espada com o fim de vencer o adversário; o bailarino não dança apenas para executar um movimento rítmico: acima de tudo pretende-se harmonizar o consciente com o inconsciente.
No que diz respeito ao tiro com arco, isto significa que atirador e alvo deixam de ser duas entidades opostas, para se unirem numa única realidade. O arqueiro já não tem consciência de si como alguém a quem cabe a tarefa de acertar no alvo à sua frente. Mas este estado de não-consciência só é alcançado quando o arqueiro se desprende e liberta inteiramente do seu Ego, quando forma uma unidade com a perfeição da perícia técnica. Isto é algo completamente diferente de todo e qualquer progresso susceptível de ser alcançado na arte do tiro com arco.
Essa diferença chama-se satori, e pertence a uma ordem inteiramente diversa. Significa intuição, mas distingue-se perfeitamente daquilo que em geral assim se denomina. Por isso lhe chamo intuição-prajna. Prajna pode ser definida como a “sabedoria transcendental”, embora esta expressão também não transmita todas as matizes contidas na palavra, pois prajna é uma intuição que compreende simultaneamente a totalidade e a individualidade de todas as coisas. Essa intuição reconhece, sem qualquer espécie de meditação, que o Zero é infinito – e o Infinito é Zero -; isto não tem um significado simbólico ou matemático, é uma experiência apreensível sem meditação.
Por isso, satori é, em termos psicológicos, o que está para além da fronteira do Ego. Do ponto de vista lógico, trata-se da percepção da síntese de afirmação e negação. Em termos metafísicos, é a apreensão intuitiva do Ser é Devir e Devir é Ser.
A diferença essencial entre o Zen e todas as outras doutrinas de natureza religiosa, filosófica ou mística é o facto de não desaparecer da nossa vida quotidiana e, apesar disso, de todas as suas possibilidades de aplicação prática e do seu carácter concreto, conter algo em si que o demarca do grande teatro mundano da imperfeição e da inquietude.
Referimo-nos à relação entre o Zen e a arte do tiro com arco ou às outras artes como a esgrima, o ikebana, a cerimónia do chá, a dança e as artes mais delicadas.
Zen é a “consciência diária”, na definição de Baso Matsu(falecido em 788). Esta “consciência diária”não é senão “dormir, quando se está cansado e comer, quando se tem fome”. No momento em que reflectimos, ponderamos e construímos conceitos, perde-se o inconsciente original, dando lugar a um pensamento. Já não comemos quando comemos nem dormimos quando dormimos. A seta foi disparada, mas não voa na direcção do alvo, não está onde deveria estar.
O ser humano é uma criatura pensante, mas as suas grandes obras realizam-se quando ele não pensa nem calcula. Após longos anos de treino na arte do esquecimento-de-si, o objectivo é o de recuperar o “estádio de infância”. Uma vez atingido, a pessoa pensa, embora não pensando. Pensa como a chuva que cai do céu; pensa como as vagas que se levantam no mar; pensa como as estrelas que iluminam o céu nocturno; como a folhagem verde que rebenta sob a doçura da aragem primaveril. Na verdade, ele próprio é a chuva, o mar, as estrelas, o verde.
Uma vez atingida esta etapa do desenvolvimento “espiritual”, o indivíduo torna-se um mestre Zen da vida. Não precisa, como o pintor, de tela, pincel e tintas. Não utiliza, como o arqueiro, arco, seta e alvo, nem quaisquer outros apetrechos. Tem os seus membros, o corpo, a cabeça e tudo isso. A sua existência Zen exprime-se através de todos estes “instrumentos”, importantes enquanto formas de manifestação. As mãos e os pés são pincéis e o universo inteiro a tela, onde irá pintar a sua vida, ao longo de sessenta, oitenta ou noventa anos.

Daisetz T. Suzuki da Introdução Zen e a Arte do Tiro com Arco de Eugen Herrigel, Assírio e Alvim, 2007

(...)o tiro com arco revela-nos o confronto do arqueiro consigo próprio. Só é permitido aos que possuem um coração puro e livre de segundas intenções. O confronto consiste em que o arqueiro se transforma a si próprio em alvo. Ele é simultaneamente o que alveja e é alvo, o que atinge e é atingido. O fundamental é que o arqueiro, apesar da sua acção, se converta num centro imóvel. Então sucede algo de grandioso e final: a arte deixa de ser arte e o tiro deixa de ser tiro, pois acontece sem arco e sem flecha. O professor converte-se novamente em aluno, o mestre em aprendiz, o fim em princípio e o princípio em perfeição.
(…)Arco e seta são, por assim dizer, apenas um pretexto para uma busca que os poderia dispensar, um caminho possível para um objectivo, que não é o próprio objectivo, mas uma ajuda para o salto último e decisivo.
(…)aquilo que prevalece nunca é a especulação, mas sim uma experiência directa da insondável profundidade do ente que não pode ser apreendida pela razão, nem mesmo quando se crê haver passado por experiências inequívocas e evidentes, ou seja, sabe-se, na medida em que se não se sabe. Para tornar possíveis essas experiências decisivas, o Budismo-Zen sugere caminhos que, através do aprofundamento em si sistematicamente exercitado, deverão conduzir, no mais fundo da alma, à interiorização, melhor ainda, à integração daquilo que, sem fundo e sem forma, é inominável.


Zen e a Arte do Tiro com Arco de Eugen Herrigel, Assírio e Alvim, 2007

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