sexta-feira, 27 de março de 2009

Às vezes fico chocado com a brutalidade, a insensatez, o egoísmo, a mediocridade, a altivez, a hipocrisia, disfarçados por máscaras captivantes várias, sejam artísticas, sentimentais, intelectuais. Mas se calhar todos temos que lidar com a falsidade, mesmo a nossa, por interposta incoerência, timidez, ambição ou ignorância. Aquilo que parece às vezes não o é, mas achamos que existe uma conduta única para a nossa vida a que chamamos personalidade. Somos escravos daquilo que queremos ser, mas passamos a vida a esquecer o que somos sem o querer. O querer é um artifício, esconde as nossas fragilidades, e prático, trabalha a pilhas neurónicas, e permite que nos olhemos ao espelho com outros olhos, e dá-nos uma alegria em contagiar outros com o nosso querer. E digo, como Milosz do poeta, a essência da vida está em não querer, porque o querer afasta-nos daquilo que somos, e por isso, também, daquilo que queremos. Como captar esse relâmpago, esse tigre, que é o nosso ser, quando aparece amiúde sem avisar, eis o que podemos fazer com a nossa sensibilidade, que um dia poderá ser um querer livre de vontade, algo que cresceu dentro de nós com uma vida própria e trancendente. Um dia os homens vão poder sentir aquilo que são na sua inteira dimensão, e poderão beijar a sua alma e o universo, até lá, contentam-se com os seus feitos e o seu orgulho. Que os bons espíritos nos guiem.



ARS POETICA?

Eu sempre aspirei a uma forma mais ampla
que fosse livre da pretensão de ser poesia ou prosa.
e permitisse que nos compreendêssemos uns aos outros,
não expondo o autor ou o leitor a sublimes agonias.

A poesia na sua essência tem algo de chocante:
uma coisa que nasce de nós e não sabíamos que estava dentro de nós,
e piscamos os olhos como se atrás de nós tivesse saltado um tigre,
e ficasse parado na luz, abanando a cauda.

É por isso que se afirma com razão que a poesia é ditada por um demónio,
embora haja exagero em afirmar que deverá ser um anjo.
É difícil de entender de onde vem o orgulho dos poetas,
quando tantas vezes se envergonham pela descoberta da sua fraqueza.

Que homem razoável gostaria de ser uma cidade de demónios,
que nele se multiplicam como em sua própria casa, falando inúmeras línguas,
e como se não lhes bastasse roubar-lhe a boca e as mãos,
ainda tentam alterar-lhe o destino a seu belo prazer?

É verdade que hoje valoriza-se tudo o que é mórbido,
alguém poderá pensar que estou só a brincar,
ou que encontrei mais uma maneira
de elogiar a Arte com a ajuda da ironia.

Houve um tempo em que somente livros sábios eram lidos,
Ajudando-nos a suportar a dor e a desgraça.
Mas isso, apesar de tudo, não é o mesmo que examinar milhares
de obras oriundas directamente de hospitais psiquiátricos.

O mundo é diferente daquilo que deveria ser,
e nós próprios somos diferentes daquilo que transparece dos nossos delírios.
Por isso as pessoas preservam a sua integridade silenciosa,
para conquistar o respeito dos seus próximos e vizinhos.

A finalidade da poesia consiste em lembrar-nos
o quanto é difícil manter a nossa identidade,
pois a nossa casa está aberta, não há chaves nas portas,
e hóspedes invisíveis entram e saem à vontade.

O que estou aqui a dizer, concordo, não é poesia,
os poemas deveriam ser escritos raramente e com relutância,
sob uma pressão insuportável e apenas com a esperança
de que os bons espíritos, e não os maus, nos escolham como seu instrumento.

Czeslaw Milosz


versão inglesa de Czeslaw Milosz aqui: http://info-poland.buffalo.edu/classroom/milosz/ars.html

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