terça-feira, 17 de março de 2009



“Aquilo que pensamos já foi pensado, o que sentimos é caótico, o que somos é obscuro.”

Thomas Bernhard em Trevas

Penso que existe um nível inexplicável e mágico em toda a boa música, que nos ilumina por dentro, mas que a escrita musical não pode tornar visível. Dentro do nosso corpo existem mundos que só nos são revelados através dos sentidos, das nossas intuições, da nossa capacidade em aceitar o encantamento. Muitas vezes a mística recorre precisamente aos paradoxos e às contradições que a reflexão lógica recusa, para dar corpo às suas intuições. Dir-se-ia que a mística fornece ao homem uma das vias condutoras à superação de um abismo dramático e intransponível que atravessa a realidade e a vida.
O verdadeiro sentido da vida nasce do amor e da arte. Parece-me que “a arte foi sempre a arma do homem contra a matéria, que procura engolir o seu espírito. A arte exprime a necessidade de harmonia que o homem e a sua determinação de lutar consigo mesmo, no interior da sua própria individualidade, chegar ao equilíbrio desejado entre matéria e espírito”. Continuando com Tarkovsky “a arte afirma o que o homem tem de melhor: a Esperança, a Fé, o Amor, a Beleza, a Oração. O artista exprime o instinto espiritual da humanidade. Sua obra traduz a tensão do homem diante do Eterno, o Sublime, o Todo-poderoso, apesar do seu estado de pecado.”
Muitas pessoas pensam que um artista é um homem iluminado, cheio de pensamentos profundos, pleno de inspirações momentâneas, mas esquecem que ele é basicamente um ser atormentado pela sua existência, que procura fazer com que a sua natureza continue a existir para além de si próprio, iluminando uma chama trémula e cintilante. A luz é uma luz intermitente, às vezes fraca, outras com tons mais brilhantes. Tudo se passa como se o artista fosse um homem invisível, tal o absurdo da sua ânsia em ser visível, tal a incompleta natureza dos seus sentimentos perante o mundo. Existe sempre algo que lhe escapa, mas na sua vida tudo tem um sentido, e esse sentimento é sempre mais forte que em outros homens.
O filme “Ondas de Paixão” de Lars von Trier ilustra de uma maneira muito bela esta ideia, e esse sentido da vida é levado ao mais profundo e recôndito diamante da alma: o amor de Bess por Jan. Mas esse amor não é um amor vulgar, porque é entendido como uma dádiva de Deus, que nos transporta à Paixão, ao Sacrifício e à Ressurreição. Existe qualquer coisa de místico no amor pelo próximo. Bess tem o poder de ver, sentir, o que os outros não podem sequer adivinhar senão deduzindo que está possuída pela loucura. A loucura de Bess permite-lhe experimentar a graça divina, pois o poder do Amor puro é milagroso (a recuperação de Jan). A alegria de possuir esse Dom é eterna e infinita, graças a Deus (os sinos a repicarem no final).

“Antes de pintar um bambu, o bambu tem de crescer no mais íntimo de nós. É então que de pincel na mão, de olhar concentrado, a visão surge à nossa frente. Captem imediatamente esta visão por meio dos traços do pincel, porque ela pode desaparecer tão subitamente como a lebre que sente aproximar-se o caçador.”

Calígrafo e pintor chinês do séc.XI.

Penso que quem quer seguir qualquer das belas artes: música, pintura, escultura, arquitectura, cinema, fotografia, tem de ter consciência da sua vocação e não simplesmente do seu gosto ou do seu gozo. Digo vocação porque ela pressupõe que se mergulhe mais fundo, e não se transporte o nosso mundo todo na superfície do gosto-não gosto, apetece-não apetece, quero-não quero. Se as coisas nos emocionam temos que procurar que esse sentimento seja construtivo e nos obrigue a mergulhar em profundidade dentro de nós, e não transformar a nossa vida numa série de bons e maus momentos sem nexo, como se a vida fosse exterior a nós mesmos e imposta segundo modelos já estabelecidos. Hoje é fácil ser intelectual, sensível, alternativo. Existem padrões para todos os comportamentos, mesmo a irreverência e o improviso. Importa é perguntar a nós mesmos o que queremos fazer com a nossa vida, quem somos nós e porque somos assim.

“A vida só tem sentido se fôr entendida como a luta contra todos os mecanismos imbecilizantes/alienantes que a sociedade coloca diante de nós sob as formas mais variadas e apetecíveis. Portanto, o único triunfo possível na vida é a absoluta solidão como sobrevivência e a rejeição de toda a actividade embrutecedora e/ou mesquinha.
Temos que lutar contra tudo o que não seja afirmação da própria individualidade.”

Ernesto Sampaio em Trevas de Thomas Bernhard

Às vezes penso como Bernhard, que “só em solidão podemos formar-nos, e sós estaremos sempre, com a consciência de não podermos sair de nós mesmos; o resto não passa de ilusão, dúvida. Nada muda...”, mas ainda acredito no poder regenerador do Amor e da Arte.

Funchal, 7 de Junho de 1998

2 comentários:

  1. Caríssimo JB, finalmente mergulhaste "mar adentro" agitando (espero) as águas. Parabéns!!.
    Não é tarefa fácil fazer um comentário a estes "reflets dans l'eau" - perdoa o estrangeirismo, mas certamente entenderás - marcadamente pessoais e íntimos.
    Todavia, pelo que li neste e nos outros textos, a importância da Arte e do Amor como percursos para alcançar a transcedência (lugar-comum há séculos) rasurando a nossa condição de animais, assume, a meu ver, contornos metafísicos e, sobretudo, religiosos no sentido lato do termo. São exemplo as referências a Tarkovsky e Trier e o simbolismo fortíssimo de palavras como: Fé; Oração; Dom; Sacrifício; Ressurreição.
    Não consigo impedir que me saltem na boca as palavras de Daniel Faria, poeta nascido em 1971, licenciado em Teologia e Estudos Portugueses, noviço no Mosteiro de Singeverga, falecido em 99 vítima de queda acidental.


    "As coisas mais bonitas que tenho escrito
    não têm interessado grandemente os outros.
    Certamente é porque não as escrevi bem.
    Mas é também porque as coisas que escre-
    vo já os outros as descobriram antes de mim.
    Ora, o poeta justamente, não é o sábio: o que
    vê mais fundo; nem é o que diz melhor: esse é
    o músico. O poeta é o que descobre. Isto é, o
    que vê primeiro. "

    Termino com um excerto bíblico do Livro de Daniel, homónimo do poeta...coincidências.

    "Deixa que muitos errem por aqui e por além em busca de conhecimento"
    12,4Dan

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  2. Caríssimo Vasco, obrigado pelo teu comentário ainda por cima cheio de sumo que bebo com um prazer imenso. Parece estranho que para nos tornar-mos puros temos que fazer um percurso contrário ao do nosso nascimento, na tentativa de encontrarmos o nosso ser na sua verdadeira dimensão humana. Como dizes, a poesia traz-nos essa esperança, esse Sol tão distante para perto de nós. O Amor, esse é o verdadeiro caminho iniciático, do mistério da criação. Obrigado

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