quarta-feira, 25 de março de 2009


Sete Cidades, Agosto 2007



O nome de Ulrich inspirou este blogue não por mero acaso. Desde 1982 que me acompanha e sem dúvida, que a sua escrita majestosa e delicada, me deliciou na sua arte de bem escrever, marcou a minha maneira de olhar o mundo. Além das ideias, dos raciocínios, dos sentires, dos amares, no Homem sem Qualidades, Musil utilizou os personagens para explanar as suas reflexões na filosofia, na política, no amor, na ciência, na psicologia, não para lhes dar papeis específicos numa trama, ou numa história.
As páginas mais belas e intensas aparecem quando Ulrich se vê finalmente livre da política e da sua formação de matemático e engenheiro, apesar do seu racionalismo nunca o largar, e nos mergulha em reflexões profundas, poéticas, muitas vezes contraditórias, sobre o amor e o espírito, a alma e o devir do humano. Esta passagem que cito é uma estranha reflexão poética, quase onírica, mas tão real, e traz-nos um Ulrich místico, mais uma vez, desencantado por o seu sentir não conseguir abraçar o mundo na sua totalidade. Também é o começo de uma viagem iniciática, espiritual e sentimental, que irá percorrer com Agata. O que verdadeiramente nos liga, nos aproxima ou nos afasta, ao mundo e aos outros? Como podemos sair de nós próprios? Como podemos nos tornar seres humanos mais completos? O que é um sentimento? São algumas reflexões de Musil, também minhas, e questões essenciais ao nosso ser existencial.

“Conheces esta experiência? Perguntou o seu irmão quase persuadido que ela a conhecia. Podemos nos encontrar presos num movimento, o mais violento, quando de repente o olhar incide sobre um objecto qualquer, que Deus e o mundo abandonaram, e nós não conseguimos mais deixar de o olhar. De repente, somos levados pela sua minúscula existência, como uma pena que voa ao vento, livre de toda a gravidade, de todas as forças?
-Com excepção do movimento violento sobre o qual tu insistes tanto, eu creio reconhecê-la – disse Agata. Não pôde deixar de sorrir ao ver o embaraço cheio de veemência que se espraiava no rosto do irmão e que tão mal se coadonava com as suas palavras ternas. - Por vezes esquecemo-nos de ver e ouvir, perdemos a palavra. Portanto, é justamente nesses minutos que temos a impressão, por instantes, de nos reencontrarmos.
- Eu diria – prosseguiu Ulrich com entusiasmo, que é como quando o olhar divaga sobre uma grande superfície de água espelhada: tudo é tão luminoso que o olhar parece apenas captar a obscuridade, e sobre as margens, do outro lado, as coisas parecem não estar assentes sobre a terra, mas flutuar no ar, com uma nitidez excepcional e subtil, quase dolorosa, quase perturbadora. Exaltamo-nos e ficamos deprimidos ao mesmo tempo. Estamos ligados a tudo e nada nos aproxima. Tu estás deste lado, o mundo está daquele, tu mais que subjectiva, ele mais que objectivo, mas os dois quase penosamente neutros; e o que separa e une estes dois elementos vulgarmente interligados, é uma cintilação sombria, um extravasamento (um transbordar), um esvaziamento (um extinguir), uma troca de vibrações. Vocês flutuam como o peixe na água ou o pássaro no céu, mas não existem nem margens, nem ramagens, nada mais que esse flutuar! Ulrich sonhava, sem dúvida; portanto, o fogo e a firmeza da sua voz cortavam como metal sobre o seu tema subtil e flutuante. Parecia ter abandonado a prudência que habitualmente o continha; Agata estava espantada, mas também, com uma alegria esfuziante.”

Nenhuma das traduções existentes em Portugal me satisfaz, daí a minha versão do francês, com variantes entre parêntesis (com pena de não saber alemão). Robert Musil, O Homem sem Qualidades da tradução francesa de Philippe Jaccottet pág. 89 Capítulo 11,Tome II Éditions Le Seuil, 2004, nouvelle édition.

2 comentários:

  1. O facto de teres traduzido directamente da edição francesa reflecte bem a desconfiança que manifestas em relação à última edição da obra...O texto deve ser dificilimo de traduzir, está cheio de subtilezas. A tua tentativa parece-me ser conseguida.

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  2. E a fotografia mesmo a propósito, faltou-me acrescentar!

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