segunda-feira, 16 de março de 2009




Uma recordação de um amigo muito especial, e quando o conheci não entendia o sentido destas suas palavras. O Virgilio já não está entre nós, mas dentro de mim a sua luz guia-me sem eu o saber para o espanto e a paixão do humano e da humanidade. Saudades tuas, meu amigo.

Elsa
Virgílio Caturra

A costa da Caparica é o outro lado de cá da alma. Sem peso aqui flutuo por dentro da ainda mais flutuante Elsa. Caminho com os sentidos cheios de Elsa, vejo-a entre os arbustos, o mar, a pedra mais avançada do pontão, o rolo que se afasta de penas e algas finas como cabelos. O paredão, este bloco por onde caminho feito de rochedos e palavras soltas inextrincáveis com que os homens sonham altivos – a protecção destas terras estéreis da invasão marinha e bárbara, o domar do mar, o dobrar das correntes, o conter das areias em movimento para sul…-, mas são as terras deles; o paredão por cima é liso e atapetado de ventanias em que os bagos ínfimos de areia semeiam evidências teimosas contínuas de erosão. Mesmo no Verão, depois da hora de o calor descongelar, turvam a vista daquela luz que de tão forte passa agora a mais macia, mais macia. Elsa, a pele de Elsa.

Filtro deste modo a fúria tenaz em me apaixonar. Se Elsa é pretexto, não estou sendo justo para Elsa, mas há alguma coisa que no princípio não tenha sido pretexto dalguma coisa? A absorvente dedicação a uma paixão justifica tudo – a recusa do trabalho imposto, o desleixo das obrigações contraídas, a traição aos amigos, o esmorecer das preocupações sociais. Mas sobretudo deixa o apaixonado a sós consigo mesmo, através da presença envolvente daquele que se ama, possibilitando um antever das inúmeras capacidades individuais a que cada um se furta no afundamento nas restrições colectivas, moralmente justificadas como de interesse comum, social, do dia-a-dia. Digamos, Elsa será o lúmen em que me movimento, me alimento. Assim, Elsa não poderá ser uma natureza fechada, aquário de mesmo muito cristaliníssimas paredes. Deverá ser fluido, água e ar. Essência migratória, transmutante, o fogo lhe darei eu, melhor se também dele for ela portadora. Só deste modo e depois de Elsa se ter esquecido poderei experimentar um grande amor. O reconhecer das limitações, de tudo o que não dei a Elsa, fazendo-me crer que o dava, do que lhe roubei, far-me-ão oscilar entre a inexistência e a totalidade globalizante. Em vez de experimentar uma paixão ela-mesmo. E o que tenho é o Grande Amor. É claro que Elsa se recomporá depressa, deverá ter a resistência obstinada das mulheres, o amargor das vicissitudes senão experimentado ainda, ainda será mais enlouquecedor, mal se sinta abandonada. É natural que não fique com grande opinião de mim e que o desabafo de seu peito seja, não sem corrosiva conotação: “Não passará nunca de uma criança…”, ela, sempre tão desesperadamente terna para com as crianças. Esta história já eu sei. Mas terá sempre que ser assim? Deverei imolar Elsa?

Mas como fugir a Elsa, se Elsa é já tudo e o mar. Não me fugisse Elsa a mim.
(Possa a tua mão guiar o arado cego. Por entre os sulcos debicam aves.)
É uma teia que estendo a Elsa. Oxalá possa Elsa escapar.

Antes não sabia que Elsa queria um barco para navegar o mundo inteiro – e quis navegar o mundo de Elsa. Embora fosse o corpo de Elsa que eu quisesse navegar. (Ou antes, fora…). Depois sem barco nem Elsa interrogo no cais perfis, silhuetas, sombras, deslizantes, ortónimas. Pessoas, gente, encorpadas de incorpóreo. Duras como a palavra dura, teima em se agarrar a este desalento premeditado. Represento a tristeza de Elsa ter partido sem barco nem embargo. (Ou que ela não navegasse em mim). Alegre e leve. Espero só não ter demais perturbado a sua descuidada tranquilidade. Agora devo extremamente fatigar o corpo.
Jurei a Elsa e a mim o silêncio de Elsa. Mas como ser dúvida calada?

Envolvido num misterioso romance aguardo a vinda de João. Na sua boca. Suspenso estou e de mãos fortes. Atinjo no nome João a unidade do plural – o rosto de Elsa, os lábios, os olhos dela. Bebo a recordação até me esquecer. É beleza o halo que fica desses momentos, mas quase nuca – é o corpo que se entranha. Não consigo esquecer.

Perder-me de ti. Deve ser terrível perder-te, mas mais enlouquecedor é o começo deste meu amor por ti.

Agosto de 1983

1 comentário:

  1. A propósito de "Uma recordação de um amigo muito especial,..." volto a citar - não é obsessão - Daniel Faria (DF).

    "Na amizade, muitas vezes, a distância é o
    lugar mais próximo e de maior proximidade,
    isto é, onde a presença do outro de tão intei-
    ra já não pode ser medida. Sendo um lugar
    cheio de saudade, esse é também um lugar fe-
    liz, porque aí sem cessar se regressa e avista"

    Como diria Kierkegaard "o poeta é o génio da recordação".

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