sábado, 28 de março de 2009

Ainda o Dia Mundial do Teatro. Tenho um grande amigo no teatro, daqueles em que a palavra amigo deveria ter letras bem grandes, e não ser escrita por cinco letras, mas cinco mil. Grande abraço bem lá do fundo.

E LÁ SERÁ MAIS UM DIA MUNDIAL DA HIPOCRISIA

Hipócritas éramos nós, gente do espectáculo, que tínhamos tantas caras que os demais nem sabiam como nos defrontar, e nos consideravam fugidios, falsos, com esse recurso, por todos e desde sempre invejado, de podermos adaptar-nos a outras circunstâncias, camaleões e dançarinos. Mas neste 27 de Março, dia em que se insiste em comemorar o Teatro, nem isso já pode ser nosso atributo, nossa especificidade. Hoje não seremos nós, gente do teatro, stripteseauses da verdade poética, quem terá várias caras, que andam fechados os teatros, em ruínas, degradados, em perigo ou já foram demolidos - e poucos espectáculos se farão nesta noite. Mas haverá almoços, discursos e jantares, debates e inquéritos. E os hipócritas não seremos nós, que há anos (nós e os antes de nós, tantos) pedimos esmola, atenção, diálogo, intervenção, planificação, política aos políticos, certos que estamos de que o teatro não pode estar sujeito ao mercado, é área de intervenção do Estado, coração da língua, a tal língua que só no palco tem corpo e suor - e às vezes essa coisa única, gargalhadas e lágrimas. Vamos, mais uma vez, fingir que nos amam, que nos respeitam, almoçar, ouvir declarações de amor e pedidos de voto, vamos mais uma vez ouvir dizer que povo sem teatro não é povo nesta cultura europeia, que faremos mais com menos (eu até estou de acordo, imaginem... não estou é a ver que se faça o que quer que seja), dar beijos, agradecer e dar abraços, vamos todos fingir. Com a surda raiva de saber que viveremos sempre assim, desprezados, nós, os que éramos hipócritas por definição, escolha e prazer, desprezados por quem nada mais quer da palavra do que o silêncio dos outros. Mas não somos nós os hipócritas originais, os que acreditam na palavra, no seu feitiço - e nela nos enredamos, palavra dos poetas, palavra dos políticos, palavra dos outros que todas as noites tornamos carne nossa - para não mentir à vida? Como vamos encarar toda essa gente que vive à nossa custa - funcionários em barda que se ocupam de "cultura" - e nos vai vir abraçar, beijar, cumprimentar, prometer coisas que sabem tão bem que à primeira esquina, aliança política ou campanha eleitoral não irão cumprir? Como vamos encarar os desmaiados salamaleques - e mesmo as desculpas dos que ainda se desculpam... - de tanta gente? Engolindo para dentro a nossa miséria, a nossa tristeza, calando?Ou herdando o gesto sincero do Zé Povinho, esse rapaz de Bordalo? Pois não está, neste momento, toda a profissão teatral em Portugal a trabalhar de graça, com salários em atraso ou de miséria, por pura incapacidade das autoridades chamadas "culturais", burocratas enredados numa teia de dossiers impraticável e que sobre eles tende a desabar? Não estamos a trabalhar fiado? E não foi o Zé Povo quem dizia "Queres fiado? Toma!", maravilhoso gesto, bela expressão da língua portuguesa?

artigo públicado em 27.03.2009 no Jornal Público por Jorge Silva Melo, Director dos Artistas Unidos, companhia eventualmente apoiada pelo Ministério da Cultura/Direcção Geral das Artes

Sem comentários:

Enviar um comentário

Nota: só um membro deste blogue pode publicar um comentário.