segunda-feira, 1 de novembro de 2010

(…) Mesmo de um ponto de vista exterior nota-se imediatamente no destino destas três figuras heróicas, Hoderlin, Kleist e Nietzsche, uma evidente coincidência: encontram-se os três, por assim dizer, sob o mesmo signo. São expulsos do seu próprio ser por um poder superior, de certa maneira sobrenatural, e atirados para dentro de um ciclone de paixão que os destruirá, terminando precocemente os seus dias numa terrível perturbação do espírito, numa fatal embriagues dos sentidos, na loucura ou no suicídio. Separados do seu tempo, incompreendidos pela sua geração, cada um deles passa meteoricamente como um lampejo breve através das trevas da missão que lhe coube. Desconhecem o seu caminho, desconhecem o sentido da sua existência, porque o seu trajecto os conduz do infinito ao infinito; na sua ascensão e queda, mal chegam a tocar no mundo real. Algo de inumano age neles, uma violência acima da sua própria violência, uma força à qual se sentem integralmente submetidos; não obedecem à própria vontade (são eles os primeiros a reconhecê-lo, aterrados, nos escassos instantes de vigília do seu eu), antes escravos, possuídos (no duplo sentido da palavra) por um poder superior, o poder do demoníaco.
O demoníaco. O termo, desde os tempos primitivos da intuição mítico-religiosa até aos nossos dias, passou por tantas variações, por tantas interpretações, que me sinto obrigado a especificar o sentido em que o uso. Chamo demoníaco àquela inquietação originária e essencial com que cada indivíduo nasce e que o arranca para fora de si mesmo, para lá de si mesmo em direcção ao infinito, aos elementos primordiais, como se a natureza por assim dizer tivesse deixado em cada alma individual uma parte inalienável e inquieta do seu caos de outrora, uma parte que com impaciência e paixão quisesse regressar a esta elementaridade sobre-humana, supra-sensível. O demónio, o daimon, corporiza em nós a substância levedante, o fermento inquieto, torturante, em permanente tensão, que impele o ser para fora da sua quietude habitual em direcção à desmesura, ao êxtase, à renúncia e aniquilamento de si mesmo; na maior parte dos homens, nos indivíduos medianos, essa parte da alma, a um tempo preciosa e perigosa, depressa é sugada e dissipada; só durante raros segundos, nas crises de puberdade, nos instantes em que por amor ou por ímpeto criativo o cosmos interior entra em efervescência, este ímpeto de libertação do corpo, esta exaltação que ao mesmo tempo é auto-expressão, exerce o seu domínio sobre a banalidade da existência burguesa. Mas, fora isso, as pessoas equilibradas abafam o impulso fáustico que haja dentro de si, cloroformizam-no com a moral, anestesiam-no com o trabalho, contêm-no com o dique da ordem; o burguês é sempre arqui-inimigo do caótico, não apenas no mundo, na sociedade, mas também dentro de si próprio. Porém, no homem superior, sobretudo no homem produtivo, a inquietude, a insatisfação com a repetição das tarefas quotidianas, continua a exercer um poder criativo, dando-lhe aquele “coração superior que a si mesmo se tortura”(Dostoievski), aquele espírito interrogativo que muito para lá de si próprio estende a sua nostalgia em direcção ao cosmos. É sempre à parte demoníaca de cada um de nós que se fica a dever tudo o que nos projecta para lá do ente individual que somos, para lá dos nossos interesses pessoais, tudo o que nos confere a sagacidade e o desejo de aventura com que nos lançamos na interrogação e nos perigos que ela comporta. Mas este demónio só é uma força amiga, favorável, enquanto a conseguimos dominar, enquanto estiver ao serviço da tensão que nos anima, ao serviço de um desejo de intensificação, de elevação; o verdadeiro perigo começa quando essa tensão salutar se transforma num excesso de tensão, quando a alma sucumbe ao impulso subversivo, ao vulcanismo do demoníaco. Porque o demónio só pode alcançar a sua pátria, o elemento que lhe é próprio, a infinitude, na medida em destruir sem compaixão a coisa finita, terrena, em que momentaneamente fixou a sua morada, ou seja, o corpo.
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Em Stefan Zweig, O combate com o demónio, Hoderlin, Kleist, Nietzsche, Antígona, 2004

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