domingo, 14 de novembro de 2010

Perguntar por que razão existe música parece supérfluo à maioria, e muitos responderão que ela existe para relaxar, para o prazer estético, para superar o tédio, para elevar o espírito, para matar o tempo, para a auto-edificação. Apesar disso, o poder espiritual das grandes obras da literatura musical erudita é indiscutivelmente perceptível. Há nelas sons fantásticos, e isso em todos os estilos e tendências. Se antes forem obtidas algumas condições básicas para isso, tais como a boa receptividade, a atmosfera apropriada para um aprofundamento relaxado e, sobretudo, a compreensão do significado espiritual da música, ela pode levar o indivíduo a possibilidades de experiência jamais tentadas. Em todas as culturas antigas do mundo, a música existiu em função do ritual, do serviço, do serviço de Deus, da expansão da consciência e das mais profundas experiências humanas. A compreensão intuitiva desse significado seria a condição prévia para se conseguir uma nova consciência auditiva efectiva em todos os tipos de música actualmente praticados (erudita, pop, jazz, de vanguarda, ou música não-europeia).
As culturas do Extremo Oriente, todos os rituais mágicos da África, da Ásia e da América do Sul, e todos os ritos e cultos xamanísticos possuem um conhecimento em geral inconsciente de uma força primordial desencadeada através de meios musicais. Isso poderia ser estimulante para nós; de qualquer maneira, caberia a nós não só deixar essa energia agir de forma mágica, mas também experimentando-a conscientemente, para que ela se torne presente para nós , para que fique à nossa disposição e nos ajude a nos tornarmos seres humanos perfeitos, no sentido de uma totalidade integral. Quando conhecermos os processos musicais de uma forma mais intensa, mais sensível e mais atenta, processos esses que em parte há milénios, em parte há alguns anos são utilizados para o autoconhecimento do ouvinte, teremos condições de nos tornarmos “parte do todo universal”, como expôs o filósofo da cultura Jean Gebser em seu ensaio Uber die Erfahrung (Sobre a experiência): “É possível que a tarefa da existência humana seja alcançar essa participação consciente. Ela também engloba o invisível, aquilo que, portanto, não nos é revelado, o inexprimível, ou seja, o segredo que não pode ser compartilhado.”
Que semelhante experiência possa ser alcançada também através da audição ou da execução musical parece, em princípio, improvável. Ela só se torna perceptível com uma consciência auditiva “integral”, que “experimenta a vitalidade mágica, que presencia a forma mítica da alma e que compreende a estrutura mental”. Esta forma integral de ouvir poderia, finalmente, levar a um “estado transparente” da percepção, que não é atemporal, como na experiência mágica, mas que (segundo Gebser) paira onde há “liberdade de espaço e de tempo”. Com certeza não existe hoje uma música que corresponda totalmente a essa consciência integral. Mas, em princípio, ela pode ser descoberta em várias culturas musicais exóticas e nos trabalhos musicais ocidentais do século XX, com os quais se indentifica.
Então, depois da concepção de Jean Gebser que, ao lado de Sri Aurobindo e de teilhard de Chardin, formulou esta visão do mundo integral, o homem mental-racional do Ocidente deve novamente redescobrir e experimentar as fontes mágico.míticas da consciência para poder consumar o salto para essa integração. Desde a descoberta do inconsciente e desde os avanços nos campos molecular e interatómico, podemos ter certeza, segundo Ronald Steckel que desenvolveu um projecto para uma integração espiritual com a ordem mundial vigente, “de que os acontecimentos decisivos causados por toda a vivência humana, todo o comércio e todo o movimento material acontecem num âmbito que quase não conhecemos e que não podemos ver com nossos olhos físicos. Por trás da face visível do mundo esconde-se uma fase Invisível.
As ligações com o Invisível que temos à nossa disposição são, segundo Steckel, os órgãos do sentimento e da sensibilidade, que dão às experiências o tom e a nitidez, que avançam por sob a superfície do vivido e libertam o oculto. Com isso, Steckel fala exactamente da tarefa do músico hoje. Pois o conhecimento vivo da unidade entre o visível e o invisível, entre o corpo e a alma, está hoje destroçado. “O que caracteriza nosso tempo, mais do que qualquer coisa, é o ímpeto de controlar o mundo exterior, e isso através de uma desconsideração quase total para com o mundo interior… Por “interior” quero dizer a nossa maneira de ver o mundo exterior e quaisquer realidades que não tenham nenhuma presença “externa”, “objectiva” – imaginação, sonhos, fantasias, estados de transe, realidades dos estados de meditação e de contemplação, que o homem moderno em geral desconhece por completo.
Esse conhecimento, “que em quase todas as culturas acessíveis da história estava ligado à pessoa do xamã, do curandeiro ou dos sacerdotes do culto” (Steckel), poderia, através de uma profunda experiência musical da pessoa consigo mesma, integrá-la na consciência do todo. É exactamente através da energia das obras musicais que nos é possível encontrar em nós o acesso aos âmbitos da alma e do espírito(…)
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Peter Michael Hamel, O autoconhecimento através da música, 1976,Cultrix, 1991

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