quinta-feira, 16 de abril de 2009

…”Para mim, não existe crise. O que se restringe ao aspecto econômico oculta, na verdade, o que está acontecendo: uma verdadeira mudança de paradigma, que está no fracasso dos valores modernos, de trabalho, racionalismo e futuro. É um momento de transformação fundamental. Trata-se do verdadeiro apocalipse, mas no sentido de revelação e não de ‘apocalíptico’. O que, para mim, fica evidente, é que no lugar do trabalho, o foco é posto sobre a criação; no lugar do racionalismo, a imaginação; no lugar do futuro, é o presente que predomina.”…Michel Maffesoli

Penso que há uma interacção entre o desejo do prazer e aquilo que é uma característica da espécie humana - a agressividade. E que de uma certa maneira, a nossa tradição judaico-cristã baniu ambos. A nossa tradição cristã é uma tradição de assepsia. É também uma tradição que visa domesticar o animal que há em cada um de nós. Vemo-lo na Igreja, mas no século XVIII, com a filosofia das luzes, e no século XIX, com os grandes sistemas sociais, é a mesma coisa. Nestes últimos, que são herdeiros do cristianismo, vemos igualmente a marginalização do prazer, com a valorização do trabalho, e a marginalização da violência, da agressividade, em favor de uma sociedade totalmente "asseptizada", perfeitamente regulada. Tentei mostrar nos meus livros que há actualmente um regresso do prazer, e de formas... não quero dizer agressivas, que é muito forte; de formas cheias de força, na vida social. Tendo em conta isto, considero que a pós-modernidade é o fim da tradição judaico-cristã. E o regresso de coisas que são pagãs, de um verdadeiro paganismo, como tendência que alia esses dois elementos que tínhamos banido.

Toda uma série de práticas como os "piercings", as "rave parties", toda essa efervescência juvenil, são uma caricatura. Sociologicamente, usando um conceito de [Max] Weber, são um ideal-tipo. Penso que as essas jovens gerações, na sua forma paroxística, caricatural, indicam a tendência daquilo que está a começar a libertar-se na nossa sociedade, e é por isso que falo em táctica. Estamos a falar de uma outra relação com o mundo natural - a sensibilidade ecológica parece-me muito importante -, de uma outra relação com o corpo, que deixa de ser simplesmente um corpo de sofrimento, asséptico, para ser um corpo fruível, um corpo de prazer. Todas as minhas propostas podem resumidas numa ideia. A nossa tradição projectou o prazer no futuro: é a "cidade de Deus" de Santo Agostinho, a sociedade perfeita de [Karl] Marx. A fruição fica para mais tarde, é adiada. E, por uma inversão da polaridade, o que está a acontecer é um repatriamento da fruição. Não na sociedade perfeita, não no paraíso longínquo, mas aqui e agora. É interessante ver que essas jovens gerações, que não aprenderam latim, falam do "carpe diem" . Elas são premonitórias.

P.- O que pretende dizer quando fala de um "regresso do sentimento trágico da existência"? É que, em português, trágico está associado à ideia de morte, de fatalidade, de algo que é funesto. É isso?
R.- Um pouco, talvez. Eu faço uma distinção entre as ideias de drama e de trágico, que são muitas vezes utilizadas como se fossem a mesma coisa. De um ponto de vista filosófico, e mesmo semântico, o drama, para mim, é o que caracterizou a grande tradição judaico-cristã, desde o início do cristianismo ao socialismo. Em grego, significa "aquilo que evolui, que chegará a uma solução", ou seja, a uma resolução, a um objectivo, a um sentido, seja ele político, religioso. No fundo, a grande tradição ocidental é dramática. Marx dizia que cada sociedade não se coloca se não os problemas que possa resolver. Quanto ao trágico, é uma aporia, é algo que não tem solução. Enquanto o dramático é cristão, o trágico é pagão. A minha hipótese é que vemos cada vez mais, nessas novas gerações, esse retorno do trágico.
P.- De que forma?
R.- Elas já não buscam a solução, a sociedade perfeita, mas procuram viver o "aqui e agora". Isso comporta uma componente de fatalidade, que tem em conta o destino. Enquanto no dramático negamos a morte, há no trágico uma forma de integração da morte, ou, como eu escrevia num dos meus últimos livros, a "Parte do Diabo", uma homeopatização da morte, uma integração homeopática, uma ritualização da morte. Dou-lhe um exemplo, visível na música gótica, que tanto sucesso faz entre as jovens gerações. Ela integra justamente toda essa parte sombria, toda uma simbólica da morte. O que é preciso observar é que todas as sociedades nas quais domina o festivo, a festa, são sociedades que são trágicas, também. A festa tem uma relação com a morte.

A grande ideia da política, a de nos virarmos para o futuro, já não resulta. E é por isso que eu julgo ser necessário ver qual é a transfiguração, qual é a outra figura. Porque precisamos de viver juntos, de viver na cidade. E é interessante ver que o investimento se faz no que é próximo. A ecologia - não os partidos ecologistas, mas a sensibilidade ecológica - o desenvolvimento de associações locais, do trabalho caritativo. Há toda uma nova socialidade. A mesma coisa para a religião. A religião, enquanto instituição eclesiástica, não funciona. Por oposição, há o desenvolvimento de pequenas tribos religiosas, de seitas, de grupos de oração. Dei uma entrevista ao jornal "Le Monde" sobre os grupos de palavra: de gente que se reúne, fora das instituições, para ler a Bíblia, o Veda hinduísta, textos budistas e outros. Num sincretismo religioso, numa religiosidade ambiental. Mesmo em Paris, há grupos de umbanda, de candomblé.

P.- É por isso que refere no seu último livro que há um retorno à terra, uma "invaginação do sentido", ou noutra expressão sua, o retorno de uma "sensibilidade primitiva"?
R.- Eu coloco-me numa posição de observação. Não tenho a intenção moralista de dizer se isso é bom ou é mau. Apenas constato que, para lá do progressismo que está presente na nossa grande tradição, vemos regressar coisas que acreditamos terem já passado. Quando falo em nomadismo, em tribalismo, quero referir-me a coisas arcaicas. Mas em grego, "arché" significa aquilo que vem primeiro, que é fundamental. E, lá está, uma das características da pós-modernidade é o retorno de todas essas coisas primitivas. Lembramo-nos que somos o animal humano. Depois de termos acentuado o lado humano, vemos regressar o animal. É interessante ver como na publicidade se coloca a atenção sobre a pele, os pelos, as secreções, fenómenos primitivos. Vemos no estilismo, na produção coreográfica, fílmica, pictural, o lado selvagem do homem. O homem que domesticámos, e que volta a ser selvagem. Vou organizar no Brasil, em Novembro, vários colóquios sobre o tema "Pensar o Bárbaro". A ideia é mostrar que há barbárie nas nossas práticas, e que essa barbárie é algo de vivo, que ela pode ser fecundadora.

P.- Como a barbárie que destruiu o Império Romano na sua decadência?
R.- Exactamente. Penso que é um mesmo tipo de período, aquele que vivemos actualmente. Eu comparo muito a nossa pós-modernidade ao fim da decadência romana, com a emergência de uma nova civilização, fecundada pelas invasões bárbaras. E penso que, actualmente, são bárbaras as práticas juvenis.

P.- O que pensa desta [a entrevista decorreu durante as exéquias do papa] mobilização da atenção do mundo para a morte e as exéquias do Papa João Paulo II?
R.- As exéquias do Papa são para mim sociologicamente interessantes de observar. Corroboram exactamente as minhas teses sobre o retorno das emoções em todos os domínios da vida social: na política, no desporto e na vida religiosa. Eu dirijo na Sorbonne o Centro de Pesquisa sobre o Quotidiano, e no meu grupo acompanhamos três jornadas mundiais da juventude [organizadas pela Igreja Católica]. E o que sempre me impressionou é que havia, com efeito, uma grande emotividade, mas não em torno do conteúdo do discurso papal. O que importava ali não era o conteúdo, mas o orador. O Papa tinha a capacidade de congregar os jovens, de uma maneira de facto espectacular, mas não em torno da doutrina, porque o que ele dizia não era escutado. Entrava por um lado e saia pelo outro. Mas ao mesmo tempo, esta jovem geração estava fascinada pela possibilidade de estar em conjunto.

P.- Ele tinha essa capacidade de agregar...
R.- Sim. Era, em termos sociológicos, o que [Max] Weber designava por figura carismática. E esta palavra é muito interessante, se reflectirmos nela, porque vem de uma expressão grega que significa "aquilo que cola". Um chefe carismático é aquele que "cola" as pessoas à sua volta. Pode ser um jogador de futebol, como Ronaldo ou Ronaldinho, pode ser um papa, um cantor. Mas, para lá do Papa, a minha perspectiva, há muito tempo, é que a pós-modernidade vê regressar já não a razão, mas a emoção. O termo "emocional" é um neologismo. Não é uma categoria psicológica, como "emotivo". Designa uma ambiência.

P.- A igreja entende essa mudança na religiosidade das pessoas?
R.- Não sei. Os cardeais representam o aspecto institucional da Igreja. E eu creio que a Igreja, enquanto instituição, não tem futuro. Houve, com o Papa Paulo VI [em cujo pontificado se realizou o Concílio Vaticano II], para a Igreja Católica, um fogo-de-artifício. Mas o próprio do fogo-de-artifício é ser efémero. É muito ruidoso, mas não tem consequências. De uma certa maneira, sociologicamente, eu penso que não há verdadeiro futuro para todas as instituições, sejam elas quais forem, inclusivamente as eclesiásticas. Por oposição, e essa é uma característica da pós-modernidade, vão-se desenvolver formas de religiosidade, sem um conteúdo preciso. Incluem a teatralidade em volta da morte de um papa e da eleição do sucessor, mas como já acontece em muitas cidades, envolvem aspectos do budismo, das técnicas orientais, do candomblé brasileiro, do umbanda [cerimonial afro-brasileiro]. Numa palavra, esta religiosidade é um sincretismo. Já não temos uma concepção racional e racionalista do mundo, e há uma procura do espiritual. Mas de uma espiritualidade que é uma mestiçagem. E que coloca, muito precisamente, a tónica numa ambiência.
P.- Isolados na Capela Sistina, essa ambiência escapa aos cardeais...
R.- Os cardeais são os "aparatchik", os tecnocratas da Igreja institucional, que na maior parte do tempo têm mentalidade de funcionários. É impossível que estejam atentos. Mas não por culpa de cada um deles. Não está em causa a qualidade de cada um como pessoa. São muito inteligentes, espirituais. Mas, num certo momento, uma instituição deixa de estar em sintonia com a realidade social. Mas é preciso alargar a minha proposta. E penso que também a instituição política deixou de estar em sintonia com a realidade social. Tal como a instituição académica. É um problema geral. Texto de Abel Coentrão no Jornal Público, 2005.

"Quand on regarde l’histoire humaine, il y a deux formes de socialisation. Il y a l’éducation à la base d’"educare" qui veut dire "tirer" : c’est exigeant, demandant d'autodiscipline – tout ce que vous avez indiqué – et ça ne me paraît plus correspondre à l’esprit du temps. Et il y a une autre manière de socialiser, c’est l’initiation. Moi, je dirais que c’est l’éducation qui est moderne. L’initiation était pré-moderne et, peut-être, sera post-moderne. Qu’est-ce que l’initiation ? L’initiation, à la différence de l’éducation, ne postule pas qu’il n’y ait rien dans l’esprit de celui qui est en face de moi, de l’auditeur. On postule qu’il y a quelque chose et que je vais accompagner, faire ressortir le trésor, en quelque sorte, de cette personne qui est en face de moi, alors que l’éducation considère qu’il y a un vide que je dois remplir, et ça ne marche plus en raison de cette différentiation : il y a une culture musicale, une culture artistique, une culture existentielle qui ne correspondent plus à la culture officielle... Alors, si je résume, à mon avis : crise de l’éducation en général, et de l’éducation universitaire en particulier. Et puis, on peut espérer, émergence de la structure initiatique qui va prendre au sérieux les cultures spécifiques : musicales, esthétiques, existentielles. L’accent d’initiation est mis sur l’expérience et sur la vie, alors qu’actuellement, l’éducation universitaire méprise l’expérience, méprise la vie. C’est ça qui est le problème grave, mortifère. " de uma entrevista de Michaela Fiserova completa aqui

Ler também um excelente texto de Eduardo Portanova Barros aqui

Michel Maffesoli (1944) é um sociólogo francês, considerado como um dos fundadores da sociologia do quotidiano e conhecido pelas suas análises sobre a pós-modernidade, o imaginário e, sobretudo pela popularização do conceito de tribo urbana.





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