terça-feira, 20 de julho de 2010

Caligrafia

Aos hábitos me ligo. Os hábitos não têm porventura outra virtude senão essas:
A de convergir para a existência do nada.
Se, por exemplo, escrevo como quem desenha caracteres chineses para mim obscuros,
Se me detenho (agora) no uso ou não uso, vulgar, duma letra, se a circunscrevo, então, meditativamente, dubitativamente e com cautela, - é porque tudo para mim me habitua a duvidar de mim. Menos os hábitos.
Porque neles é que eu me reconheço. Não me conheço em mim.
E dão-me – por momentos e reconfortantemente – a sensação de que escrevo por linhas eternamente finas, delicadas, precisas, toda a incerteza de que constituo…
Toda a miséria dos meus olhos fechados.
.
Por isso aos hábitos recorro. Até ao hábito de gostar de ti.
Sem outra companhia que não seja
O não saber viver doutra maneira.

Lisboa, 21 de Outubro de 1970

Raul de Carvalho, Um e o mesmo livro, Editorial Presença, 1984

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