terça-feira, 3 de novembro de 2009

O TEATRO E A CIÊNCIA

O teatro verdadeiro apareceu-me sempre como o exercício dum acto perigoso e terrível, onde se eliminam tanto a ideia de teatro e de espectáculo como a de toda a ciência, de toda a religião e de toda a arte.
O acto de que falo visa à veraddeira transformação orgânica e física do corpo humano.
Porquê?
Porque o teatro não é essa parada cénica onde se desenvolve virtualmente e simbolicamente um mito
mas o cadinho de fogo e de carne verdadeira onde anatomicamente,
por espezinhamento de ossos, de membros e de sílabas,
se refazem os corpos,
e se apresenta fisicamente e ao natural o acto mítico de fazer um corpo.
Se bem me compreendem, aí verão um acto de génese verdadeira que toda a gente extravagante e humorística considerará no plano da vida real.
Porque hoje ninguém pode crer que um corpo possa mudar senão na morte e pelo tempo.
Ora eu repito que a morte é um estado inventado
que vive apenas para que todos os reles feiticeiros, os gurus do nada a quem aproveita, dele há alguns séculos se alimentem
e dele vivam em estado de Bardo.
Fora disso o corpo humano é imortal.
É uma velha história que é preciso aclarar atascando-nos até ao pescoço.
O corpo humano não morre senão porque se têm esquecido de o transformar e de o mudar.
Fora disso não morre, não se desfaz em poeira, não passa pelo túmulo.
É pela ignóbil facilidade do nada que a religião, a sociedade e a ciência têm obtido da consciência humana o consentimento de abandonar o seu corpo,
e lhe têm feito crer que o corpo humano é perecível e destinado ao cabo de pouco tempo a ir-se embora.
Não, o corpo humano é imperecível e imortal e mutável,
mutável fisicamente e materialmente,
anatomicamente e manifestamente,
mutável visivelmente e aqui mesmo
bastando que queiram dar-se a pena material de o fazer mudar.

Outrora existia uma operação de ordem menos mágica que científica
e que o teatro se tem limitado a imitar, pela qual o corpo humano,
logo que reconhecido mau passava,
transportado,
fisicamente e
materialmente,
objectivamente e como que molecularmente de corpo para corpo,
dum estado passado e perdido de corpo
a um estado reforçado e
exaltado do corpo.
E para isso bastava-lhe dirigir-se a todas as forças dramáticas, recalcadas e perdidas no corpo humano.

Tratava-se duma revolução e não há ninguém que não apele para uma revolução necessária,
mas não sei se muitos terão pensado que tal revolução não será verdadeira enquanto não for fisicamente e materialmente completa,
enquanto não se voltar para o homem,
para o próprio corpo do homem
e não se decidir em fim a pedir-lhe que mude.
Ora o corpo tornou-se sujo e mau porque vivemos num mundo sujo e mau que não quer que o corpo humano seja mudado,
e que soube dispor
em todas as partes,
nos pontos necessários,
o seu oculto e tenebroso bando de forçados a impedir que o mudem.
É assim que este mundo não é mau somente de fachada, mas é-o porque subterraneamente e ocultamente cultiva e mantém o mal que lhe deu o ser e nos fez a todos nascer do mau espírito e a meio do mau espírito.
Não unicamente por que os costumes estejam putrefactos, mas porque a atmosfera em que vivemos está materialmente e fisicamente putrefacta, devido a vermes reais, a organismos infectos que se podem ver a olho nu bastando que, como eu, se tenha longa, áspera e sistematicamente sofrido.
Não é de alucinação ou de delírio que se trata, não, é desse acotovelamento falsificado e verificado do mundo abominável dos espíritos cujas partes miseráveis todo o imperecível actor, todo o incriado poeta do sopro sentiu sempre a empestar os seus mais puros élans.
E não haverá revolução política ou moral possível enquanto o homem continuar magneticamente retido,
nas suas mais simples e elementares reacções orgânicas e nervosas,
pela sórdida influência de todos os centros duvidosos de iniciados, que, no quentinho das botijas do seu psiquismo, se riem tanto das revoluções como das guerras, seguros de que a ordem anatómica sobre a qual estão fundadas tanto a existência como a duração actual não poderá ser mudada.
Ora, há no sopro humano saltos e fracturas de tom, e de grito a grito trocas bruscas, aberturas e élans do inteiro corpo das coisas pelas quais podem ser subitamente evocadas, e podem escorar ou liquefazer um membro assim como uma árvore que pudéssemos cortar e enraizar na montanha da sua floresta.
O corpo tem um sopro e um grito pelos quais, nos bas-fonds decompostos do organismo, se pode agarrar, transportando-se visivelmente até aos altos planos radiosos onde o corpo superior o espera.
É uma operação onde nas profundezas do grito orgânico e do sopro lançados
passam todos os estados do sangue e dos humores possíveis,
todo o combate dos espinhos e esquírolas do corpo visível
com os monstros falsos do psiquismo,
da espiritualidade,
e da sensibilidade.
Houve períodos incontestáveis da história do tempo nos quais essa operação fisiológica teve lugar e onde a má vontade humana nunca conseguiu juntar as suas forças e soltar como hoje os seus monstros saídos da copulação.
Se quanto a certos pontos e para certas raças a sexualidade humana atingiu o ponto negro, e se dessa sexualidade emanam influências infectas,
espantosos venenos corporais,
que presentemente
paralizam
todo o esforço de vontade e de sensibilidade,
e tornam impossível toda a tentativa de metamorfose
e de revolução definitiva
e
integral.
É que de há séculos até agora foi abandonada uma certa operação de transmutação fisiológica
e de verdadeira metamorfose orgânica do corpo humano,
a qual pela sua atrocidade,
sua ferocidade material
e sua amplidão
lança sombra duma morna noite psíquica
todos os dramas psicológicos,
lógicos ou dialécticos do coração humano.

Quero dizer que o corpo detém sopros
e que o sopro detém corpos de cuja palpitante pressão,
a espantosa compressão atmosférica tornou vãos, quando aparecem,
todos os estados passionais ou psíquicos que a consciência pode evocar.

Há um grau de tensão, de esmagamento, de opaca espessura, de recalcamento ultra-comprimido dum corpo,
que ultrapassa de longe toda a filosofia, toda a dialéctica, toda a música, todo o físico,
toda a poesia,
toda a magia.

Antonin Artaud

em "Os sentimentos atrasam" tradução de Ernesto Sampaio, Hiena Editora, 1993

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