terça-feira, 1 de junho de 2010

A arte actual sofre duma dupla simplificação que é consequência do processo geral de desmistificação e secularização que envolve todas as actividades simbólicas: por um lado, vê-se reduzida apenas às obras, prescindindo de tudo o que é condição de existência duma obra de arte; por outro, vê-se reduzida à realidade, prescindindo da espessura e da complexidade do real. Numa época multiforme como a nossa, o mundo da arte parece constituir-se mediante simplificações através das quais se esgota na avaliação e interpretações das obras, ou então na eficácia e na comunicabilidade da mensagem. Tudo o resto, ou seja, aquilo que torna possível a categoria de arte e a figura do artista, é considerado uma superficialidade metafísica de que é preciso prescindir, uma pesada herança de que nos devemos libertar o mais depressa possível, um inútil ornamento que oprime a verdadeira vida da arte. Em suma, considera-se “natural” que alguns objectos sejam obras de arte e que algumas pessoas sejam artistas; qualquer outro tipo de questões parece supérfulo.
Esta minimização geral da arte face à gestão das obras e à comunicação desencadeou uma reacção junto dos que reivindicam, para a arte, a manutenção dum estatuto especial, enraizado na transmissão da tradição e na solenidade dos “valores”. No entanto, também estes não levam em conta a relação presente e actual entre ingenuidade e o simplismo dos nossos dias e erguem-se na defesa impossível duma transcendência artística em que nem eles já acreditam. Como em outros âmbitos da cultura, também na arte o tradicionalismo se arroga duma certa jactância: o que não constitui qualquer solução para a referida ingenuidade acabando por prosperar à custa de si própria e dos que tenta iludir. A redução da arte às obras e à comunicação acabou por produzir efeitos positivos. Não só aproximou a arte de massas de camadas cada vez mais amplas de público e de indivíduos pouco esclarecidos e incapazes de perceber a diferença entre dimensão real e a simbólica, mas sobretudo alargou de forma notável as fronteiras da arte, fazendo incidir uma nova atenção sobre a “coisificação” e a “circulação” que as concepções demasiado espirituais e metafísicas da arte não conheciam. Mas é preciso notar que nem a “coisificação”, nem a “circulação” são experiências simples e “naturais”!
O erro da reacção tradicionalista consiste na sua obstinação em dar relevo àquilo que é digno de interesse, de estima e de admiração por cima, sujeitando-se a dar o flanco. E tudo isso serve para dar lugar a uma degeneração implícita na democratização da arte: a transformação das grandes exposições num luna park, o carácter ao mesmo tempo violento e efémero das intervenções artísticas transgressivas, a prevalência da quantidade sobre a qualidade, a troça da parte do público, a redução da profissionalidade à flexibilidade executiva, a utilização cínica dos artistas e dos críticos, a homologação dos produtos culturais, a difusão dum clima de consenso plebiscitário em volta das vedetas, o desaparecimento da capacidade crítica, a diminuição das condições dum aumento ou dum desenvolvimento da originalidade, o desconhecimento da excelência. Mas a reacção tradicionalista engana-se ao opor a todos estes inconvenientes uma ideia pouco consistente de arte baseada num “valor” estético de que ninguém já é capaz de estabelecer as características.
A democratização da arte, com toda a sua ingenuidade e banalidade, com a sua mescla de estupidez e fatuidade, representa um ponto de não retorno na história da cultura; por mais lamentáveis e grosseiros que sejam os seus produtos, é à sua sombra que se pode manter e desenvolver uma experiência mais subtil e refinada, mais acutilante e atenta da obra e do processo artístico.

em Mario Perniola, A Arte e a sua Sombra, Assírio e Alvim, 2006

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