quarta-feira, 2 de junho de 2010

Em tudo que a natureza faz, a natureza imprime o seu modo de fazer. Numa pedra, há a memória da pedra. Num homem, há a memória da sua criação.
Quando compreendemos isso, nós compreendemos as leis do universo. Alguns são capazes de reconstruir as leis do universo apenas ao olhar uma folha da relva. Outros têm que aprender muitas, muitas coisas, até que possam perceber o que é necessário para desvendar essa ordem que é o universo.
Eu não conheço melhor serviço que um arquitecto possa prestar, como profissional, do que o de compreender que todo edifício deve servir à instituição homem, quer seja ela a instituição do estado, quer a da casa, ou a da educação, da saúde, ou do lazer.
Uma das grandes deficiências da arquitectura, hoje, é que essas instituições não estão sendo definidas, mas apenas dadas por um programa, e transformadas em um edifício.
Vou dar alguns exemplos do que eu entendo com “reprogramar”.

Em minhas aulas na universidade, propus à turma o exercício de projectar um mosteiro, e assumi o papel de um eremita que achava que deveria haver uma sociedade de eremitas.
De onde partir? Como compreender essa sociedade?
Eu não tinha um programa, e por duas densas semanas, nós discutimos a natureza. ( A natureza é uma noção que faz parte do que o eremita é.)
Uma aluna indiana foi a primeira a fazer uma observação interessante. Ela disse:”Acho que esse lugar deve ser de tal forma, que tudo se origine da cela. Da cela deve partir a razão de a capela existir. Da cela deve partir a razão de o claustro existir, e de existirem as oficinas,”
Um outro aluno indiano (suas mentes trabalham num nível mais transcendente) disse: “Eu concordo plenamente, mas gostaria de acrescentar que o refeitório deve se equiparar à capela, a capela deve se equiparar à cela, e o claustro, ao refeitório. Nenhum é mais importante que o outro.”
Mas o aluno mais talentoso da turma era um inglês. Ele apresentou um projecto maravilhoso, no qual incluíra um outro elemento: uma lareira externa. De alguma forma, ele percebera que não poderia negar o significado do fogo, nem o seu calor, nem a sua promessa. Ele também posicionara o claustro a cerca de um quilometro do mosteiro, explicando que era uma honra para o mosteiro ter um claustro, e que, por isso, um lugar de destaque no conjunto deveria lhe ser reservado.
Nós chamámos um monge de Pittsburgh para nos dizer quão fantásticas eram nossas ideias. Ele era um monge divertido, um pintor que vivia num enorme estúdio, e que sempre tinha relutância em ir para a sua cela. Ele gozou dos nossos planos, sobretudo da intenção de o refeitório localizar-se a um quilómetro do centro do conjunto. Disse ele: “Ah, eu preferiria mil vezes que minhas refeições fossem servidas na cama!” Ficámos muito desanimados depois de ele se ir embora, mas logo pensámos: “Bem, ele é somente um monge: ele não sabe mais nada”.
Nós desenvolvemos o trabalho, e surgiram inúmeras soluções maravilhosas. Ouça o que eu digo: foi muito compensador perceber que elas não partiram de um programa morto, desses que prescrevem a quantidade de metros quadrados. A ideia usual de refeitório, e outras mais, haviam sido afastadas. Quando reunimos o júri, Padre Roland veio. Ele era um fiel defensor dos mais radicais projectos para o mosteiro, mas o programa – dado, como sempre – era um programa morto. Ele não tinha vigor algum, nem desejo de viver, enquanto os alunos estavam profundamente inspirados. Cada um apresentou uma solução diferente, mas todas traziam os sentimentos de uma vida nova, de um novo elemento. Não é possível descrevê-las aqui, mas o que começara com uma simples reconsideração havia emergido com a força de um novo princípio, a partir do qual novas descobertas poderiam ser feitas no presente.

Nossa profissão somente é mesquinha quando não alteramos o programa. Quando o alteramos, forças fantásticas são potencializadas, pois assim não incorremos no erro de fazer algo que agrade a nós exclusivamente. O que satisfaz à sociedade é a nossa intervenção no programa, e não um edifício medíocre. O arquitecto prepara-se para a expressão do que é verdadeiro.
É o espírito da arquitectura que diz que ela não existe em absoluto…Isso é o que diz o seu espírito. Ele não conhece estilo, nem método. E está pronto para qualquer coisa. O homem, então, deve ter a humildade de oferecer algo, de fazer uma oferenda à arquitectura. Um arquitecto é parte do tesouro da arquitectura, ao qual pertence o Panteon, ao qual pertencem os grandes liceus palácios do Renascimento. Tudo isso pertence à arquitectura e a enriquece, tudo isso é uma oferenda.
Para mim, essa é uma espécie de base do ensino. Que está relacionada ao projecto, à pintura, à escultura, a seja o que for que você faça. É a sua expressão pessoal que deve ser colocada. Não se trata apenas de tecnologia. É no acto de reescrever o programa que se pode detectar a arquitectura, não na mera manipulação de espaços. Na mera manipulação de espaços, não há nada que pertença ao arquitecto, ainda que ele possa contribuir para essas realizações, como alguém que define as mais refinadas especificações. Mas isso não o torna um bom aruitecto. Isso o torna um bom profissional, mas não um bom arquitecto.

Louis I. Khan, Conversa com estudantes, Gustavo Gili, 2002

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