terça-feira, 29 de dezembro de 2009

As três lições da Índia.

Em primeiro lugar, foi a descoberta da existência de uma filosofia, ou melhor, de uma dimensão espiritual indiana que não era, nem aquela da Índia clássica – digamos, aquela dos Upanishades e do Vedanta, em suma, a filosofia monista -, nem a da devoção religiosa: a bhakti. Quer o ioga quer a sâmkhya(http://pt.wikipedia.org/wiki/Samkhya)professam o dualismo; de um lado, a matéria , do outro, o espírito. Contudo, não era o dualismo que me interessava, era o facto de, no samkhya e no ioga, o homem, o universo e a vida não serem ilusórios. A vida é real, o mundo é real. E podemos conquistar o mundo, podemos dominar a vida. Aquele que, no tantrismo por exemplo, melhor assume a vida humana pode ser transfigurado por rituais, efectuados no seguimento de uma longa preparação ióguica. Trata-se de uma transmutação da actividade fisiológica, por exemplo da actividade sexual. Na união ritual, o amor deixa de ser um acto erótico ou um acto simplesmente sexual. É uma espécie de sacramento; exatamente como beber vinho, na experiência tâtrica, não é beber uma bebida alcoolizada, mas partilhar um sacramento…Logo descobri (…)que a Índia conheceu determinadas técnicas psicofisiológicas, graças às quais o homem pode, ao mesmo tempo, fruir da vida e dominá-la. A vida pode ser transfigurada por uma experiência sacramental.
O segundo ensinamento, foi o sentido do símbolo. (…)Foi-me dado viver numa cidade de Begala, e vi mulheres e jovens raparigas que tocavam e decoravam um linga, um símbolo fálico, mais precisamente um falos de pedra, anatomicamente bastante exacto; e, bem entendido, as mulheres casadas não podiam ignorar a sua natureza, a sua função fisiológica. Compreendi então a possibilidade de ver o símbolo no linga. O linga era o mistério da vida, da criatividade, da fertilidade que se manifesta a todos os níveis cósmicos. Esta epifania da vida, era Shiva, não era o membro que conhecemos. Sendo assim, esta possibilidade de ficar religiosamente emocionado pela imagem e pelo símbolo, isso revelou-me todo um mundo dos valores espirituais.
Quanto à terceira descoberta, podemos chamá-la “a descoberta do homem neolítico”. Tive a sorte, pouco tempo antes da minha partida, de passar algumas semanas na Índia Central, entre os aborígenes, os Santali, quer dizer, os pré-arianos. Fiquei impressionado ao ver que a índia mergulha ainda as raízes muito profundas, não só na herança ariana ou dravidianas, mas também no solo asiático, na cultura aborígene. Trata-se de uma civilização neolítica, fundada sobre a agricultura, quer dizer, sobre a religião e a cultura que acompanhavam a descoberta da agricultura, nomeadamente a visão do mundo da natureza enquanto ciclo ininterrupto de vida, morte e ressurreição: ciclo específico da vegetação, mas que também rege a vida humana e constitui, ao mesmo tempo, um modelo para a vida espiritual…Reconheci, pois, a importância da cultura popular romena e balcânica. Como a da Índia, tratava-se de uma cultura folclórica, fundada sobre o mistério da agricultura.(…)Esta unidade de cultura, para mim, constitui uma revelação. Descobri que aqui, na própria Europa, as raízes são bem mais profundas do que se tinha pensado, mais profundas que o mundo grego ou romano, ou mesmo mediterrânico, mais profundas que o mundo do Próximo Oriente antigo. E essas raízes revelam-nos a unidade fundamental, não só da Europa, como também do todo ecuménico que se estende de Portugal à China e da Escandinávia ao Ceilão.
(…)Na Índia descobri o que mais tarde designei de “religiosidade cósmica”. Quer dizer, a manifestação do sagrado através dos objectos ou dos ritmos cósmicos: uma árvore, uma raiz, a Primavera. Esta religião, sempre viva na índia, é a mesma que os profetas combateram, com razão, pois Israel era o receptáculo de uma outra revelação religiosa. O monoteísmo mosaico(relativo a Moisés) comporta o conhecimento pessoal de um Deus que intervém na História e que não manifesta apenas a sua força através dos ritmos da natureza, através do cosmos, como se passa com os deuses da religiões politeístas. Vós sabeis que esse tipo de religião cósmica, que designamos de politeísmo ou de oaganismo, estava bastante desconsiderada, não só pelos teólogos, como também por certos historiadores das religiões. Eu, no entanto, vivi entre os pagãos, vivi entre aqueles que participam no sagrado pela mediação dos seus deuses. E os seus deuses eram figuras ou expressões do mistério do universo, desta raiz inesgotável de criação, de vida e de beatitude…Em suma, tratava-se de descobrir a importância e o valor espiritual do que chamamos paganismo.

em Mircea Eliade, A provação do Labirinto, diálogos com Claude-Henri Rocquet, Dom Quixote 1987

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