sexta-feira, 4 de setembro de 2009

40. Um homem tem todas as qualidades mas estas são-lhe indiferentes.

Não é difícil descrever nas suas linhas gerais este homem de trinta e dois anos chamado Ulrich, embora a única coisa que ele saiba acerca de si próprio é que todas as qualidades são para ele ao mesmo tempo próximas e estranhas, e que todas elas, quer se tenham ou não tornado suas, lhe são curiosamente indiferentes. A mobilidade da alma que pressupõe simplesmente certos dons muitíssimos variados, vem juntar-se nele uma certa agressividade. É um espírito viril. Não se comove com os outros e só se põe no lugar deles quando os seus desígnios exigem que ele os conheça. Só respeita os direitos dos outros quando sente respeito por esses outros, o que é raro. Desenvolveu-se nele, com o tempo, um certo gosto pela negação, uma dialética subtil do sentimento que o induz com facilidade a descobrir defeitos naquilo que geralmente beneficia da aprovação geral, a tomar a defesa do que é proibido e a recusar as obrigações com uma má vontade que procede da vontade de criar a si próprio obrigações. A despeito dessa vontade e fora as raras excepções que por vezes concede a si próprio, abandona simplesmente a sua direcção moral a esse beneplácito cavalheiresco que, na sociedade burguesa, dirige mais ou menos todos os homens desde que vivam numa situação regular; sendo assim, vemo-lo praticar com orgulho a brutalidade e o desdém de um homem que sabe possuir uma vocação, se sente capaz de viver uma vida diferente, fazendo das suas capacidades e das suas inclinações um uso mais ou menos vulgar, vantajoso e social. Tinha o hábito de considerar muito naturalmente e sem qualquer vaidade como o instrumento de um desígnio não destituido de importância que pensava poder conhecer a tempo; ainda agora, no início daquele ano de busca inquieta, depois de haver dado o passo mais arriscado da sua vida, reencontrava a sensação de estar no bom caminho e não fazia qualquer esforço particular para concretizar o seu plano. Numa natureza destas não se torna muito fácil averiguar qual a paixão que a conduz; a forma que foi dada pelas circunstâncias e as suas disposições pessoais tornam-na equívoca, nenhuma contrapressão real desmascarou o seu destino, mas o principal é que lhe falta ainda, para se decidir, qualquer coisa que ela desconhece. Ulrich é um homem que algo obriga a viver contra si póprio, quando parece querer esquivar-se a todo o constragimento.

A comparação do mundo com um laboratório recordara-lhe uma das suas velhas ideias. A vida que lhe teria agradado imaginava-a ele outrora como uma vasta estação experimental onde se estudaria a melhor maneira de se ser homem e se descobririam outras novas. O facto de este conjunto de laboratórios trabalhar um pouco ao acaso, de lhes faltar qualquer teoria, qualquer direcção geral, isso era outro assunto. Poder-se-ia dizer, sem receio de errar, que Ulrich teria querido ser como que um senhor ou um príncipe do espírito: na verdade, quem o não deseja? Isto é mesmo tanto mais natural porquanto o espírito é considerado o que há de mais elevado no mundo, o soberano todo-poderoso. É isto o que se ensina. Tudo aquilo que tem possibilidades de o fazer, ornamenta-se com o espírito, enfeita-se com ele. O espírito, combinado com outra coisa é o que há de mais espalhado pelo mundo.”O espírito de fidelidade”, “o espírito do amor”, um “espírito viril”, um “espírito culto”, o “maior espírito do nosso tempo”, “queremos preservar o espírito desta ou daquela coisa”, “queremos agir dentro do espírito do nosso movimento”: ah, o belo som que isto produz, mesmo nas classes mais baixas! Ao pé disto, tudo o resto, o crime quotidiano, a cupidez assídua, surge então como a sujidade inconfessável que Deus tira das unhas dos pés.
Mas quando o espírito fica só, substantivo nu, glabro como um fantasma a quem apetece emprestar um sudário, o que é afinal? Podemos ler os poetas, estudar os filósofos, comprar quadros, discutir a noite inteira: aquilo que se ganha será isso espírito? Admitindo mesmo que se ganha espírito conseguiremos mantê-lo? Esse espírito está ligado intimamente à forma que assumiu para entrar em cena! Passa através daquele que gostaria de o conservar, deixando-lhe apenas um ligeiro arrepio. Que vamos nós fazer com todo todo esse espírito? Ele vai-se produzindo continuamente em quantidades astronómicas sobre toneladas de papel, de pedra e de tela, também não paramos de o consumir num constante despender de energia nervosa: mas para onde vai ele depois? Desaparece como uma miragem? Dissolve-se em partículas? Subtrai-se à lei terrestre da conservação da matéria? As parcelas de poeira que descem até ao fundo de nós e aí se imobilizam não têm qualquer relação com o gasto feito. Para onde é que ele foi? Onde está, o que é? Talvez se formasse à volta desta palavra “espírito”, se acaso soubéssemos mais alguma coisa acerca dela, um círculo de silêncio angustiante...

Caíra a noite. Algumas casas, como que arrancadas do espaço, do asfalto, dos carris de ferro, formavam a concha cada vez mais fria da cidade. A concha-mãe, repleta de movimentos humanos, ingénuos, alegres ou raivosos, onde cada um de nós começa por uma gotícula que brota, que esguicha, por uma pequena explosão, é arrefecido pelas paredes, suaviza-se, imobiliza-se, fica docemente preso à concha-mãe e finalmente agarra-se como uma semente à parede. Ulrich pensou de súbito: “Porque não me fiz eu peregrino?” Os seus sentidos imaginavam uma vida pura, absoluta, de uma frescura total como ar límpido. Aquele que não quer dizer “sim” à vida devia ao menos opor-lhe o “não” dos santos; contudo, pensar nisso a sério era-lhe totalmente impossível. Também, não teria podido fazer-se aventureiro, muito embora essa vida se devesse assemelhar a um noivado eterno cujos prazeres os seus membros e a sua coragem adivinhavam. Ele não poderia ter sido um poeta nem um desses desiludidos que já só acreditam no dinheiro e na violência, embora tivesse disposições para ser tudo isso. Esqueceu a idade que tinha e imaginou estar nos vinte anos: já então uma disposição interior o impedia de ser qualquer uma dessas coisas; algo de mais poderoso se lhe opunha. Porque vivia ele pois de uma maneira tão pouco clara e indecisa? Por certo, dizia consigo, o que o isolava nessa existência anónima e confinada não era mais do que essa obrigação de ligar e desligar o mundo que se designa por uma palavra que ninguém gosta de empregar sozinha: o espírito. Ulrich sem ao menos saber porquê, sentiu-se de repente triste e pensou: “Simplesmente, não gosto de mim próprio”. No corpo gelado e petrificado da cidade ele sentia palpitar, lá no fundo, o seu coração. Existia qualquer coisa dentro dele que nunca quisera ficar em parte nenhuma, sentindo ao longo de si as paredes do mundo e dizendo consigo que havia ainda milhões de outras; esse Eu, gota irrisória, lentamente arrefecida, que não queria ceder o seu fogo, o seu minúsculo centro de fogo.

O espírito sabe que a beleza pode tornar uma pessoa bondosa, má, estúpida ou sedutora. Disseca um carneiro e um penitente e encontra em ambos humildade e paciência. Analisa uma substância e verifica que, tomada em grandes quantidades, é um veneno, e em pequenas doses, um excitante. Sabe que a mucosa dos lábios está aparentada com o intestino, mas sabe também que a humildade desses mesmos lábios tem relação com o que é sagrado. Ele mistura, dissolve, recompõe de forma diferente. Para ele, o bem e o mal, o alto e o baixo, não são, como para o céptico, noções relativas, mas sim termos de uma função, valores que dependem do contexto em que se encontram. Os séculos ensinaram-lhe que os vícios se podem tornar em virtudes e vice-versa; e considera puro desleixo o facto de, no decorrer de uma vida, não se ter conseguido ainda recuperar um criminoso. Não admite nada de lícito nem de ilícito, porque tudo pode possuir uma qualidade que a fará participar um dia num novo grande sistema. Odeia secretamente como a morte tudo aquilo que finge ser imutável, os grandes ideais, as grandes leis e a sua pequena imagem petrificada: o homem satisfeito. Nada há que ele considere fechado, nenhuma pessoa, nenhuma ordem; porque os nossos conhecimentos podem modificar-se cada dia, ele não acredita em nenhuma ligação e cada coisa só mantém o seu valor até ao próximo acto da criação, como um rosto a quem se fala e que se vai alterando com as palavras.

Robert Musil, O Homem sem Qualidades, tradução de Mário Braga do francês, Editora Livros do Brasil

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